INTRODUÇÃO
A doença de Madelung, conhecida como lipomatose simétrica múltipla ou síndrome de
Launois Bensause, foi descrita pelo inglês Sir Benjamin Brodie pela primeira vez em
1846 como um difuso concentrado de gordura em região cervical. Em 1888, Otto
Madelung publicou a primeira série de casos com 33 pacientes; a partir daí, a doença
começou a ser mais abordada. Ela é caracterizada pelo acúmulo simétrico difuso de
tecido adiposo, com crescimento tumoral lento e aumento progressivo1.
A etiologia da síndrome permanece incerta, mas parece estar relacionada ao uso
crônico de bebidas alcoólicas e alterações dos genes MFN2, o qual interfere no
metabolismo da leptina e adipocinas, e o gene LIPE, que atua em hormônios chaves
para o metabolismo dos triglicerídeos2, 3. A tomografia computadorizada é o principal
método para diagnóstico, estadiamento pré-operatório e acompanhamento pós-
operatório dos pacientes. A característica tomográfica da doença é a distribuição
de
tecido lipomatoso não encapsulado e homogêneo, com limites imprecisos e sem plano
de
clivagem com o tecido subcutâneo adjacente4.
Assim como a etiologia é desconhecida, medidas terapêuticas definitivas ainda não
foram estabelecidas, apenas formas paliativas, como dermolipectomia e lipoaspiração,
empregadas com a finalidade de melhorar a qualidade de vida do paciente, visto que
é
uma doença que na maioria dos casos é assintomática, mas com alterações estéticas
importantes1.
Os tratamentos realizados buscam estabilizar as comorbidades e melhorar o aspecto
estético, o qual impacta negativamente na qualidade de vida dos pacientes,
sobretudo, pela recorrência das tumorações5.
Dessa forma, o objetivo desse estudo é descrever o caso de um paciente com síndrome
de Madelung, relatando a conduta e manejo terapêutico utilizado no tratamento das
alterações da doença de base.
RELATO DE CASO
V.S.G., 42 anos, sexo masculino, atendido no ambulatório de cirurgia plástica do
Hospital das Clínicas, em Recife, PE, em fevereiro de 2022, com diagnóstico da
doença de Madelung. Relata interrupção de ingesta alcóolica há 2 anos, sem
comorbidades e uso de medicamentos. Ademais, realizou biópsia em maio do ano
anterior compatível com lipoma. Ao exame físico, foram verificadas volumosas massas
de consistência elástica ao redor do pescoço e supraclavicular (Figura 1).
Figura 1 - Pré-operatório da lipectomia e lipoaspiração.
Figura 1 - Pré-operatório da lipectomia e lipoaspiração.
A proposta terapêutica foi de uma lipoaspiração com exérese do tumor em três tempos
cirúrgicos. O parecer cardiológico solicitado indicou risco intermediário, porém sem
contraindicação às cirurgias. O 1º tempo consistiu em uma lipoaspiração associada
à
lipectomia cervical anterior esquerda (Figura 2). No 4º dia pós-operatório (DPO) do 1º tempo cirúrgico, o paciente evoluiu
assintomático e com presença de equimoses e edema periférico em ferida operatória
(FO) cervical e débito de dreno inferior a 30ml. No 26º DPO o paciente referiu
endurecimento da área operada, sem demais queixas.
Figura 2 - Pós-operatório imediato do 1º tempo cirúrgico de lipectomia e
lipoaspiração anterior esquerda.
Figura 2 - Pós-operatório imediato do 1º tempo cirúrgico de lipectomia e
lipoaspiração anterior esquerda.
Após seis meses da realização do primeiro tempo cirúrgico, foi realizado o 2º tempo
cirúrgico, o qual constou em uma lipectomia em face lateral esquerda do pescoço e
face e região dorsal (Figura 3). No 5º DPO o
paciente evoluiu assintomático, porém com grande quantidade de seroma no dreno,
sendo resolvido espontaneamente até o 15º DPO. Após três meses do 2º tempo
cirúrgico, o paciente apresentava cicatrizes discretamente hipertróficas e
hipercrômicas.
Figura 3 - Pós-operatório imediato do 2º tempo cirúrgico de lipectomia e
lipoaspiração posterior esquerda.
Figura 3 - Pós-operatório imediato do 2º tempo cirúrgico de lipectomia e
lipoaspiração posterior esquerda.
O 3º tempo cirúrgico foi programado 5 meses após o 2º tempo, tendo como objetivo a
realização de uma lipoaspiração com lipectomia cervical direita (Figura 4). No 1º DPO o paciente negou dor, febre
e alterações sensoriais e motoras em região ipsilateral ao procedimento. Apresentou
ainda presença de edema e equimose lateralmente à cicatriz e conteúdo do dreno
sero-hemático <20ml, mas evoluindo com FO cicatrizada e de bom aspecto. No 12º
DPO, paciente comparece com FO de bordas bem cooptadas e sem dor à mobilização,
porém apresentando ainda equimose lateralmente à cicatriz e discreto edema à
palpação, porém sem evidência de infecção. O aspecto final do pós-operatório tardio
de 4 meses após o 3º tempo cirúrgico pode ser visto na Figura 4.
Figura 4 - Aspecto do pós-operatório tardio após 4 meses do 3º tempo
cirúrgico.
Figura 4 - Aspecto do pós-operatório tardio após 4 meses do 3º tempo
cirúrgico.
DISCUSSÃO
Neste estudo, o paciente relatado se enquadra no perfil clássico da síndrome: um
homem de 45 anos com passado etílico. A doença de Madelung é caracterizada por
acometer majoritariamente pacientes do sexo masculino de meia idade com antecedentes
de alcoolismo. No entanto, casos em mulheres não alcoólatras podem ocorrer. Ademais,
as principais comorbidades associadas à doença são: nefropatia, hepatopatia e
anormalidades metabólicas6. A única
comorbidade relatada pelo paciente foi um passado de esteatose hepática.
A doença geralmente não se apresenta com sintomas dolorosos. Nesse caso, a principal
queixa do paciente era estética por acometer regiões de grande exposição.
Inicialmente, Hugo e Conway classificaram a lipomatose difusa simétrica em
predominantemente em tronco e coxas; e predominantemente cervical, como descrita por
Madelung. Uma década depois, as lipomatoses benignas foram classificadas em 3 grupos
clínicos por Carlsen e Thomnsen: lipomatose difusa congênita (Tipo 1), lipomatose
difusa simétrica (Tipo 2), na qual se enquadra o paciente relatado, e lipomatose
múltipla (Tipo 3).
No entanto, essa classificação não é bem exata. Estudos mais recentes já
classificaram a síndrome em dois tipos distintos: o tipo I, mais comum em homens e
que geralmente se manifesta através de uma distribuição simétrica de depósitos de
gordura superficiais, dando uma aparência “pseudoatlética” e possivelmente causando
sintomas de compressão; e o tipo II, que afeta tanto homens quanto mulheres,
apresentando-se de forma similar à obesidade generalizada7.
O uso de bebidas alcoólicas pode influenciar ou agravar a condição. Nesse caso, o
paciente já havia cessado o etilismo há 2 anos e não retornou após a realização da
cirurgia, sendo algo benéfico na recuperação pós-operatória. Sob o ponto de vista
histológico, na doença de Madelung os adipócitos encontrados nas massas gordurosas
são menores, e há maior presença de tecidos fibrosos e vasculares do que o
normal7. Também é observada a perda de
células mielinizadas de grande porte, embora não ocorra desmielinização ou
degeneração axonal associada ao consumo crônico de álcool. Após a cirurgia, o risco
de recorrência é reduzido com a abstinência de álcool. Algumas mudanças no estilo
de
vida que melhoram os níveis de açúcar no sangue e o controle dos lipídios podem
prevenir o crescimento das massas adiposas, mas não reduzem seu tamanho.
Alguns estudos demonstraram bons resultados a longo prazo em técnicas não invasivas
como na intralipoterapia, na qual a massa é injetada com
fosfatidilcolina/desoxicolato. A intralipoterapia limita o crescimento das massas
adiposas, mas não é altamente eficaz na redução do seu volume8. Por isso, nesse paciente, a cirurgia foi a técnica
terapêutica de escolha.
A associação da lipectomia cervical associada à lipoaspiração demonstrou resultados
satisfatórios no manejo de nosso paciente. Dentre as técnicas de escolha, a
lipectomia é a opção terapêutica mais realizada, pois permite uma exposição
satisfatória e a remoção completa, com bom controle de lesões iatrogênicas de
estruturas próximas, sobretudo, de vasos e nervos8. Apesar disso, a lipectomia não é tecnicamente fácil, porque os
lipomas não são encapsulados e infiltram facilmente o tecido circundante9.
Uma desvantagem da lipectomia é a taxa aumentada de complicações cirúrgicas, como
infecções, hemorragias, hematomas, fístulas linfáticas e cicatrização
patológica9, 10. Nosso paciente evoluiu com hematoma e um seroma
pós-operatório, mas se resolveu pouco tempo depois, não deixando sequelas. Apesar
de
possuir discretas cicatrizes inestéticas, o paciente referiu grande melhora na
qualidade de vida após remoção do lipoma.
Um estudo analisou 95 pacientes com síndrome de Madelung tratados com lipectomia e/ou
lipoaspiração. Dos que realizaram lipectomia de forma isolada (n=74), a taxa de
recaída foi de 5%. Já entre os que fizeram ambas as técnicas (n=16), a taxa foi de
12,5%. No entanto, a população amostral é diferente entre os grupos e não há estudos
randomizados comparando as técnicas combinadas e isoladas. A lipoaspiração é menos
traumática e tem melhores resultados estéticos do que a cirurgia. No entanto, há
pouca experiência clínica com a lipoaspiração neste grupo de pacientes, sendo uma
terapia adjuvante em muitos casos6. Neste
estudo, a combinação de técnicas mostrou-se favorável na terapêutica do paciente,
não implicando em recidivas até o presente momento.
CONCLUSÃO
A combinação de lipoaspiração cautelosa seguida de lipectomia seriada mostra-se
benéfica, aumentando a segurança do manejo das estruturas cervicais e preservando
a
vascularização dos retalhos. Ademais, a união de técnicas permite um resultado
estético de maior qualidade, garantindo ao paciente melhor qualidade de vida.
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1. Hospital das Clínicas da Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, PE, Brasil
2. Faculdade Pernambucana de Saúde, Recife, PE,
Brasil
3. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE,
Brasil
Autor correspondente: Pedro Henrique de
Araújo Silva Avenida Prof. Moraes Rego, 1235, Recife, PE, Brasil.
CEP: 50670-901, E-mail: henrique2_araujo@hotmail.com
Artigo submetido: 08/09/2023.
Artigo aceito: 30/04/2024.
Conflitos de interesse: não há.
Instituição: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, PE, Brasil.