INTRODUÇÃO
A piomiosite é definida como uma infecção bacteriana aguda primária da musculatura
esquelética, tendo Staphylococcus aureus como principal agente etiológico. Acredita-se que sua patogênese esteja relacionada
a uma história pregressa de trauma local, com consequente bacteremia transitória e
disseminação para grandes grupamentos musculares, predominantemente nos membros inferiores1.
Em termos epidemiológicos, a doença tem maior prevalência no sexo masculino, nas duas
primeiras décadas de vida, com uma relação de 1,5 homens para cada mulher2, e em regiões tropicais, embora haja um crescente número de casos nas zonas temperadas
pela infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) ou por tratamentos imunossupressores3. A mortalidade varia de 1 a 23%4.
Correlacionam-se três estágios na manifestação clínica da piomiosite: o primeiro estágio,
que corresponde à invasão bacteriana no músculo, ocasionando sinais e sintomas como
febre baixa, anorexia, dor localizada, edema, contração e limitação da mobilidade
muscular; o segundo estágio corresponde à fase supurativa, em que há a formação de
abscessos com exacerbação dos sinais flogísticos e febre alta. Na ausência de diagnóstico,
a afecção evolui para a fase séptica (terceiro estágio), com disseminação sistêmica
da infecção5.
O diagnóstico é estabelecido, basicamente, por exames de imagem, sendo a ressonância
magnética o método de maior sensibilidade no que diz respeito à análise do dano muscular.
Nos métodos mais limitados, como na radiografia, evidencia-se aumento de partes moles
e, na ultrassonografia, observa-se hiperecogenicidade indicativa de edema e necrose
muscular. Na tomografia computadorizada nota-se edema muscular e coleções fluidas.
Para diagnóstico etiológico, realizam-se hemoculturas e/ou culturas de material drenado
ou aspirado5. Clinicamente, o diagnóstico é dificultado e retardado devido aos seus sinais inespecíficos,
levando a consequências potencialmente fatais2.
O tratamento consiste em antibioticoterapia no primeiro estágio, ou associada à abordagem
cirúrgica nos estágios seguintes, durante, geralmente, cerca de 3 a 6 semanas. A oxacilina
é uma boa opção diante de uma infecção por S. aureus, entretanto, os antibióticos escolhidos podem variar de acordo com o resultado da
cultura.
O presente artigo tem por objetivo realizar análise clínica da conduta cirúrgica adotada
em um caso de piomiosite em um paciente de 21 anos admitido com dor e edema em membros
inferiores em um hospital terciário no interior de Minas Gerais.
RELATO DE CASO
F.J.J.E., 21 anos, sexo masculino, previamente hígido, negava uso de drogas ou medicamentos
injetáveis, admitido em fevereiro de 2021 no pronto-socorro do Hospital de Clínicas
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, com quadro clínico de dor
moderada, intermitente, em ambos os membros inferiores, associado a edema dos mesmos
e febre há 3 dias. Paciente com histórico de atividade física extenuante e traumas
em membros inferiores durante partida de futebol há uma semana. Procurou anteriormente
atendimento médico, sendo medicado com sintomáticos e liberado para domicílio.
Ao exame físico, apresentava queda do estado geral, febre, dificuldade para deambular
e edema importante em membros inferiores, principalmente em lado esquerdo. Constatou-se
presença de calor local e rigidez à palpação.
Realizada ultrassonografia com Doppler e ressonância nuclear magnética, com evidência
de múltiplos abcessos em grupamentos musculares anteriores e posteriores de coxa e
também em topografia de músculo gastrocnêmico. Não foram observados sinais de trombose
venosa profunda (Figura 1).
Figura 1 - Cortes sagital e axial de ressonância nuclear magnética ponderada em T2 da coxa esquerda,
evidenciando grupamento muscular acometido por processo inflamatório destacado por
seta verde e musculatura normal destacada por seta amarela.
Figura 1 - Cortes sagital e axial de ressonância nuclear magnética ponderada em T2 da coxa esquerda,
evidenciando grupamento muscular acometido por processo inflamatório destacado por
seta verde e musculatura normal destacada por seta amarela.
O paciente foi internado aos cuidados das equipes de Clínica Médica e Ortopedia. Necessitou
de quatro desbridamentos em centro cirúrgico e fez uso de antibioticoterapia endovenosa
guiada por culturas que evidenciaram crescimento de Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA) (Figura 2).
Figura 2 - A - Aspecto das feridas após 4º desbridamento em centro cirúrgico. B - Região posterior
do membro inferior direito. C - Ferida em coxa esquerda.
Figura 2 - A - Aspecto das feridas após 4º desbridamento em centro cirúrgico. B - Região posterior
do membro inferior direito. C - Ferida em coxa esquerda.
Durante o 15º dia de internação, o paciente foi submetido a teste rápido para o vírus
da COVID-19, com resultado positivo. Felizmente, evoluiu apenas com sintomas respiratórios
leves. Permaneceu em isolamento respiratório por 15 dias e em uso de sintomáticos.
Após liberação do isolamento respiratório, observou-se bom aspecto das lesões, estando
as mesmas granuladas, superficiais e sem características infecciosas. Dessa forma,
o paciente foi encaminhado para tratamento definitivo pela equipe de Cirurgia Plástica
(Figura 3).
Figura 3 - Feridas com leito granulado e sem sinais de infecção.
Figura 3 - Feridas com leito granulado e sem sinais de infecção.
Optou-se pela realização de enxerto de pele parcial retirado com dermátomo elétrico,
utilizando como doadoras as áreas íntegras nos próprios membros inferiores e realização
de curativo oclusivo não aderente.
O paciente apresentou ótima integração de enxerto, recebendo alta hospitalar uma semana
após a cirurgia, com acompanhamento ambulatorial das equipes de Cirurgia Plástica
e Fisioterapia. Seguimento pós-operatório tardio evidenciou completa reabilitação
motora (Figura 4).
Figura 4 - Aspecto das feridas no pós-operatório tardio. Houve completa reabilitação motora.
Figura 4 - Aspecto das feridas no pós-operatório tardio. Houve completa reabilitação motora.
DISCUSSÃO
Os quesitos epidemiológicos, como procedência, idade e sexo, e a manifestação dos
sinais e sintomas relatados corroboram os dados evidenciados na literatura, entretanto,
o paciente em questão não apresentava fatores de imunossupressão previamente ao evento
ou histórico conhecido de uso de drogas ou medicamentos injetáveis, diferentemente
das casuísticas observadas6,7,8,9.
Os principais impasses da piomiosite incluem sua raridade e a dificuldade diagnóstica
clínica, que acarretam em tratamentos tardios e, muitas vezes, ineficazes.
O diagnóstico diferencial inclui osteocondrite, osteomielite, tromboflebite e trombose
venosa profunda4. O exame de imagem padrão-ouro atualmente é a ressonância magnética, que permite
detectar as coleções fluidas e o edema muscular com maior precisão.
O tratamento e a necessidade de abordagem cirúrgica são analisados de acordo com os
resultados de cultura e do estágio em que se encontra a doença. Neste caso, a existência
de múltiplas coleções purulentas e lesões extensas tornou imperativa a intervenção
cirúrgica seriada e posterior reconstrução com enxerto de pele parcial.
CONCLUSÃO
No que concerne ao diagnóstico de doenças pouco comuns, na prática clínica do cirurgião
plástico, a suspeição diagnóstica só é possível quando há conhecimento prévio da afecção
em questão. Isto posto, deve-se ressaltar a importância da familiarização do profissional
com a piomiosite, visto que o diagnóstico precoce e o tratamento correto, empregado
em tempo oportuno, alteram sobremaneira o prognóstico do paciente. E, em contrapartida,
o atraso diagnóstico pode levar a consequências nefastas, com lesões de elevada morbidade
ao paciente, podendo culminar, inclusive, no óbito do doente cujo diagnóstico fora,
inadvertidamente, negligenciado.
Portanto, frente à suspeição dessa moléstia, exames de imagem específicos devem ser
prontamente solicitados e uma equipe multidisciplinar, atuando de forma coordenada,
deve ser envolvida na condução do caso, para que o diagnóstico acertado permita o
tratamento precoce e uma evolução favorável.
REFERÊNCIAS
1. Barros AAG, Soares CBG, Temponi E F, Barbosa VAK, Teixeira LEM, Grammatopoulos G.
Piomiosite do piriforme em um paciente com doença de Kikuchi-Fujimoto - relato de
caso e revisão da literatura. Rev Bras Ortop. 2019;54(2):214-8.
2. Shittu A, Deinhardt-Emmer S, Vas Nunes J, Niemann S, Grobusch M P, Schaumburg F. Tropical
pyomyositis: an update. Trop Med Int Health. 2020;25(6):660-5.
3. Siqueira GS, Siqueira CMVM. Piomiosite tropical. Rev Col Bras Cir. 1998;25(3):205-7.
4. Ngor C, Hall L, Dean JA, Gilks C F. Factors associated with pyomyositis: A systematic
review and meta-analysis. Trop Med Int Health. 2021;26(10):1210-9.
5. Gonçalves AO, Fernandes NC. Piomiosite tropical. An Bras Dermatol. 2005;80(4):413-4.
6. Konnur N, Boris JD, Nield LS, Ogershok P. Non-tropical pyomyositis in pediatric and
adult patients. W V Med J. 2007;103(4):22-3.
7. Martínez-de Jesus FR, Mendiola-Segura I. Clinical stage, age and treatment in tropical
pyomyositis: a retrospective study including forty cases. Arch Med Res. 1996;27(2):165-70.
8. Yu CW, Hsiao JK, Hsu CY, Shih TT. Bacterial pyomyositis: MRI and clinical correlation.
Magn Reson Imaging. 2004;22(9):1233-41.
9. Sadarangani S, Jibawi S, Flynn T, Melgar TA. Primary pyomyositis: experience over
9 years in temperate Michigan. Infect Dis Clin Pract. 2013;21(2):114-22.
1. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Hospital de Clínicas, Cirurgia Plástica,
Uberaba, Minas Gerais, Brasil
2. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Medicina, Uberaba, Minas Gerais, Brasil
Autor correspondente: Larissa Figueiredo Vieira Rua Vigário Silva, 695/804, Bairro Bom Retiro, Uberaba, MG, Brasil. CEP: 38022-190
E-mail: larissafvieira31@hotmail.com
Artigo submetido: 11/11/2021.
Artigo aceito: 13/09/2022.
Conflitos de interesse: não há.