INTRODUÇÃO
A necrólise epidérmica tóxica (NET), também conhecida por síndrome de Lyell (SL),
é uma reação alérgica mediada por linfócitos CD8 que evolui com necrose da epiderme
por apoptose dos queratinócitos. A etiologia é desconhecida, mas é desencadeada pelo
uso de fármacos. Em virtude da alta mortalidade, o conhecimento da condição, o diagnóstico
precoce, a estratificação e a abordagem adequada são fundamentais para a condução
otimizada do paciente.
RELATO DE CASO
Paciente MD, gênero feminino, 28 anos de idade, parda, proveniente do município de
Laranjal do Jari no Estado do Amapá. No dia 26 de janeiro de 2019, a paciente apresentou
flictenas em mucosa oral após utilizar por 17 dias contínuos o medicamento alopurinol
200mg por dia, 50mg de diclofenaco de sódio, 30mg de cafeína, 125mg carisoprodol,
300mg de paracetamol de 12 em 12 horas. Nas 48 horas subsequentes, a paciente desenvolveu
flictenas em 72% de superfície corporal. Também foi observado acometimento de mucosa
oral, vaginal, anal e o trato gênito-urinário.
Ainda nas primeiras 48 horas, apresentou 38ºC de temperatura corporal e foi internada
no Hospital Estadual de Laranjal do Jari no dia 28 de janeiro de 2019. No dia 01 de
fevereiro de 2019, foi encaminhada ao Hospital de Emergência Osvaldo Cruz, onde foi
solicitada avaliação da equipe de cirurgia plástica do referido hospital (Figura 1). À admissão no serviço de cirurgia plástica foi conduzida clinicamente, onde apresentou
evolução satisfatória, recebendo alta sem necessidade de tratamento cirúrgico, no
dia 10 de fevereiro de 2019 (Figura 2). A escala SCORTEN não foi calculada, pois a mesma não se aplicava ao tempo de evolução
da doença.
Figura 1 - Paciente no 17º de evolução no dia de admissão no centro de queimados.
Figura 1 - Paciente no 17º de evolução no dia de admissão no centro de queimados.
Figura 2 - Paciente no dia da alta hospitalar.
Figura 2 - Paciente no dia da alta hospitalar.
DISCUSSÃO
Em 1922, o cirurgião indiano Albert Stevens e o pediatra americano Frank Johnson descreveram
dois casos de febre, conjuntivite e inflamação de mucosas em crianças, sendo que em
um caso houve a perda total da visão. Apesar do desconhecimento da causa na época,
foi a primeira descrição da ulteriormente chamada Síndrome de Stevens Johnson (SSJ).
Já em 1956, o dermatologista escocês Alan Lyell descreveu uma condição em que ocorria
a necrose epidérmica disseminada, que evoluía com a formação de flictenas associada
à reação febril tóxica. O estudo anatomopatológico era de apoptose de queratinócitos
a qual o dermatologista nomeou de NET1.
Apesar da baixa incidência: 2 casos por milhão por ano, a mortalidade da doença é
alta: 30%. Trata-se de uma reação de hipersensibilidade que atinge pele e mucosas
e ainda não possui etiologia bem definida. A principal causa da NET é a medicamentosa,
onde os principais medicamentos desencadeadores são o alopurinol, os anticonvulsivantes
aromáticos, as sulfonamidas e os anti-inflamatórios não-esteroidais. Observa-se também
com mais frequência em pacientes com HIV, lúpus eritematoso sistêmico e pacientes
submetidos ao transplante de medula. Em média, o tempo de exposição ao fator desencadeador
é de duas semanas, mas há relatos de até 48 horas2.
Didaticamente, a NET pode ser dividida de acordo com a superfície corporal acometida.
Desta maneira, denomina-se SSJ para casos em que o acometimento seja de até 10%; síndrome
de sobreposição quando o acometimento varia de 10 e 30%; e, de NET, também conhecida
como Síndrome de Lyell (SL), quando o acometimento ultrapassava 30%3. Em virtude da alta mortalidade, foi desenvolvida a escala SCORTEN - Severity of Illness Score for Toxic Epidermal Necrolysis. Na escala, há sete variáveis em que pesam um ponto cada e são: idade maior que 40
anos; frequência cardíaca maior que 120 batimentos por minuto; neoplasia maligna associada;
destacamento epidérmico de mais de 10% de superfície corporal no primeiro dia; ureia
maior que 28 mg/dl; glicose maior que 252mg/dl e bicarbonato menor que 20mEq/l. De
acordo com a pontuação, a mortalidade aumenta vertiginosamente (Tabela 1). A escala deve ser aplicada no primeiro e terceiro dia de internação para elevar
o valor preditivo4.
Tabela 1 - Escala SCORTEN - Severity of Illness Score for Toxic Epidermal Necrolysis.
Fatores de Risco |
Idade > 40 anos |
Neoplasia |
Frequência cardíaca > 120bpm |
Descolamento da epiderme de > 10% |
Ureia > 28md/dl |
Glicose > 252mg/dl |
Bicarbonato sérico < 20mg/dl |
Mortalidade |
SCORTEN 0 ou 1 |
3,2% |
SCORTEN 2 |
12,1% |
SCORTEN 3 |
35,3% |
SCORTEN 4 |
58,3% |
SCORTEN > 4 |
90% |
Tabela 1 - Escala SCORTEN - Severity of Illness Score for Toxic Epidermal Necrolysis.
A manifestação inicial pode ser confundida com uma síndrome gripal por três dias antes
das manifestações mucocutâneas. Ao exame físico, o sinal de Nikolsky e de Asboe-Hansen
- desprendimento da pele com leve fricção e descolamento lateral da pele após leve
pressão sobre a bolha, respectivamente - podem ser observados. O acometimento de mucosas
uretral, genital, oral e ocular são comuns e podem preceder as lesões cutâneas3.
O tratamento consiste em remover o agente causal e ofertar o suporte necessário para
o paciente, preferencialmente em unidade de tratamento de queimados. Não há consenso
sobre a melhor maneira de manejar as feridas posto que algumas pomadas podem desencadear
quadro semelhante, de modo que as lesões podem ser tratadas com água e sabão. O debridamento
cirúrgico também não é consenso. Os antibióticos sistêmicos devem ser reservados somente
para os casos de infecção, porque também podem ser agentes causais de NET. O uso de
corticoides endovenosos não mostrou benefícios e, podem, inclusive, atrasar o processo
de cicatrização e favorecer a infecção secundária. A plasmaférese, apesar de indicada
por alguns autores, não mostrou impacto significativo na mortalidade e tempo de internação.
O uso de ciclosporina vem sendo indicado com sucesso, apesar do mecanismo de atuação
ainda não estar bem definido. O uso de imunoglobulinas tem mostrado bons resultados
e dependem da dose e da administração precoce5.
REFERÊNCIAS
1. Lyell A. Toxic epidermal necrolysis: an eruption resembling scalding of the skin.
Br J Dermatol. 1956 Nov;68(11):355-61. DOI: http://dx.doi.org/10.1111/j.1365-2133.1956.tb12766.x
2. Santos Neto FC, Piccinini PS, Andary JC, Sartori LDP, Cancian LT, Uebel CO, et al.
Abordagem cutânea na necrólise epidérmica tóxica. Rev Bras Cir Plást. 2017;32(1):128-34.
3. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0365- 05962004000400009&lng=en
http://dx.doi.org/10.1590/S0365-05962004000400009
4. Trent JT, Kirsner RS, Romanelli P, Kerdel FA. Use of SCORTEN to accurately predict
mortality in patients with toxic epidermal necrolysis in the United States. Arch Dermatol.
2004 Jul;140(7):890-2. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/archderm.140.7.890
5. https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-42302016000500468&script=sci_abstract http://dx.doi.org/10.1590/1806-9282.62.05.468
1. Universidade Federal do Amapá, Macapá, AP, Brasil.
2. Hospital de Emergência Osvaldo Cruz, Macapá, AP, Brasil.
Autor correspondente: José Augusto Pupio Reis Júnior Rodovia JK, KM 6, n 4440, Bairro Universidade, Macapá, AP, Brasil. CEP: 68903-419
E-mail: alieksei@gmail.com
Artigo submetido: 22/02/2019.
Artigo aceito: 20/10/2019.
Conflitos de interesse: não há.