INTRODUÇÃO
O processo de reparo após um trauma local, seja ele físico ou químico, depende da
resposta inflamatória do organismo. Uma resposta exacerbada ou diminuta repercute
de
forma significativa no resultado estético da ferida no pós-operatório, dependendo
de
fatores como faixa etária, estado nutricional, doenças crônicas prévias, terapias
medicamentosas em uso, anormalidades citogenéticas e tratamentos inadequados1.
Pouco se sabe sobre os mecanismos que mantêm o processo de cicatrização na fase
inflamatória e proliferativa, resultando em cicatrizes anormais, incluindo
cicatrizes hipertróficas e queloides, mas define-se que a base da formação do
queloide seja a deposição exagerada e desproporcional de colágeno2.
Queloides são cicatrizes cutâneas exageradas, que ultrapassam os limites da ferida
inicial e invadem o tecido normal, formados em pessoas geneticamente
predispostas3,4. Surgem normalmente 3 meses após o trauma, não regridem
espontaneamente, podem continuar a expandir-se e geram grande prejuízo estético2.
Atualmente, a corticoterapia é o tratamento mais aplicado para queloide, sendo a
triancinolona intralesional utilizada desde 19665. Seu mecanismo de ação corresponde em inibir a proliferação de
fibroblastos e síntese de colágeno e aumentar a produção de colagenase, além de
degenerar nódulos de colágeno característicos da cicatriz queloideana. Sua
aplicação, em conjunto com a excisão cirúrgica, é considerada o tratamento mais
satisfatório para queloides6. Griffith et
al.5 trouxeram em seus estudos a baixa
taxa de recorrência da associação da excisão cirúrgica do queloide com injeções de
triancinolona, o que norteou nossa pesquisa.
OBJETIVO
Objetiva-se avaliar o resultado do tratamento de queloides em orelhas após associação
de ressecção cirúrgica com infiltração de triancinolona seriada, comparando as
técnicas de ressecção parcial com a de ressecção total do tecido queloideano, em um
mesmo paciente.
MÉTODO
Trata-se de um estudo piloto prospectivo contemplando cirurgias plásticas reparadoras
de pacientes com queloides em lóbulos de orelhas bilateralmente, operados pelo mesmo
cirurgião plástico no período de julho de 2018 a janeiro de 2021 no Hospital
Regional de Sobradinho, em Brasília-DF.
Foi estabelecido o protocolo abaixo, baseado no trabalho publicado por Ferreira et
al.7, em que os autores ressecaram
parcialmente a cicatriz queloideana (intralesional), deixando margens de queloide
na
ferida operatória e comparou-se com a resposta após ressecção total (justalesional)
de uma outra cicatriz em um mesmo paciente.
Fez-se então:
Triancinolona (20mg/ml) diluída em lidocaína 2% sem vasoconstrictor (1:1),
aplicado 0,5mg/cm de queloide em cada orelha no pré-operatório, com total de
4 aplicações a intervalos de 4 semanas entre cada sessão;
Orelha direita: excisão intralesional/ parcial, mantendo 1mm de pele com
queloide em cada margem;
Orelha esquerda: excisão justalesional/ total do queloide;
Sutura simples com nylon 6-0;
Triancinolona (20mg/ml) diluída em lidocaína 2% sem vasoconstrictor (1:1),
aplicado 0,5ml em cada orelha no pós-operatório imediato e mantendo
aplicação a cada 30 dias por 6 meses;
Registro fotográfico com seguimento por até 12 meses.
Foram selecionados 18 pacientes submetidos ao critério rigoroso de avaliação e
seguimento pós-operatório. Pacientes que não apresentavam queloides em orelhas
bilateralmente, que não concordaram em participar do estudo ou não realizaram o
seguimento adequado foram excluídos, totalizando 11 pacientes ao final do estudo.
Os
pacientes não haviam realizado tratamentos prévios para queloides até o momento.
Inicialmente, realizou-se o seguinte tratamento clínico pré-operatório: aplicação
intralesional do corticosteroide (triancinolona 20mg/ml – marca Triancil®) diluída
em lidocaína 2% sem vasoconstrictor (1:1), sendo aplicado 0,5mg/cm de queloide em
cada orelha com seringa de 1ml, não ultrapassando 1 ampola por sessão por paciente.
Foram realizadas quatro sessões de aplicação, com intervalos de quatro semanas entre
cada sessão.
Após o 4º mês de tratamento clínico, realizou-se o tratamento cirúrgico conforme
protocolo, com pacientes sob anestesia local e sedação em centro cirúrgico
hospitalar. Na orelha direita, foi realizado corticosteroide intralesional e excisão
intralesional, deixando uma margem de 1mm de queloide em cada lado da ferida
operatória. Na orelha esquerda, foi realizado corticosteroide intralesional e
cirurgia com ressecção justalesional, retirando todo o queloide e apresentando
margem macroscopicamente livre. As feridas foram suturadas com pontos simples
utilizando fio Nylon 6.0. Os pontos foram retirados no 14º dia pós-operatório.
As Figuras 1, 2 e 3 mostram imagens pré, intra e
pós-operatórias conforme protocolo cirúrgico. As cicatrizes foram avaliadas no
pós-operatório por um período de 12 meses pelo cirurgião principal e pelo cirurgião
assistente. Avaliou-se sua aparência e se houve recidiva de queloide em alguma
lesão. Em caso de recidiva, o paciente poderia ser submetido a novo tratamento
conforme decisão pessoal.
Figura 1 - A: Pré-operatório de queloide em orelha esquerda. B: Queloide em
orelha direita.
Figura 1 - A: Pré-operatório de queloide em orelha esquerda. B: Queloide em
orelha direita.
Figura 2 - A e B: Intraoperatório de queloide em orelha esquerda mostrando
excisão justalesional. C: Excisão intralesional com 1mm de margem de
queloide em orelha direita.
Figura 2 - A e B: Intraoperatório de queloide em orelha esquerda mostrando
excisão justalesional. C: Excisão intralesional com 1mm de margem de
queloide em orelha direita.
Figura 3 - A: Pós-operatório de queloide em orelha esquerda. B: Queloide em
orelha direita.
Figura 3 - A: Pós-operatório de queloide em orelha esquerda. B: Queloide em
orelha direita.
Todas as lesões excisadas foram encaminhadas para estudo anatomopatológico (Figura 4).
Figura 4 - Peça cirúrgica, sendo (A) de orelha esquerda e (B) de orelha
direita.
Figura 4 - Peça cirúrgica, sendo (A) de orelha esquerda e (B) de orelha
direita.
Este projeto de pesquisa seguiu os trâmites legais determinados pela Resolução 466/12
do Conselho Nacional de Saúde no que se refere à pesquisa envolvendo seres humanos
e
de acordo com os princípios da Declaração de Helsinque. Além disso, foi aprovado
pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Daher Lago Sul e registrado na
Plataforma Brasil sob o número CAAE: 68255223.2.0000.0257 e número de relato
6.114.960 (http://aplicacap.saude.gov.br/plataformabrasil).
Análise estatística
A frequência dos dados categóricos foi comparada pelo teste exato de Fisher ou o
teste do Qui-quadrado (X2), conforme apropriado. As variáveis categóricas foram
expressas como número absoluto, percentagem, risco relativo (RR) e Intervalo de
Confiança de 95% (IC95). Foi considerado um valor de p<0,05
como significativo. As análises estatísticas foram realizadas utilizando SPSS
para Macintosh (Statistical Package for the Social Sciences, Chicago, IL, EUA)
versão 20.0 (Tabela 1).
Tabela 1 - Análise estatística.
|
OD |
OE |
RR (IC 95%) |
P valor |
RECIDIVA |
2 (18,2%) |
4 (36,4%) |
0,389 (0,055 a 2,771) |
0,338 |
Tabela 1 - Análise estatística.
RESULTADOS
Foram avaliados 11 pacientes e 22 orelhas, sendo 5 pacientes do sexo masculino e 6
pacientes do sexo feminino. Do perfil etário, observa-se idade média de 23 anos,
variando de 19 a 28 anos. Todos os pacientes foram submetidos ao tratamento de
queloides em orelhas conforme protocolo. Todos os resultados anatomopatológicos
evidenciaram que as lesões se tratavam de queloides (100%), sem quaisquer
malignidades. Foi considerado recidiva de queloide qualquer pápula ou nódulo
endurecido que surgisse além da linha de cicatriz do lóbulo da orelha, como
observado na Figura 5, sem nenhuma análise
quanto às dimensões ou volume da lesão. Nenhum paciente do estudo apresentou reação
anafilática à dose de triancinolona aplicada.
Figura 5 - A: Orelha direita sem recidiva. B e C: Recidiva de queloide em orelha
esquerda após 2 anos de tratamento.
Figura 5 - A: Orelha direita sem recidiva. B e C: Recidiva de queloide em orelha
esquerda após 2 anos de tratamento.
Da avaliação das cicatrizes, 2 pacientes apresentaram recidiva bilateralmente do
queloide após 6 meses da primeira excisão cirúrgica, correspondendo a 18% dos casos
e 2 pacientes do sexo feminino tiveram recidiva unilateral no lóbulo da orelha
esquerda. A recidiva da lesão não foi relacionada quanto ao tamanho prévio do
queloide antes do tratamento. Assim, 4 de 11 pacientes tiveram algum tipo de
recidiva, totalizando 36% de recidiva em nosso trabalho.
Foi possível observar que a excisão total do queloide (orelha esquerda) teve mais
recidivas do que o lado contralateral em que foi deixada margem de 1mm de queloide
na cicatriz (orelha direita), sendo 36% de recidivas para orelha esquerda
versus 18% para orelha direita (p=0,338), como
pode ser observado na Tabela 1.
Quanto ao nível de satisfação com a cicatriz pós-operatória, 7 pacientes relataram
satisfação com ambas as cicatrizes, 2 pacientes relataram estar satisfeitos com o
lado em que não houve recidiva (orelha direita) e insatisfeitos com a orelha
esquerda devido à recidiva e 2 pacientes estavam insatisfeitos com os dois lados
devido à recidiva total do queloide.
Quanto à avaliação do examinador, não houve prejuízo na cicatriz da orelha direita
em
que houve excisão intralesional quando comparada à orelha esquerda cuja excisão fora
justalesional, apresentando cicatrizes planas e satisfatórias nos casos em que não
houve recidiva do queloide.
Quanto à avaliação da cicatriz dos pacientes que apresentaram algum tipo de recidiva
(4 pacientes), observou-se que a cicatriz queloideana atingira tamanhos similares
aos queloides prévios dos mesmos pacientes.
DISCUSSÃO
Alterações relacionadas à exacerbação da resposta cicatricial, de fatores não
completamente compreendidos, podem dar origem aos queloides, que, diferentemente da
cicatriz hipertrófica, ultrapassam os limites da ferida. Os principais sintomas são
dor, prurido e hiperpigmentação, ocorrendo em 27% dos pacientes3,5. Como fatores de risco
podemos encontrar: pessoas de pele negra ou de origem asiática, com idade entre 10
e
30 anos, história familiar positiva para cicatriz queloideana, tipo sanguíneo A e
presença de HLA B142. Os locais mais
acometidos são as áreas pré-esternal, nuca, orelha, deltoide e área da barba nos
homens2. Estudos mais recentes mostram que
os fibroblastos derivados dos queloides apresentam expressão exacerbada do gene
p535, diminuindo a apoptose, e do TGF-BETA
e fibroblastos, que produzem maior quantidade de colágeno4.
A ressecção cirúrgica isolada do queloide resulta em falha terapêutica em 40 a 100%
dos casos, visto que estimula uma síntese adicional de colágeno, segundo Al-Attar
et
al.6. A excisão subtotal apresentou
menores taxas de recorrência, já que a borda da cicatriz do queloide prévio
imobiliza a lesão e gera menor tensão local, diminuindo o estímulo traumático para
síntese de colágeno. Além disso, fios monofilamentares geram menor resposta
inflamatória local6.
Berman & Flores8 observaram que a taxa de
recidiva após tratamento adequado (excisão cirúrgica associada à injeção
intralesional de corticoide) está em torno de 20% e a taxa de recorrência com
somente excisão cirúrgica flutua entre 50-80%2.
Ferreira et al.7 realizaram um estudo
semelhante ao nosso e observaram recidiva de 20% das lesões submetidas a ressecção
intralesional versus recidiva de 45% das ressecções justalesionais.
Cosman & Wolff9 concluíram que retirar
totalmente o queloide não diminui a chance de recorrência quando comparado com a
remoção parcial.
A literatura preconiza o mínimo de 12 a 24 meses de observação. Devido à dificuldade
de acompanhamento ambulatorial a longo prazo, nosso estudo preconizou a avaliação
destes pacientes durante 12 meses. Um dos pacientes que apresentou recidiva do
queloide foi submetido a novo tempo operatório e está realizando novas sessões
mensais de aplicações de triancinolona. A outra paciente que apresentou recidiva
ainda está realizando exames pré-operatórios para nova abordagem.
É importante citar os efeitos colaterais da aplicação de corticosteroides, sendo
eles: atrofia da pele, telangiectasias, despigmentação, infecção, necrose e
ulceração. Efeitos sistêmicos como síndrome de Cushing são raros2,10.
Segundo Ketchum et al.11, para evitar efeitos
adversos, deve-se injetar a droga somente na base do queloide e não em tecidos
normais adjacentes. Nenhum paciente do nosso estudo apresentou complicações locais
ou sistêmicas referentes à corticoterapia.
Segundo Al-Attar et al.6 e Burusapat et
al.12, a terapia combinada de excisão
cirúrgica com aplicação seriada de triancinolona é considerado um dos tratamentos
com resultados mais satisfatórios e com menores taxas de recorrência e complicações
para queloides.
Por fim, observa-se grande dificuldade em analisar precisamente o tratamento adequado
dos queloides, visto que não há padronização da terapêutica em artigos científicos,
a maioria apresentando pequeno número de pacientes e falta de homogeneização na
descrição e avaliação das diferentes cicatrizes13. Além disso, acreditamos que devido ao pequeno tamanho da amostra
(N=11 pacientes/22 orelhas), não obtivemos significância estatística ao comparar as
duas técnicas. No entanto, é possível dizer que observamos relevância clínica (18
vs. 36%).
CONCLUSÃO
No presente estudo observamos que, quando associada ao tratamento com triancinolona
no pré, intra e pós-operatório, a excisão parcial do queloide apresentou menores
taxas de recidiva local quando comparada à excisão total do queloide.
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Brasília - Distrito Federal - Brasil
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Anestesiology Department - Brasília - Distrito Federal - Brasil
Autor correspondente: Marcela Santos
Vilela SHIS QI 25 Conjunto 11 Casa 10, Lago Sul, Brasília, D F,
Brasil. CEP: 71660-310 E-mail: marcelasvilela@gmail.com
Artigo submetido: 09/09/2023.
Artigo aceito: 30/04/2024.
Conflitos de interesse: não há.