INTRODUÇÃO
Os cuidados com câncer de cabeça e pescoço tem evoluído nos últimos anos em termos
de
diagnóstico, prognóstico e tratamento. Seu arsenal terapêutico inclui quimioterapia,
radioterapia e cirurgia, cujos grandes avanços se concentram na microcirurgia
reconstrutiva1,2. Apesar disto, preservar e restaurar a
simetria da face após o tratamento ainda é um desafio, comprometendo
significativamente a qualidade de vida dos pacientes3-5.
Nos últimos vinte anos, houve um aumento na utilização de enxerto de gordura autóloga
para tratamento de defeitos de volume e de contorno em cirurgia estética
reconstrutiva6-8. Sua popularização pode ser atribuída à ampla
disponibilidade do material, à baixa morbidade do local de lipoaspiração na área
doadora e aos benefícios intrínsecos, como procedimento minimamente invasivo9-11.
O tecido adiposo contém células estromais multipotentes, que secretam uma variedade
de fatores tróficos, tais como o fator de crescimento transformante beta
(TGF-β). Entre suas ações, destacam-se a supressão inflamatória e apoptótica
e a promoção da angiogênese e da mitose de células parenquimatosas12-15. A sobrevivência e a longevidade dos enxertos de gordura são
variáveis após o procedimento. Métodos para aumentar sua sobrevivência e de seus
constituintes celulares ainda estão sob investigação16-18.
A despeito dos avanços, a literatura médica carece de estudos no que tange às
complicações, à segurança e aos resultados de melhora estética e funcional em
pacientes oncológicos submetidos à cirurgia reconstrutiva através do uso do enxerto
de gordura para radiodermite de cabeça e pescoço.
OBJETIVOS
O presente estudo objetiva revisar a literatura médica quanto aos efeitos colaterais,
benefícios e malefícios do uso terapêutico de lipoenxertia em radiodermite, após
tratamento de câncer de cabeça e pescoço.
MÉTODOS
Este é um estudo observacional, analítico e secundário. A aprovação do comitê de
ética em pesquisa da Universidade Federal de São Paulo foi emitida sob o número
127310/2017.
Foi realizada revisão de literatura em conformidade com a declaração PRISMA. Foram
utilizados os descritores “adipose tissue”, “transplantation”,
“neoplasms”, “head and neck neoplasms” e
“radiotherapy”; e os termos não descritores “fat
grafting”, “fat transplantation” e “fat
graft”. Todos os descritores foram validados pelo sistema descritores
em ciências da saúde. As bases de dados PubMed e SciELO foram acessadas em abril
de
2020 para pesquisa de estudos publicados entre 01/01/2001 a 01/01/2020 nas línguas
portuguesa, inglesa ou espanhola.
A Quadro 1 sintetiza os atributos usados para
avaliação dos estudos encontrados durante a busca nas bases de dados. Foram
incluídos estudos que satisfizessem os seguintes critério: (a) ensaios clínicos
randomizados ou quase-randomizados, coortes prospectivas/retrospectivas e séries
de
casos prospectivas/retrospectivas; (b) população submetida a tratamento cirúrgico
e
radioterápico para câncer de cabeça e pescoço; (c) população livre de doença há
pelo
menos 2 anos; (d) intervenção com técnica de lipoenxertia em face e pescoço
comparável a outro tipo de reconstrução ou ausência de reconstrução; (e) desfecho
com análise de efeitos colaterais, benefícios e malefícios da lipoenxertia. Foram
excluídos estudos que não se enquadrassem nestes critérios.
Quadro 1 - Pergunta PICO para inclusão dos artigos.
População |
Pacientes tratados para câncer de cabeça e pescoço, com
radiodermite após e livres de doença por pelo menos 2 anos
|
Intervenção |
Lipoencertia para radiodermite pós reconstrução
oncológica de cabeça e pescoço
|
Comparação |
Ausência de radiodermite por câncer de cabeça e
pescoço
|
Desfecho |
Análise de efeitos colaterais, beneficios e
malefícios
|
Quadro 1 - Pergunta PICO para inclusão dos artigos.
RESULTADOS
Ao todo, foram encontrados 212 artigos, sendo 133 na base de dados PubMed e 79
artigos na base SciELO. Dezoito artigos foram selecionados para avaliação minuciosa,
sendo três excluídos por abordarem população não oncológica19-21, quatro
revisões22-25 e quatro estudos experimentais26-29. Somente sete estudos contemplaram os critérios de inclusão, sendo
esses séries de casos4,30-35. Não foram encontrados ensaios clínicos randomizados ou estudos de
coorte em humanos. A Figura 1 ilustra os fluxos
de inclusão e exclusão dos estudos.
Figura 1 - Organograma dos artigos selecionados para revisão.
Figura 1 - Organograma dos artigos selecionados para revisão.
Phulpin et al.31, em 2009, submeteram onze
pacientes com remissão de câncer de cabeça e pescoço após tratamento com
radioterapia externa na quantidade de 50Gy ou mais à lipoenxertia. O grupo contou
com sete homens e a idade variou de 44 a 73 anos (mediana=54 anos). Os períodos
de
seguimento pós-operatório variaram de 2 a 88 meses (média=39,9 meses). Somente
dois
pacientes foram acompanhados por menos de 24 meses. Todos os pacientes toleraram
a
cirurgia e o pós-operatório imediato. Equimose, hiperemia e edema transitórios
ocorreram nas primeiras 48 horas. Clinicamente, os enxertos de gordura
proporcionaram melhora estrutural. No entanto, a reabsorção de gordura enxertada,
estimada em aproximadamente 20 a 40%, foi observada para todos os pacientes. Devido
à importância dos defeitos, foram realizadas reinjeções em seis pacientes pelo
menos
três meses após a primeira injeção. Nos locais de preenchimento de gordura, houve
melhora da qualidade da pele irradiada. Clinicamente, o teste cutâneo mostrou
maior
maleabilidade, sendo a pele mais macia e permitindo alguma melhora funcional.
Foi
também relatada melhora na qualidade de vida de todos os pacientes.
Rigotti et al.35, em 2007, também estudaram
enxerto de gordura na reconstrução de tecidos irradiados. A gordura foi colhida
usando seringas de 2cc e cânulas de 2mm após infiltração tumescente. O aspirado
foi
purificado por centrifugação a 2700rpm e as camadas de óleo e líquido descartadas.
A
citometria de fluxo foi utilizada para isolar a fração vascular estromal, cultivada
para obtenção de células-tronco mesenquimais para estudo adicional. Todas as
células-tronco foram induzidas a se diferenciarem em adipócitos, osteoblastos
ou
condrócitos, dependendo do meio de cultura. Análises ultraestruturais foram
realizadas no tecido irradiado antes de qualquer enxerto. Foi descoberto que este
se
assemelhava a tecidos afetados por isquemia crônica, caracterizando-se por
adipócitos danificados, diminuição da densidade capilar e morfologia capilar
anormal. Após o transplante de células-tronco adiposas, a estrutura do tecido
melhorou. Com base em análises de tecidos em diferentes momentos no pós-tratamento,
foi hipotetizado que as células-tronco adiposas liberam fatores angiogênicos que
levam à neoangiogênese e, assim, melhoram a oxigenação dos tecidos. Também foi
sugerido que a maioria dos adipócitos maduros é irreversivelmente danificada no
processo de colheita. Os verdadeiros efeitos do lipofilling, pois,
seriam provenientes das contribuições regenerativas das células-tronco adiposas.
Karmali et al.30, em 2015, conduziu uma
análise retrospectiva de 119 pacientes submetidos a enxerto autólogo de gordura
para
reconstrução oncológica de cabeça e pescoço. O desfecho primário foi a recorrência
oncológica. Um total de 190 procedimentos de enxerto de gordura foi realizado
em 116
pacientes elegíveis. O tempo médio entre a radioterapia e a primeira lipoenxertia
foi de 40,5 meses. O tempo médio da cirurgia oncológica para o primeiro tratamento
de enxerto de gordura foi de 35,1±59 meses. O número médio de lipoenxertias
por paciente foi de 1,6±1 (intervalo de 1 a 6) com um volume médio de injeção
de 24,8±20,2mL. O tempo de seguimento foi de 24±22,3 meses. A recidiva
oncológica foi observada em cinco pacientes, dos quais dois eram locais, um regional
e dois evoluíram com metástase. Todas as recidivas locais e regionais ocorreram
em
áreas sem continuidade com a área injetada. A taxa global de complicações foi
de 4%
e incluiu duas infecções, dois cistos no local da injeção e uma hipercorreção.
Coleman34, em 2006, realizou lipoenxertia com
abdome inferior como área doadora. A lipoenxertia foi realizada no sentido de
cruz
com sobreposição de planos no tecido subcutâneo profundo e superficial. A média
de
volume lipoenxertado foi 24ml. O tempo médio de procedimento foi 1,8 horas com
21
horas de internação subsequente. Todos os pacientes foram submetidos à anestesia
geral e seguidos durante um ano. Foi observado que as injeções de gordura não
apenas
preenchiam os defeitos dos tecidos moles, mas também melhoravam a pele subjacente.
Foi relatado um caso com excisão radical de rabdomiossarcoma facial e radioterapia
adjuvante. Após o lipofilling da área irradiada, um aumento
sustentado do volume facial foi observado clinicamente. Durante seu segmento,
nenhuma complicação foi observada. O resultado foi avaliado através do questionário
Aesthetic and Functional Evaluation System, que avalia a pele
esteticamente pela dimensão de defeito e flexibilidade da pele, e funcionalmente
pela quantificação de disfonia, disfagia, alteração da mobilidade da cabeça e
pescoço e alteração em engolir ou mastigar. Houve melhora estética em 83% e
funcional em 92% dos pacientes. Foi observada, através de registro fotográfico,
uma
reabsorção do enxerto de gordura de 25 a 50% em todos os pacientes.
Gutiérrez et al.4, em 2016, conduziram um
estudo para avaliar duração do procedimento, técnica anestésica, duração de
internação, complicações e o resultado estético e funcional do tratamento. Os
critérios de inclusão foram pacientes com história de câncer oral e tratamento
cirúrgico e radioterápico com pelo menos 3 anos de remissão completa; grau 3 ou
4 no
Aesthetic and Functional Evaluation System, boa condição de
saúde confirmada por avaliação pré-operatória e anestésica; e anuência ao termo
de
consentimento. Foram exclusos pacientes com lipoenxertia prévia ou os que não
tinham
tecido adiposo suficiente para o procedimento. Foram inclusos doze pacientes,
sendo
dez submetidos a tratamento cirúrgico e radioterapia e dois apenas ao cirúrgico.
Mojallal e Foyatier33, em 2004, publicaram
alguns casos envolvendo enxerto de tecido adiposo em tecido irradiado. Eles
relataram resultados positivos, incluindo melhor crescimento de tecidos; a melhora
após o enxerto autólogo de gordura não se limitou ao subcutâneo.
Em 2018, Karmali et al.32 fizeram novo estudo
com 116 pacientes (71 mulheres). A média de idade foi de 55,9 anos (variando de
30 a
79 anos) e o índice de massa corporal médio foi de 26,7±5,7kg/m2. Onze pacientes (9%) eram fumantes ativos.
Oitenta e um (69%) receberam radioterapia antes da lipoenxertia e dois pacientes
(1,7%) receberam radioterapia após o enxerto. Setenta e seis pacientes (66%) foram
submetidos a alguma forma de reconstrução com retalho livre para defeito causado
por
cirurgia oncológica, enquanto 40 pacientes (34%) não foram submetidos a retalho
e só
receberam lipoenxertia autóloga para reconstrução. Treze pacientes (11%) foram
submetidos à cirurgia do pescoço para tumores com histologia benigna, enquanto
103
(89%) tinham doença maligna. Tumores benignos foram localmente agressivos com
indicação de ressecção radical. O tempo médio entre o final da radioterapia e
o
primeiro tratamento de lipoenxertia foi de 40,5±24,3 meses. O tempo médio
entre a cirurgia de câncer de cabeça e pescoço e a primeira lipoenxertia foi de
35,1±59,0 meses. O tempo médio entre o primeiro tratamento de lipoenxertia e
o último acompanhamento foi de 35,8±23,1 meses.
No total, 190 procedimentos de lipoenxertia foram realizados em 116 pacientes. O
número médio de tratamentos por paciente foi de 1,6±1,0 (variação de 1 a 6),
com um volume médio de injeção de 24,8±20,2mL por sessão. Todos os
procedimentos foram realizados sob anestesia geral. As principais áreas doadoras
foram abdome, quadril e flancos. Foram observadas três recidivas locais, uma
recidiva nodal regional e duas metástases distantes. Complicações relacionadas
ao
procedimento foram observadas em 5,1% dos casos: dois casos de infecção, cistos
de
óleo e necrose de gordura. Não houve morbidade do sítio doador. Todas complicações
foram resolvidas sem nova cirurgia ou hospitalização.
DISCUSSÃO
Os efeitos da radiação nos tecidos podem ser classificados como agudos,
consequenciais ou tardios. Efeitos agudos são mais perceptíveis em tecidos com
rápida renovação celular, como epitélio ou intestino. Observa-se aumento nas
citocinas pró-inflamatórias interleucinas 1 e 8, superexpressando TGF-ß, VEGF
(vascular endothelial growth factor), TNF-α
(tumor necrosis factor) e interferon-γ, e morte das
células funcionais. Os mecanismos de proliferação de células-tronco danificadas
por
radiação substituem lentamente as células perdidas. Efeitos agudos podem persistir,
sendo então classificados como consequentes36.
Efeitos consequentes continuam após a conclusão da radioterapia e são mais comuns
nos
tecidos das vias urinárias e intestinais, pele e mucosa. Os efeitos tardios, por
sua
vez, se desenvolvem meses a anos após o tratamento. Embora não totalmente
compreendidos, os mecanismos integram uma cascata defeituosa na cicatrização:
citocinas se infiltram nos tecidos irradiados, fibrina extravasa para o interstício,
colágeno é depositado e fibrose ocorre com isquemia, atrofia e danos circulatórios
associados37. Os queratinócitos
irradiados expressam queratinas moleculares baixas 5 e 14 em vez das queratinas
moleculares altas 1 e 10, expressas em feridas normais. A radiação também desregula
as metaloproteínas da matriz e as metaloproteínas inibidoras de tecidos, causando
deposição de colágeno desorganizado por fibroblastos38.
Flacco et al.29, em 2018, descobriram que
tecidos cronicamente danificados pela radiação apresentavam afinamento epidérmico
com esclerose eosinofílica homogeneizada do colágeno dérmico, fibroblastos grandes
e
atípicos, e espessamento fibroso com obliteração luminal dos vasos profundos.
Tais
alterações são produtos da expressão de citocinas induzidas por radiação e espécies
reativas de oxigênio, levando à apoptose celular. Apesar da eficácia óbvia da
radioterapia para reduzir as taxas de recorrência local nos cânceres de cabeça
e
pescoço, os danos colaterais aos tecidos moles ao redor podem ser deformadores
e
debilitantes.
Garza et al., em 201426, relataram que o
enxerto de gordura nos tecidos irradiados diminuía a espessura dérmica e o conteúdo
de colágeno, enquanto aumentava a vascularização. Em seu estudo, a gordura humana
foi obtida por lipoaspiração e isolada por gravidade. O lipoaspirado foi injetado
no
couro cabeludo de rato irradiado com agulhas de calibre 16 dentro de 2 horas após
a
coleta. A pele foi inspecionada histologicamente antes e após o enxerto de gordura.
Os tecidos irradiados antes do enxerto de gordura mostraram espessamento dérmico
e
aumento de colágeno com baixa densidade vascular, conforme medido por marcação
imunohistoquímica de CD31. A retenção de volume de enxerto de gordura foi
significativamente menor nos tecidos irradiados. A sobrevida do enxerto de gordura,
avaliada com tomografia computadorizada (TC), diminuiu significativamente nos
tecidos irradiados.
As experiências de Luan et al.27, em 2016,
também relataram melhora na microestrutura e na vascularização dos tecidos
irradiados após o enxerto de gordura. Em seus estudos, camundongos irradiados
foram
injetados com lipoaspirado humano com células-tronco derivadas de adipócitos
suplementares. A retenção do volume do enxerto de gordura foi medida usando imagens
de TC 3D. Os enxertos de gordura e a pele sobreposta foram colhidos 8 semanas
após a
injeção e examinados histologicamente quanto à vascularidade, espessura dérmica
e
densidade de colágeno. Foi encontrada retenção de volume significativamente
aumentada de enxertos de gordura quando foram enriquecidos com células-tronco
adiposas. Curiosamente, as alterações histológicas esperadas da radiação, como
aumento da espessura dérmica, hipovascularidade e aumento da densidade de colágeno,
foram discretamente atenuadas com a lipoenxertia. Esses efeitos foram acentuados
com
a adição de células-tronco.
Similarmente, Hadad et al.28, em 2010,
descobriram que, quando uma combinação de células-tronco adiposas e plasma rico
em
plaquetas era injetada em tecidos irradiados, a densidade microvascular aumentava
e
o tempo de cicatrização da ferida acelerava significativamente.
A revisão de Haubner et al.24, em 2012,
investigou os possíveis mecanismos, pelos quais as células-tronco adiposas melhoram
a cicatrização de feridas no tecido irradiado. Foi reportado que células-tronco
derivadas do tecido adiposo sintetizam fatores de crescimento e citocinas, tais
como
VEGF, platelet-derived growth factor (PDGF) e TGF-β, que
aceleraram a cicatrização de tecidos irradiados em alguns casos.
Especificamente na cabeça e no pescoço, a pele, a mucosa e as glândulas salivares
são
propensas a efeitos agudos de radiação. As células da pele são esgotadas, gerando
eritema, descamação, prurido, hipersensibilidade e dor39. O dano às glândulas salivares causa xerostomia, edema e
dor. A mucosite pode evoluir com disfagia e dor grave que incapacita a alimentação.
Danos causados pela radiação nos músculos do pescoço agravam a disfagia e causam
trismo em casos graves. Outras complicações conhecidas incluem fibrose e
osteorradionecrose40.
O uso da lipoenxertia vem ganhando espaço na cirurgia plástica, com técnicas cada
vez
mais refinadas e com a melhor compreensão da ação das células mesenquimais,
abundantes no tecido gorduroso6-8,21. De fato, o transplante autólogo de gordura
vem mostrando-se eficaz e com baixo custo para a correção de deformidades da face,
sendo preferível ao implante sintético, visto que apresenta textura, contorno
e
expressões faciais mais naturais19,24,25,30-34.
Alguns métodos alternativos ao tratamento de lipoenxertia utilizados são os agentes
de preenchimento dérmico, tais como implantes de colágeno bovino, injeções e
próteses de silicone ou preenchimento com ácido hialurônico. Estes, porém, levam
à
maior reação inflamatória local e a perda da textura da pele. Para a correção
óssea,
alternativas incluem autoenxertos ósseos, próteses de acrílico, hidroxiapatita
e
implantes aloplásticos. Todavia, esses materiais podem causar infecção ou
extrusão19,30.
O enxerto autólogo de gordura pode precisar de novas intervenções, visto que toda
a
estrutura projetada na cirurgia cosmética se perde com o tempo por ação da gravidade
ou reabsorção tecidual19,35. Embora o lipofilling tenha
sido explorado e utilizado por mais de um século para melhorar as preocupações
ou
deformidades estéticas, a injeção de gordura na reconstrução do câncer de cabeça
e
pescoço é relativamente nova. Existem relatos publicados de regressão da fibrose
após lipotransferência. Muitos dos estudos são limitados por pequenas populações
de
pacientes, evidências fragmentadas e padrões variáveis de análise.
No entanto, motivado por esses relatos esporádicos, Kumar et al.22, em 2016, realizaram uma revisão sistemática para definir o
papel e o mecanismo da lipotransferência na fibrose tecidual induzida por radiação.
Enfatizaram a complexa interação entre fibroblastos, citocinas fibrogênicas e
miofibroblastos, a qual leva a vários padrões de formação de adesão às proteínas
do
citoesqueleto com consequentes cicatrizes e fibrose. Foram apontados alguns
mecanismos possíveis: ativação de miofibroblastos pela transformação em cascata
do
fator de crescimento ß1 e de tecido conjuntivo, fibrogênese induzida por
hipóxia crônica e liberação estimulada por radiação de espécies reativas de oxigênio
e radicais livres com danos diretos ao DNA.
A metanálise de Krastev et al.25, em 2018,
referente às injeções autólogas de gordura na reconstrução facial revelou uma
taxa
de complicação geral de 3,7%. As complicações mais relatadas foram assimetrias
ou
irregularidades após a injeção. Outras complicações incluíram infecção (0,1%),
necrose gordurosa (1%) e hematoma (0,6%).
Muitos cirurgiões plásticos evitaram injetar gordura em áreas de câncer anterior por
preocupações cancerígenas. No entanto, com base nas evidências atuais, acreditamos
ser recomendada a utilização cautelosa do enxerto de gordura na reconstrução do
câncer de cabeça e pescoço. Recomendações mais assertivas não podem ser realizadas
até a publicação de estudos com maior volume de casos e tempo de seguimento. Faltam
estudos prospectivos humanos para melhor compreensão do procedimento após cirurgia
oncológica em cabeça e pescoço. Sendo o quinto tipo de câncer mais comum e causando
significativa sequela estética e funcional após tratamento cirúrgico, estudos
a
respeito fazem-se necessários12,26.
Não foram encontradas análises comparativas de resultados entre lipoenxertia e outras
técnicas em cirurgia de cabeça e pescoço reconstrutora oncológica. Devido ao número
pequeno de artigos elegíveis, os resultados são limitados.
CONCLUSÃO
As sequelas da radiação da cabeça e do pescoço podem ser desafiadoras. O tecido
adiposo pode ser um complemento útil para a melhoria dessas complicações. Dados
os
benefícios conhecidos e a falta de contraindicações óbvias, sugerimos que o enxerto
de gordura pode ser considerado criteriosamente para reconstrução quando confrontado
com complicações da radiação da cabeça e pescoço.
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1. Universidade Federal de São Paulo,
Disciplina de Cirurgia Plástica, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Roney Gonçalves
Fechine-Feitosa, Rua Napoleão de Barros, 715, 4º andar, Vila
Clementino, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04024-002. E-mail:
roneyfechine@gmail.com
Artigo submetido: 21/06/2020.
Artigo aceito: 10/01/2021.
Conflitos de interesse: não há.