Open Access Revisão por pares

Case Report - Year 2025 - Volume 40Issue 1

Retalho perfurante da artéria pudenda interna para reconstrução de ferida complexa perineal pós-traumática - Relato de caso

Internal Pudendal Artery Perforator Flap for Reconstruction of Perineal Complex Wound after Trauma - Case Report

http://www.dx.doi.org/10.1055/s-0045-1809548

RESUMO

A reconstrução perineal é um tema amplamente discutido na literatura médica devido aos desafios significativos encontrados em ressecções tumorais na região perineal, como neoplasias vulvovaginais e anorretais. Embora a reconstrução após traumas perineais seja menos abordada, este caso ressalta a complexidade e a alta mortalidade associadas a lesões perineais, frequentemente ligadas a outros traumas. Com a pelve representando um desafio para a cirurgia reconstrutiva, a abordagem varia de enxertos de pele a grandes retalhos, dependendo da extensão da lesão. Este relato destaca a importância da escolha da técnica cirúrgica adequada para garantir a cobertura eficaz do defeito na área afetada.

Palavras-chave: ferimentos e lesões; períneo; relatos de casos; retalho perfurante; retalhos cirúrgicos

ABSTRACT

Perineal reconstruction is a widely discussed topic in medical literature due to the major difficulties found in tumor resection in the perineal region, such as vulvovaginal and anorectal neoplasms. Although the post-traumatic perineal reconstruction is less explored, this case highlights the complexity and high mortality rates associated with perineal wounds, frequently linked to other traumas. As the pelvis represents a considerable challenge in reconstructive surgery, the approach can vary from skin grafts to major flaps depending on the extension of the wound. This case report emphasizes the importance of choosing an adequate surgical technique to guarantee the proper coverage of the defect in the affected area.

Keywords: case reports; perineum; perforator flap; surgical flaps; wounds and injuries


Introdução

A reconstrução perineal tem sido amplamente discutida na literatura, com excelentes opções de técnicas cirúrgicas, principalmente decorrente dos desafios após ressecções tumorais desta região, como neoplasias vulvovaginais e anorretais. Entretanto, quando se trata da reconstrução perineal secundária ao trauma do períneo, as evidências são mais escassas.1

É notória a baixa incidência de traumas com significativa perda tecidual na região do períneo, devido à proteção anatômica pelos membros inferiores e à baixa exposição aos mecanismos de trauma mais comuns. A epidemiologia do trauma perineal isolado não é totalmente conhecida, embora estime-se que cerca de 0,1% a 3,3% dos traumas correspondam às lesões perineais.2,3

Pela associação frequente com outras lesões, o trauma perineal apresenta certa complexidade e está associado a alta morbimortalidade, podendo englobar traumas urogenitais, colorretais e instabilidade hemodinâmica secundária a lesão de grandes vasos ou da pelve.2 A pelve configura um desafio para a cirurgia reconstrutiva, visto que os defeitos tegumentares nessa área geralmente exigem grandes retalhos para sua reestruturação e cobertura.1,3

Apesar de não haver consenso estabelecido sobre a melhor forma de reconstrução perineal, a literatura abrange diversas alternativas técnicas, desde enxertos de pele a retalhos extensos, cujas indicações variam conforme a extensão primária da lesão.4

No homem, a sutura primária ou retalhos de avanço com tecido do escroto residual são indicados quando a perda da pele escrotal é menor do que 50%, considerando o princípio base de que a escolha para a cobertura idealmente deve englobar o preenchimento de espaços mortos, promover mobilidade tecidual e ter uma boa vascularização.4,5 Sendo assim, em defeitos maiores devemos considerar cirurgias mais complexas para abranger os princípios ideais, visto que os retalhos para a reconstrução perineal são associados a menores taxas de deiscência. Em mulheres, os retalhos permitem o reparo da vulva e vagina, se necessário.6

Nesse sentido, as principais opções atualmente descritas para reconstrução perineal são os retalhos miocutâneos, como reto abdominal, grácil e glúteo máximo, e os retalhos fasciocutâneos baseados em vasos perfurantes das artérias glúteas e pudendas.

Os retalhos 29baseados na artéria pudenda interna podem ser dissecados de diversas formas, sendo descritos como retalhos da artéria pudenda, retalhos do sulco glúteo (“gluteal fold flaps”), retalho de Singapura, retalhos de avanço perineal e retalhos em “pétala de flor de lótus” (“lotus petal flaps”).1,4,7 Retalhos com base na artéria pudenda externa também são uma boa opção para a cobertura de lesões perineais, sendo descrito o retalho superomedial da coxa, que além da artéria pudenda externa, é baseado em ramos da artéria obturatória e da artéria circunflexa femoral medial.5,7

Relato do Caso

Homem de 53 anos, vítima de trauma com maquinário agrícola, apresentou queda a cavaleiro sobre máquina de cerca, com perda tecidual, lesão perineal e extensa falha de cobertura, com ferimento descolante do púbis até o ânus, incluindo o pênis, e suspeita de trauma retal (►Fig. 1).

Fig. 1 - Ferida descolante envolvendo pênis e escroto - imagem imediatamente após atendimento médico inicial.

Foi atendido inicialmente no pronto socorro de outra instituição e, devido à presença de lesão de reto e esfíncter anal, foi submetido à abordagem cirúrgica com colostomia em alça e inclusão dos testículos na face medial de ambas as coxas pela equipe da cirurgia geral (►Fig. 2).

Fig. 2 - Ferida complexa perineal após primeira abordagem cirúrgica com inclusão dos testículos na face medial das coxas bilateralmente.

Após quatro dias, foi solicitada avaliação da equipe da Cirurgia Plástica quanto à reconstrução cirúrgica da ferida complexa perineal. Inicialmente, foram realizados curativos e desbridamentos de esfacelos para preparo do leito.

No décimo quarto dia pós-trauma, o paciente foi submetido à reconstrução do defeito perineal com retalho fasciocutâneo baseado nos ramos perfurantes da artéria pudenda interna (►Figs. 3, 4 e 5). Os testículos, que estavam inseridos na face medial da coxa, foram liberados e unidos medialmente para simular o aspecto da bolsa escrotal. Em seguida, os retalhos foram dissecados, preservando a área ao redor da tuberosidade isquiática, de onde partem a maior parte dos vasos perfurantes que o irrigam. Além disso, foi realizado um enxerto de pele parcial para cobertura do pênis, retirado da coxa esquerda por meio de dermátomo elétrico com 0,2 mm de espessura (►Fig. 6). A possibilidade de um retalho baseado nos ramos da artéria pudenda externa foi descartada, uma vez que estas poderiam estar danificadas devido ao procedimento cirúrgico realizado em outra instituição.

Fig. 3 - Retalho baseado nos ramos perfurantes da artéria pudenda interna.

Fig. 4 - Retalho baseado nos ramos perfurantes da artéria pudenda interna.

Fig. 5 - Retalho baseado nos ramos perfurantes da artéria pudenda interna.

Fig. 6 - Pós-operatório imediato de reconstrução da lesão perineal com retalho bilateral baseado nos ramos perfurantes das artérias pudendas internas e com enxerto de pele parcial no pênis.

O paciente evoluiu bem nas primeiras semanas, sem intercorrências infecciosas, com retalhos viáveis, exceto por pequena área de sofrimento cutâneo distal bilateral. Após vinte dias da cirurgia e delimitação da necrose distal, foi submetido a desbridamento e ressutura com aproximação dos tecidos locais (►Fig. 7). Atualmente, ele mantém seguimento ambulatorial e está sem queixas. Refere presença de sensibilidade local, funções urinárias e sexuais preservadas, conforme tinha anteriormente ao trauma (►Fig. 8).

Fig. 7 - Pós-operatório, 4 semanas após a cirurgia.

Fig. 8 - Pós-operatório tardio, 18 meses após a cirurgia.

Discussão

Apesar da sua baixa incidência, traumas perineais exigem uma abordagem minuciosa e individualizada, idealmente com a presença de um cirurgião plástico.8 A participação efetiva da Cirurgia Plástica em centros de trauma tem grande valia, principalmente frente a pacientes graves que possuem planejamento cirúrgico futuro, de modo a poupar os pedículos vasculares para posterior reconstrução.

As bases do aprendizado para tais reconstruções, na maioria das vezes, provêm da experiência bem estabelecida frente aos casos oncológicos pélvicos, que apresentam uma incidência maior no cotidiano do cirurgião plástico.9

A ampla gama de técnicas operatórias permite o uso de retalhos locais, sejam cutâneos, fasciocutâneos ou miocutâneos, que têm a versatilidade de promover coberturas superficiais e profundas, preencher o espaço morto quando necessário, permitindo mobilidade local e, muitas vezes, preservando a sensibilidade da região. Assim, a escolha do procedimento deve ser baseada na experiência técnica prévia de cada cirurgião e na disponibilidade dos pedículos vasculares.

Conclusão

Feridas complexas perineais demandam, muitas vezes, a associação de enxertos de pele, retalhos locais e retalhosde vizinhança. Apresentamos um caso bem sucedido de reconstrução perineal pós-traumática com enxerto de pele parcial para reconstrução do pênis e retalhos baseados nos ramos perfurantes da artéria pudenda interna para reconstrução da bolsa escrotal e períneo.

Referências

1. Coltro PS, Busnardo FF, Mônaco Filho FC, et al. Outcomes of Immediate Internal Pudendal Artery Perforator Flap Reconstruction for Irradiated Abdominoperineal Resection Defects. Dis Colon Rectum 2017;60(09):945-953. Doi: 10.1097/DCR.0000000000000875

2. Petrone P, Rodríguez Velandia W, Dziaková J, Marini CP. Treatment of complex perineal trauma. A review of the literature. Cir Esp 2016;94(06):313-322. Doi: 10.1016/j.cireng.2016.07.002

3. Lee IJ, Cha B, Park DH, Hahn HM. Role of plastic surgeons in the trauma center: national level I trauma center startup experience in South Korea. Medicine (Baltimore) 2021;100(05):e24357. Doi: 10.1097/MD.0000000000024357

4. Coltro PS, Ferreira MC, Busnardo FF, et al. Evaluation of cutaneous sensibility of the internal pudendal artery perforator (IPAP) flap after perineal reconstructions. J Plast Reconstr Aesthet Surg 2015; 68(02):252-261. Doi: 10.1016/j.bjps.2014.09.049

5. Nassar MK, Jordan DJ, Quaba O. The internal pudendal artery turnover (IPAT) flap: A new, simple and reliable technique for perineal reconstruction. J Plast Reconstr Aesthet Surg 2021;74 (09):2104-2109. Doi: 10.1016/j.bjps.2020.12.074

6. Alves PJ, Alves SST. Reconstrução escrotal com retalho súperomedial da coxa após síndrome de fournier. Rev Bras Cir Plást 2013; 28(04):656-661. Doi: 10.5935/2177-1235.2013RBCP0656

7. Rodrigues CMM, Franco D, Tavares Filho JM, Franco T, Porchat CA, Imoto FK. Reconstrução do escroto após fascite necrosante. Rev Bras Cir Plást 2010;25(03):83

8. Coltro PS, Ferreira MC, Batista BP, Nakamoto HA, Milcheski DA, Tuma Júnior P. Role of plastic surgery on the treatment complex wounds. Rev Col Bras Cir 2011;38(06):381-386. Doi: 10.1590/s0100-69912011000600003

9. Coltro PS, Busnardo FF, Farina Junior JA, Gemperli R. Comments on: “Immediate vaginal and perineal reconstruction after abdominoperineal excision using the Inferior Gluteal Artery Perforator Flap (V-IGAP)”. J Plast Reconstr Aesthet Surg 2022;75(01): 439-488. Doi: 10.1016/j.bjps.2021.05.024











1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, HCFMRP-USP, Divisão de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia e Anatomia, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Fonte de Financiamento

Os autores declaram que não receberam financiamento para este estudo.

Ensaio Clínico

Não.

Endereço para correspondência Juliana Hernandes Seribeli, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, HCFMRP-USP, Divisão de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia e Anatomia, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil (e-mail: ju.seribeli@hotmail.com).

Artigo submetido: 12/11/2024.
Artigo aceito: 24/03/2025.

Conflito de Interesses

Os autores não têm conflito de interesses a declarar.