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Review Article - Year2017 - Volume32 - Issue 3

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2017RBCP0069

RESUMO

INTRODUÇÃO: Atualização sobre os aspectos bioéticos do transplante facial. Estudo de revisão da literatura sobre a situação atual dos transplantes de órgãos e de face, a importância da face humana, e a face humana como órgão vital.
MÉTODOS: Revisão bibliográfica narrativa com análise documental acerca dos transplantes de face nos últimos 10 anos.
RESULTADOS: Na base de dados PubMed foram encontradas 8259 publicações com a palavra-chave face transplantation, face transplantation and bioethics em 28 artigos e organ transplant ethics em 4877 publicações; documentos relacionados à legislação encontrados na ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos).
CONCLUSÃO: A experiência dos países com o transplante de face demonstrou que é uma opção viável para reconstrução de graves lesões faciais, entretanto, é considerado um procedimento experimental com alto risco de complicações, altos custos, envolve equipe multidisciplinar e a necessidade do uso vitalício de imunossupressores. Até o momento, é indicado para um pequeno grupo de pacientes. Do ponto de vista bioético, vale contextualizar que, apesar da obtenção do termo de consentimento, é necessário avaliar qual é o nível de risco aceitável para o participante da pesquisa. Quem será o responsável pelos custos relacionados ao procedimento? Quando os recursos públicos podem ser utilizados para justificar os direitos individuais em detrimento dos direitos públicos?

Palavras-chave: Transplante de face; Brasil; Face; Bioética.

ABSTRACT

INTRODUCTION: This update on bioethical aspects of face transplantation reviews the literature on the current status of organ and face transplantation, the significance of the human face, and the human face as a vital organ.
METHODS: This was a narrative bibliographic review, with documentary analysis of face transplantation in the last 10 years.
RESULTS: A search of the PubMed database identified 8,259 papers with the keyword face transplantation, 28 articles with the keywords face transplantation and bioethics, and 4,877 papers with the keyword organ transplant ethics; documents related to legislation were found in the Brazilian Association of Organ Transplantation (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos - ABTO).
CONCLUSION: The experience of countries where face transplantation has been performed has shown that this is a viable option for the reconstruction of severe facial lesions. However, face transplantation is considered an experimental procedure with high risk of complications and costs, and requires a multidisciplinary team and the lifetime use of immunosuppressants. To date, this procedure is only indicated for a small group of patients. From a bioethics standpoint, it should be noted that, despite providing consent, the level of risk acceptable to the recipient must be assessed. Who will be responsible for the costs related to the procedure? When can public resources be used to justify individual rights over public rights?

Keywords: Face transplantation; Brazil; Face; Bioethics.


INTRODUÇÃO

O transplante de face está descrito nos capítulos da Bioética de situações emergentes, relacionados ao desenvolvimento dos avanços científicos, as quais devem incorporar premissas dos valores pertinentes à sociedade e objetivos a serem alcançados por políticas específicas. O desafio é criar espaços para o desenvolvimento de protocolos emergentes no Brasil, onde as desigualdades sociais são marcantes, o sistema de saúde é formado por uma rede pública e uma privada, na qual o setor público subsidia o setor privado, ao mesmo tempo em que investe pouco no setor como um todo.

O primeiro transplante realizado no Brasil foi de rim, em 1965. Em 1991, foi criada a Central de Notificação de Órgãos e Tecidos. Passados 50 anos, o Brasil está entre os países com maior número de transplantes, principalmente de rim, fígado e córnea, entre outros. Segundo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), possui o maior programa público de transplantes.

De acordo com o SNT, em 2011 foram realizados 23.397 transplantes de órgãos no país. Entretanto, até o momento não se realizou o alotransplante de face no Brasil. O alotransplante é realizado entre indivíduos geneticamente diferentes, da mesma espécie1.

A regulação dos transplantes de órgãos é diferente nos países2,3. No Brasil, as Leis 9.434/97 e 10.211/2001, decretos, portarias e resoluções dispõem sobre a remoção de órgãos para fins de transplante1. A família é quem decide se os órgãos devem ser doados1.

A história da reconstrução da face é antiga, todavia, o primeiro transplante facial foi realizado na França em 2005, para portador de Doença de Von Recklinghausen, com o projeto aprovado pelo Comitê de Ética francês. O Comitê concluiu que se tratava de pesquisa clínica, realizado nas perdas completas, em hospital público. Na redação descreveu-se a técnica, a necessidade de estudos em cadáveres, os estudos de imunotolerância e imunossupressão no mesmo modelo do transplante de mão4.

A partir daí estes vêm sendo realizados no mundo. Os pesquisadores procuram oferecer uma aparência facial próxima do normal, devolver a identidade, autonomia e a dignidade humana. As recomendações são do termo de consentimento para o receptor e doador, da necessidade de criar uma máscara com o molde facial do doador para uso no velório, e outros mecanismos que preservassem o respeito à dignidade do doador4.

A discussão acerca do transplante facial suscita muitos questionamentos ao redor do mundo, como, por exemplo, a importância vital da face humana, dos efeitos adversos oriundos do uso de imunossupressores e dos benefícios provenientes do procedimento. Como seria possível garantir a autonomia, a confidencialidade e a privacidade diante desta situação de vulnerabilidade? Quem seria o responsável pelo pagamento do procedimento e das drogas imunossupressoras? A partir da revisão, propõe-se realizar a análise a luz da bioética.


OBJETIVO

Análise bioética acerca do transplante facial. Propondo-se a descrição da situação dos transplantes de face no mundo e no Brasil, a importância da face humana e a face humana como órgão vital.


MÉTODOS

Realizou-se pesquisa documental dos últimos 10 anos para a busca de informações na base de dados eletrônica PubMed e BVS com o descritor face transplantation, encontrado em 8259 publicações, and bioethics, em 28 artigos, e organ transplant ethics, em 4877 publicações. Foram selecionados artigos sobre aspectos éticos, bioéticos dos transplantes e sobre a situação dos transplantes no Brasil.

Referencial Teórico

1. Situação atual dos transplantes de órgãos e de face


Os pesquisadores que realizaram o transplante facial o têm defendido para melhoria da qualidade de vida de pessoas com a face desfigurada, redução dos efeitos psicológicos e promoção do bem-estar social. Consideram a face como órgão vital, devido aos graves transtornos psíquicos gerados pelos traumatismos faciais. O uso da expressão transplante facial se refere ao alotransplante de face, de doador com diagnóstico de morte cerebral5-10.

O primeiro transplante no mundo foi de rim há 60 anos, vários outros vêm ocorrendo. A evolução dos estudos imunológicos permitiu menor número de rejeição e hoje estes são realizados no mundo1. Nas décadas de 60 e 70 surgiram fármacos com melhor ação imunossupressora, porém com efeitos colaterais. Na década de 80 surgiram novos imunossupressores, a padronização na retirada de múltiplos órgãos dos doadores cadáveres e o uso de substâncias para conservação dos órgãos retirados1.

O primeiro transplante de face foi realizado na França4. Antes disso, os profissionais achavam o procedimento antiético, embora considerassem a face como principal órgão da estética corporal, o estigma provocado pelo trauma e a importância da identidade da face transplantada10.

Segundo a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos e de Microcirurgia Reconstrutiva, o transplante facial pode ser apropriado apenas quando as técnicas tradicionais são insuficientes5. Para Caplan11, a capacidade de transplantar órgãos e tecidos cresceu ao longo dos anos, como também a demanda por esses procedimentos, excedendo-se as ofertas disponíveis, e a necessidade de criar mecanismos regulatórios e éticos.

Muitos potenciais beneficiários não estão aptos para receberem os órgãos, são idosos, portadores de deficiência mental grave, antecedentes criminais, abusam de drogas, ou não tiveram acesso a um serviço de cuidados competente, que poderia encaminhá-los. Há também os obstáculos financeiros ao acesso à lista de espera de transplante.

Do ponto de vista técnico, comprovou-se que o transplante facial é factível. Embora seja um procedimento complexo, que necessita de equipe multidisciplinar e tem duração de 8 a 36 horas. Os autores demonstraram a viabilidade da revascularização pela anastomose arterial microcirúrgica convencional termino-terminal, preferivelmente das carótidas externas e seus ramos; da artéria maxilar externa e facial; da anastomose venosa entre a jugular externa, veia facial e o tronco tireolinguofacial; e anastomose neural dos nervos trigêmeo e facial.

Muitas vezes, é uma tarefa difícil identificar os pedículos vasculares e os nervos na face devido à distorção da anatomia, a fibrose e retração dos tecidos, sendo necessários os recursos de ressonância magnética, angiografia e Doppler e habilidade da equipe cirúrgica1.

No Brasil existem Serviços com equipes de Cirurgiões Plásticos e de Microcirurgia com preparo para realização dos procedimentos. Entretanto, não sabemos ao certo o que a população pensa a respeito da realização do transplante de face e a opinião dos cirurgiões e pesquisadores. No Brasil ainda não foi realizado alotransplante total de face, todavia, como na maioria dos países, há uma legislação rigorosa para o transplante de órgãos1,2,12.

Os principais tópicos da lei contemplam os requisitos do credenciamento de hospitais e equipes, a permissão para uso de doador falecido, o diagnóstico de morte, a forma de consentimento, a permissão para o uso de órgãos de doador vivo, a restrição ao uso de órgãos de doador vivo não parente, a proibição do comércio de órgãos e as penalidades para as infrações.

A regulamentação dos transplantes descreve que só poderá ser realizado por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipe médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizadas pelo órgão do Sistema Único de Saúde (SUS), após triagem de infecções e infestações conforme exigências do Ministério da Saúde12.

Existem 18 Portarias referentes aos transplantes, ressaltando-se a importância do Artigo 2º da Portaria 3407/98. Os procedimentos relativos aos transplantes de órgãos na rede pública são custeados pelo SUS, também existiria a possibilidade de realizar transplantes na rede particular, porém os planos de saúde não têm custeado esses procedimentos.

Os pacientes que aguardam transplantes fazem parte de uma lista única nacional para que um doador compatível seja localizado o mais rápido, obedecendo aos critérios de gravidade entre outros. A alocação é coordenada pelo CNT (Central Nacional de Transplantes), e obedece a organização estadual e articula-se com as CNCDO (Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos)12.

É pré-requisito para realização dos transplantes de órgãos a) um médico, especialista na área; b) um cirurgião, com experiência, de no mínimo seis meses, em cirurgias relacionadas ao órgão a ser transplantado. A realização de novos tipos de transplante de órgãos deve ser precedida da aprovação do protocolo pela comissão de ética do estabelecimento de saúde e autorização do CNCDO12.

Os transplantes de face, embora não sejam vitais, são importantes para a qualidade de vida do receptor. A face deve ser retirada somente de doador vivo com diagnóstico de morte cerebral, não pode ser estocada e há particularidades de gênero, idade, requer equipes treinadas, para doação e recepção da face, etc., tornando a doação imprevisível. Com tal agravante, a imprevisibilidade impede o planejamento das vidas dos pacientes e familiares e do sistema de saúde1.

Ainda há os aspectos da recusa para realização do transplante. Em pesquisa 15,7% recusaram a doação de transplantes, 48,6% pelo desconhecimento do desejo do doador, 23% da manifestação do doador em vida contrária à doação, 17,6% pelo desejo da família em manter o corpo íntegro, 1,4% por convicções religiosas e 9,4% não registraram a causa da negativa13.

2. Importância da face humana

A face humana é um componente da personalidade e imagem corporal da pessoa, importante nas relações e qualidade de vida. Expressa a aparência, informações sobre idade, sexo, etnia, estado emocional e ajuda a formar a imagem corporal, importante na interação social14.

Os estudos anatômicos e da expressão facial são desde Bell, Darwin, Ekman. Este descreveu a face humana como a parte do corpo que mais se mostra durante a vida, importante no desenvolvimento psicossocial do indivíduo. Como um sistema complexo, único, individual, não há duas faces iguais, contudo, existem padrões de comportamento facial comuns, influenciados pela cultura e passam entre gerações15. A expressão facial funciona como adaptação ao meio em que a pessoa convive.

Os pesquisadores questionam se a face é um código genético que vai se descodificando na vida e partilha social. Nos estudos com fotografias de pessoas em várias regiões do mundo foi possível definir e classificar a expressão facial e elaborar o Facial Action Coding System14, no qual se demonstraram mais de 10 mil expressões.

Nos anos 50, evidenciava-se que a expressão facial emitia sinais variáveis com a cultura, associado aos gestos com as mãos. Magalhaes15 acredita que a expressão facial não é um produto somente cultural, demonstra emoção, funciona como catalisador entre a nossa conduta e o meio. Seria uma preparação para a ação, exercendo importante papel no desenvolvimento da aprendizagem.

A emoção se forma pela vivência consciente, reações fisiológicas e comportamento expressivo, e composto pela cognição, expressão facial e sistema nervoso autônomo. As expressões são determinadas pela experiência emocional, podendo ser inibidas ou dissimuladas. A face é o instrumento a serviço da interação social, importante na expressão dos sentimentos, na comunicação e afeta os sentimentos humanos14,15.

3. A face humana como órgão vital

A desfiguração e a perda da expressão podem afetar a identidade pessoal, vital ao ser humano. Nos estudos sobre os problemas psicológicos com os quais se deparam pessoas com traumatismos faciais desfigurantes, encontrou 10-70% com depressão, ansiedade, agressividade, tendência ao suicídio, problemas no convívio social, conjugal e profissional, maior índice de desemprego, consumo de álcool, falta de adesão a tratamentos propostos, nível de escolaridade mais baixo e menor apoio social16.

Os pacientes passam por vários procedimentos reconstrutivos com altos custos emocionais e econômicos. Em sua forma mais extrema, evolui com o retraimento social, que pode resultar na "morte social"15. O apoio da família e a cultura são relevantes para a reintegração do indivíduo. Em estudo observou-se que a maioria das vítimas de trauma de face tem baixo poder aquisitivo; de 711 casos, 23% necessitaram procedimentos especializados tais como a redução de fraturas e a reconstrução com enxertos ou retalhos16. Assim, trata-se de uma população com poucos recursos, que diante da desfiguração facial tem aumentada a vulnerabilidade social.


RESULTADOS

Os resultados deste estudo se basearam em análise documental de revisão narrativa da literatura com a seleção subjetiva do autor procurando-se por artigos e produções relacionadas aos aspectos éticos e bioéticos dos transplantes. Entre os questionamentos éticos do transplante de face está a identidade do doador, ou seja, o conjunto de características e traços próprios do indivíduo. É a consciência que a pessoa tem dela própria e que a torna diferente das demais.

Na perspectiva de Maurice Merleau-Ponty apud Swindell17, o corpo, não somente a mente, é vivido de identidade. O ser consciente é a integração do corpo e da mente, a exemplo de estudos sobre o membro fantasma, quando após amputação a pessoa continua sentindo a presença do membro amputado. O corpo é vivido de identidade pessoal e uma parte central da identidade. Assim, doar um órgão é como doar uma parte de si mesmo. Algumas pessoas que recebem órgãos descrevem a sensação de ter alguém dentro deles17.

Lock18 descreveu que os órgãos doados, muitas vezes, representam mais do que meras partes dos corpos biológicos, mas a vida é experimentada pelos destinatários como personificada. As pessoas que recebem transplantes frequentemente se preocupam com o sexo, etnia, cor da pele, a personalidade e o status social do doador. Muitos acreditam que o seu modo de estar no mundo poderiam ser mudados pelo doador, por exemplo, não gostariam de ter no corpo órgãos de presidiários, temendo uma transformação, devido às características que poderiam vir do doador.

Sharp19 observou que a maioria das pessoas que recebem uma doação de órgão expressou o sentimento de renascimento, e muitos sentem que adquiriram características emocionais, morais ou físicas do doador. O simbolismo do órgão tem efeitos sobre a identidade, e varia conforme o transplante. Os receptores de coração experimentaram uma maior transformação da identidade do que os de rim.

Os familiares de pessoas que doaram órgãos, muitas vezes, pensam que o seu ente querido vive no outro corpo, como se fosse uma extensão da biografia do doador. As questões de identidade envolvidas no transplante facial não são diferentes, todavia, estão somadas aos aspectos relacionados à identidade única da face e a sua significância para identidade pessoal.

Os autores relataram que existe diferença entre a pessoa que perde a identidade, devido à desfiguração, daqueles que recebem o transplante facial. O indivíduo que recebeu o transplante facial desejava uma identidade diferente daquela que adquiriu no trauma, inesperada e indesejada. Isto não quer dizer que a pessoa não possa aceitar a sua mudança e formar uma nova identidade.

Ainda, após o transplante facial seria possível identificar o doador em 2,6% dos casos e o receptor em 66% dos casos. Ademais, a experiência dos casos operados até o momento tem demonstrado a boa aceitação dos transplantes e os receptores não consideraram que perderam a identidade com a nova face.

No debate ético dos transplantes faciais20 foram observadas 73 publicações contrárias aos transplantes, a favor ou não, nos artigos publicados referentes ao tema. A frequência de contrários ao transplante facial aumentou para 100% em 2008, devido à mudança de identidade e efeitos psicológicos, seguidos pelos efeitos da imunossupressão em 69,1%, riscos e benefícios em 64,8%; a imunossupressão e a identidade apareceram tanto antes como depois da realização do primeiro transplante. Prevaleceram os termos: seleção de pacientes, custos, inabilidade da pessoa desfigurada ter uma vida normal.

Em 2012, todos os artigos publicados demonstraram-se favoráveis à realização dos transplantes. Em 2004, Banis et al.21 realizaram ensaio que promoveu a discussão filosófica e ética sobre os transplantes facial quanto à necessidade da avaliação pública dos procedimentos médicos inovadores antes de sua aplicação. Segundo Caplan11, esta atitude seria definida como ética profilática. Ele descreve, entre outros, os possíveis motivos nas falhas das políticas acerca dos transplantes.

Outros aspectos éticos relacionados são a publicidade, a invasão da privacidade, a obtenção da face para doação, o instrumento de aceitação de riscos, os riscos, a alta taxa de rejeição, as diferenças entre os transplantes faciais e de órgãos sólidos, a difícil recuperação funcional, as implicações psicológicas, econômicas e sociais. No processo de consentimento expressa-se a autonomia do participante, do doador ou receptor.

Na pesquisa realizada na França entre 909 cirurgiões plásticos identificou-se a importância do anonimato do doador, do consentimento da família do doador, da capacidade do receptor para consentir, do respeito à privacidade do receptor e do doador, da necessidade de revisão da definição de morte cerebral e da certeza deste diagnóstico, dos custos do tratamento para a sociedade, dos riscos na realização do procedimento experimental e no respeito à dignidade de todos envolvidos22.

Mesmo que declarada, a privacidade do receptor pode ser infringida, pois a mídia pode adquirir e expor informações sobre a identidade do doador e do receptor, e este último pode reagir com grande estresse psicológico. Em relação aos custos para transplante facial, estimam-se gastos de 80 mil dólares para o transplante e cerca de 600 dólares por mês para o uso de imunossupressores23,24.

Os transplantes realizados no Brasil tiveram crescimento de 74,8% e os custos aumentaram em 163%. Isto se deve ao fato de que juntamente com a realização do procedimento cirúrgico exista uma conta onerosa de gastos para fornecimento de medicamentos para uso no pós-operatório.

Os gastos com transplantes foram de aproximadamente de R$ 990 milhões no ano de 2010, dados do Ministério da Saúde, sendo que dados do Portal Brasil descrevem que o valor pago, por exemplo, para o transplante renal, foi de 27,6 mil reais no ano de 2012. As despesas são altas e aumentam em doadores vivos, pois há custos indiretos relacionados também à pessoa que fez doação do órgão, além disso, é necessário investimento público no treinamento de pessoal, formação de equipes, laboratórios especializados, medicamentos, entre outros25. Vale ressaltar que as despesas relacionadas aos transplantes no Brasil são custeadas pelo Sistema Único de Saúde.


REVISÃO E CONCLUSÃO

O tema do transplante facial tem limites frágeis entre a ética em pesquisa, a bioética clínica e a ética relacionada as minorias, principalmente quando aspectos relacionados à proteção dos participantes da pesquisa ou das cirurgias, como quem se responsabilizaria pelos custos da pesquisa ou do procedimento ou como seriam garantidos os imunossupressores ao longo da vida, ainda como seria construída a lista de espera para o transplantes e quais os critérios e quem faria essa chamada, visto que o transplante facial engloba particularidades quanto à etnia, tipo sanguíneo, sexo, raça, aspectos morfológicos faciais.

O fato é que alguns autores já consideram como um procedimento incorporado à prática de assistência e opção nas grandes desfigurações faciais. Analisando os discursos que permeiam as publicações sobre transplante facial, na categoria social, dizem respeito ao desfiguramento e à incapacidade do indivíduo para se relacionar socialmente; na categoria cognitiva está relacionado ao avanço da ciência; na fisiológica e psicológica evidenciada pela desfiguração e perda da qualidade de vida.

Kalliainen26 propôs a fundamentação nos princípios propostos por Beauchamp e Childress27, porém os mesmo são insuficientes, pois os pacientes com a face desfigurada têm sua autonomia reduzida pela sua condição, estarão expostos a riscos, uso de imunossupressores, reações adversas, falta de garantia da privacidade. Muito embora a realização do transplante de face seria uma opção para promoção do bem, da beneficência, depois de esgotadas outras opções de reconstrução facial, como seria realizada a distribuição dos recursos de saúde pública para promover a justiça?

A Bioética baseada na Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos28 assume papel essencial na sociedade, na proteção do participante de pesquisa e na preocupação com as gerações futuras. Milhares de pessoas participam de pesquisas que buscam novos conhecimentos, diagnóstico, prevenção e tratamento.

Inevitavelmente, estes estarão expostos a riscos variáveis, de efeitos adversos, dor, desconforto, perda de tempo e até de morte. Questiona-se qual seria o risco aceitável para participação de pesquisas com procedimentos cirúrgicos complexos e porque há normas e regras éticas, legais e profissionais. A norma central para avaliação do risco é o princípio da proporcionalidade, ou seja, são aceitáveis se há possíveis benefícios para o participante e gerações futuras. O princípio requer o balanço entre os meios e os fins, em que os participantes não sejam expostos a riscos desnecessários, excessivos e não razoáveis29.

Outro princípio para análise é o da responsabilidade, proposto por Jonas30, no qual o poder causal é condição da responsabilidade, ou seja, o agente deve responder por seus atos, ele é responsável por suas consequências e responderá por elas se for o caso, muito embora mereça discussão quanto aos limites da responsabilidade.

Na discussão quanto à gestão pública e alocação de recursos públicos para realização de transplantes, questiona-se quando estes poderiam ser utilizados para justificar os direitos individuais em detrimento dos direitos públicos? O direito de escolha não tem sentido sem os recursos adequados para realização do procedimento. Segundo o utilitarismo31, teoria utilizada para avaliação de gestão pública, as decisões deveriam ser analisadas pelas suas consequências, ou seja, a soma total de bem-estar para o maior número de pessoas.

Ainda na perspectiva de Kant32, os seres humanos devem ser tratados como um fim em si mesmo, não como meios. Na questão básica relacionada ao conceito político, moral e social do século XXI em oposição a certos aspectos do individualismo em defesa da sociedade civil, quem decide o que é bom para uma sociedade?

Toda a sociedade pode definir suas próprias normas, ou, pelo contrário, uma única forma de boa sociedade pode servir de com referência para outras comunidades. As políticas de assistência à saúde poderiam considerar como lidar eticamente com questões de saúde pública e como organizar a sociedade humano considerando o conceito do valor do ser humano que participa de pesquisas.


COLABORAÇÕES

KTB Concepção e desenho do estudo; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.

EMFS Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo.


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31. Mill JS. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes; 2000.

32. Kant I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural; 1980.










1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, SP, Brasil
2. Hospital Sarah Brasília, Brasília, DF, Brasil
3. Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Instituição: Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

Autor correspondente:
Katia Torres Batista
SMHS 501, Bloco A
Brasília, DF, Brasil - CEP 70335-901
E-mail: katiatb@terra.com.br

Artigo submetido: 1/6/2016.
Artigo aceito: 21/2/2017.

Conflitos de interesse: não há.

 

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