INTRODUÇÃO
Traumas elétricos podem variar de pequenas queimaduras de pele a lesões orgânicas
graves1. O contato com corrente elétrica de alta voltagem (>1000 volts) pode gerar necrose
tecidual maciça e exposição de estruturas nobres, especialmente no ponto de contato.
As extremidades, tipicamente, são as áreas mais afetadas2. Amputação de membros é relatada em até 40% dos pacientes vítimas de traumas elétricos
de alta voltagem. Para que esses casos sejam tratados corretamente, com prevenção
de sequelas e reabilitação, devem, portanto, ser acompanhados em centros de referência
em queimaduras, idealmente com serviço de cirurgia de mão3.
A reconstrução de membros inferiores, em especial o pé, é desafiadora pela necessidade
de cobertura de estruturas especializadas em uma área com pouco excedente cutâneo.
A reconstrução por meio de retalhos é a melhor alternativa para salvamento do membro.
A escolha do retalho deve ser baseada nas necessidades da área receptora e na disponibilidade
de áreas doadoras. Retalhos livres têm grande relevância na reconstrução do terço
distal de membros inferiores, devido às opções limitadas de retalhos locais e disponibilidade
de tecidos moles4. Traumas elétricos e doenças vasculares são contraindicações relativas para esta
última opção5.
OBJETIVO
O objetivo deste trabalho é apresentar um relato de caso de confecção de retalho sural
reverso como alternativa ao retalho microcirúrgico na reconstrução de pé após trauma
elétrico. O relato apresentado é de um paciente atendido pelos grupos de Queimaduras
e Feridas Complexas do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), no ano de 2020.
RELATO DO CASO
Paciente masculino, 35 anos, tabagista, vítima de trauma elétrico de alta voltagem
(1300V) em domicílio. Trazido ao pronto atendimento do HCFMUSP por transporte aeromédico
com queimaduras em membros superiores e inferiores bilateralmente (superfície corporal
queimada totalizando 8%). Não apresentava outras lesões decorrentes do trauma e manteve
estabilidade hemodinâmica. Evoluiu com isquemia crítica do membro inferior esquerdo,
sendo necessária amputação transtibial pela equipe de Cirurgia Vascular. No tratamento
das demais lesões, foi submetido a desbridamentos seriados no membro contralateral,
resultando em defeito em face medial, hálux e todo dorso do pé direito, com exposição
óssea (Figura 1).
Figura 1 - Lesão no pé direito. A: Visão superior. B: Visão medial.
Figura 1 - Lesão no pé direito. A: Visão superior. B: Visão medial.
Após 30 dias do trauma, com o objetivo de evitar amputação da outra extremidade, optou-se
pela reconstrução com retalho microcirúrgico do músculo vasto lateral, com anastomose
na artéria tibial anterior e na veia safena magna (Figura 2). No 3° dia de pós-operatório, o retalho não apresentou perfusão tecidual, sendo
identificada trombose venosa. Foi optado pelo desbridamento do retalho e colocação
de terapia por pressão negativa por 5 dias. Em seguida, foi realizada cobertura do
defeito com retalho sural reverso para salvamento do membro (Figura 3), cuja ilha de pele media 12 x 8cm e dissecção do pedículo até 8cm do maléolo lateral.
A área doadora foi fechada primariamente. Para cobertura de face medial e hálux, foi
realizado enxerto de pele parcial em lâmina.
Figura 2 - A: Lesão em pé direito após delimitação da área de necrose e realização do desbridamento.
B: Retalho microcirúrgico do músculo vasto lateral. C: Posicionamento do retalho após anastomose microcirúrgica.
Figura 2 - A: Lesão em pé direito após delimitação da área de necrose e realização do desbridamento.
B: Retalho microcirúrgico do músculo vasto lateral. C: Posicionamento do retalho após anastomose microcirúrgica.
Figura 3 - A: Ferida complexa em dorso do pé direito, com exposição óssea. B: Demarcação do retalho fasciocutâneo sural reverso. C e D: Dissecção do retalho. E: Posicionamento do retalho. F: Fechamento primário da área doadora. G: Liberação do pedículo após 90 dias.
Figura 3 - A: Ferida complexa em dorso do pé direito, com exposição óssea. B: Demarcação do retalho fasciocutâneo sural reverso. C e D: Dissecção do retalho. E: Posicionamento do retalho. F: Fechamento primário da área doadora. G: Liberação do pedículo após 90 dias.
O paciente recebeu alta hospitalar no 8° dia de pós-operatório da última abordagem
cirúrgica. Em acompanhamento ambulatorial, no primeiro retorno, constatou-se área
de congestão venosa e necrose distal do retalho, optando-se, inicialmente, por tratamento
com uso de agentes tópicos desbridantes enzimáticos (papaína gel 10%) e autolíticos
(hidrocoloide). Após 30 dias, com delimitação da lesão e preparo do leito, realizada
nova abordagem cirúrgica para desbridamento e reavanço do retalho (Figura 4). Depois de 90 dias da cirurgia inicial, foi realizada a liberação do pedículo vascular.
O paciente apresenta evolução satisfatória em seguimento ambulatorial após 5 meses,
com cobertura estável, ótimo contorno do pé direito, e está em processo de reabilitação
(Figura 5).
Figura 4 - A: Congestão distal do retalho (5º dia pós-operatório). B: Delimitação da necrose do retalho (20° dia pós-operatório). C e D: Desbridamento e reavanço do retalho (2º mês pós-operatório).
Figura 4 - A: Congestão distal do retalho (5º dia pós-operatório). B: Delimitação da necrose do retalho (20° dia pós-operatório). C e D: Desbridamento e reavanço do retalho (2º mês pós-operatório).
Figura 5 - Pós-operatório após 5 meses de seguimento.
Figura 5 - Pós-operatório após 5 meses de seguimento.
Técnica cirúrgica - retalho sural reverso (Figura 6)
Figura 6 - Técnica cirúrgica - retalho sural reverso.
Figura 6 - Técnica cirúrgica - retalho sural reverso.
O paciente foi submetido ao procedimento sob anestesia geral. Após posicionado em
decúbito lateral esquerdo, os preparos habituais foram realizados de modo a manter
todo o membro inferior exposto no campo operatório. Inicialmente, o desbridamento
cirúrgico da lesão foi realizado com irrigação abundante com soro fisiológico 0,9%
e coleta de culturas de amostras de partes moles. A área do defeito foi estimada para
demarcar o retalho conforme as dimensões necessárias e suficientes para cobrir toda
a lesão (12 x 8cm), sem tração excessiva do pedículo, sendo a ilha de pele desenhada
no terço médio e proximal da perna, entre os ventres medial e lateral do músculo gastrocnêmio.
A dissecção do retalho foi iniciada pela incisão da pele na borda proximal do retalho,
até transpassar a fáscia profunda. A veia safena parva e o nervo sural foram identificados
no centro do retalho e ligados proximalmente. Durante a dissecção, foi mantida a visualização
do pedículo, para que permanecesse intacto, até o ponto de rotação. As perfurantes
cutâneas, ramos da artéria fibular, responsáveis pela vascularização do retalho, são
frequentemente encontradas na margem posterolateral da região distal da perna.
Realizada a interpolação do retalho para a área do defeito, com ponto de rotação distando
8cm cranialmente ao maléolo lateral, e suturado o retalho sobre o leito para cobrir
as estruturas profundas expostas (metatarsos), com pontos em “U” de fio inabsorvível
de mononylon 3-0. O fechamento da área doadora foi primário, com sutura por planos,
sem tensão excessiva. Nas demais áreas de tecido de granulação, realizada enxertia
de pele parcial (área doadora coxa direita).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob número de protocolo 35074420.1.0000.0068.
DISCUSSÃO
Traumas elétricos em membros inferiores, especialmente no pé, frequentemente apresentam
necrose de tendões, músculos e tecidos ósseos, sendo a maioria combinada com danos
extensos da pele e tecidos moles locais. Lesões de estruturas profundas, falta de
retalhos locais, assim como danos vasculares e suprimento sanguíneo não confiável,
tornam o tratamento das lesões nos pés, especialmente as lesões medianas e distais,
extremamente difícil6.
A reconstrução de membros inferiores com retalhos locais é limitada pela baixa disponibilidade
tecidual, associada à vascularização deficitária em traumas e na presença de comorbidades.
Retalhos musculares são restritos para a cobertura em terço proximal e médio da perna.
O terço distal da perna e o pé são majoritariamente reconstruídos com uso de retalhos
à distância. No entanto, esse tipo de reconstrução apresenta uma execução laboriosa,
sendo reservada para centros especializados7. Em pacientes queimados, os retalhos microcirúrgicos devem ser indicados quando há
exposição de estruturas nobres, para preservação da função do membro acometido, com
resultados adequados após planejamento correto, e realizados em centros de referência8.
No caso relatado, devido ao extenso defeito distal em pé com exposição de estruturas
nobres, causado por um trauma elétrico, optou-se inicialmente pela reconstrução com
retalho livre, com objetivo de evitar a amputação da extremidade. O retalho microcirúrgico
foi escolhido por fornecer tecido bem vascularizado para uma melhor cobertura do defeito,
associado às condições locais favoráveis, com presença de vasos receptores adequados.
Entretanto, após falha inicial do tratamento, foi decidido pela reconstrução com retalho
sural reverso com a finalidade de salvamento do membro e de oferecer cobertura de
boa qualidade e contorno adequado para a região acometida.
O uso de retalhos fasciocutâneos do angiossoma sural com base distal (ou reverso)
é uma alternativa para a cobertura de defeitos em terço inferior da perna, tornozelo
e pé. Dentre as principais limitações, então as vasculopatias arteriais e venosas.
Ele é baseado em ramos perfurantes da artéria fibular, cuja origem está localizada
entre 5 e 6cm acima do maléolo lateral. A ilha de pele é desenhada em terço médio
e proximal da perna. O arco de rotação deve ser calculado de modo a não tracionar
o pedículo. A área doadora pode ser fechada primariamente ou enxertada3.
Em uma série publicada de 32 casos de retalhos de fluxo reverso, sendo 14 surais reversos,
mostrou-se a confiabilidade e segurança para cobertura de lesões diversas no terço
distal dos membros inferiores. Estes retalhos foram considerados como alternativa,
inclusive em lesões complexas, aos retalhos microcirúrgicos9.
As complicações mais comuns do retalho sural reverso são a congestão venosa e a isquemia.
A maioria dos retalhos apresentam algum grau de congestão com melhora em poucos dias.
No entanto, a necrose (parcial e completa) é a complic ação mais relevante10. Follmar et al. revisaram 50 artigos com descrição de 720 retalhos com taxa de necrose
de 13,9%11. Ilhas de pele com marcação cranial à bifurcação do músculo gastrocnêmio apresentaram
taxas maiores de necrose parcial. O ponto de pivô do retalho varia de 5 a 8cm do maléolo
lateral. A alteração desse ponto pode influenciar na ocorrência de necrose, embora
não haja estudo com significância estatística.
Por fim, a largura da ilha de pele acima de 8cm também pode influenciar na incidência
de necrose10. Vendramin12 apresentou uma experiência de 61 casos, acumulada em um período de 10 anos, sugerindo
que, após curva de aprendizagem e aprimoramento técnico, os resultados tendem a apresentar
índices melhores e menores taxas de complicações.
Devido ao trauma elétrico, associado às dimensões do retalho, o paciente evoluiu com
necrose distal, necessitando de procedimento cirúrgico adicional para desbridamento
e reavanço do retalho. A despeito disso, apresentou resolução do ferimento, com cicatrização
adequada e evolução satisfatória.
CONCLUSÃO
O retalho sural reverso mostrou-se uma alternativa adequada para o tratamento de lesão
extensa com exposição de estruturas nobres em região distal de pé, após trauma elétrico
de alta voltagem, oferecendo cobertura estável com ótimo contorno, permitindo assim
reabilitação satisfatória do paciente.
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1. Universidade de São Paulo, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, São Paulo,
SP, Brasil
Autor correspondente: Gustavo Moreira Clivatti Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, serviço de Cirurgia Plástica, 8º andar,
São Paulo, SP, Brasil CEP: 05403-900, E-mail: clivatti@gmail.com
Artigo submetido: 14/04/2021.
Artigo aceito: 12/07/2021.
Conflitos de interesse: não há.