INTRODUÇÃO
Lesões geradas por queimaduras representam um importante problema de saúde pública,
constituindo a quarta causa de morte na infância no Brasil e Estados Unidos, atrás
apenas de outras causas traumáticas, como acidentes de trânsito e homicídios1,2. Segundo a Sociedade Brasileira de Queimaduras por volta de 1 milhão de acidentes
ao ano são motivados por este tipo de lesão no país. Destes, 100.000 pacientes irão
procurar atendimento hospitalar e cerca de 2.500 irão falecer direta ou indiretamente
de suas lesões2,3.
Por apresentarem imaturidade musculoesquelética e imunológica as crianças encontram-se
mais vulneráveis ao óbito. Estima-se que cerca de 70% de todas as mortes causadas
por queimaduras nessa faixa etária poderiam ser evitadas1,4. Esse índice de mortalidade deve-se principalmente à infecção e septicemia, assim
como à repercussão sistêmica1. Após a destruição primária da barreira de proteção, o trauma térmico leva a liberação
de mediadores com extenso dano à integridade capilar e perda acelerada de fluidos,
podendo ainda acarretar choque hipovolêmico. Pela desproporção da superfície corporal
em relação ao peso, esses indivíduos costumam apresentar repercussões sistêmicas mais
frequentemente3,5.
Além disso, poucas são as doenças que trazem prejuízos tão importantes como a queimadura.
Esse tipo de lesão resulta em considerável morbidade pelo desenvolvimento de sequelas,
estando entre as mais graves a incapacidade funcional, especialmente quando atinge
as mãos; as deformidades inestéticas, sobretudo da face; e, também, aquelas de ordem
psicossocial3,6.
OBJETIVO
Diante disso, o objetivo deste estudo é traçar o perfil epidemiológico de crianças
de 0-18 anos atendidas no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados do Hospital Universitário
Evangélico de Curitiba.
MÉTODOS
Estudo transversal e retrospectivo realizado através da análise de 625 prontuários
de internação de crianças de 0-18 anos vítimas de queimaduras admitidas no Serviço
de Cirurgia Plástica e Queimados do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba,
entre janeiro de 2010 a dezembro de 2017. A unidade de queimados atende adultos e
crianças oriundos de todo o estado do Paraná e eventualmente de outros estados, com
maior demanda proveniente da cidade de Curitiba e região metropolitana. O estudo teve
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Sociedade Evangélica Beneficente de Curitiba,
sob o parecer no. 86160718.4.0000.0103.
Foram coletadas informações sobre idade, sexo, tempo de internação, óbito, região
corporal atingida pela queimadura, extensão da superfície corporal queimada, grau
de profundidade da queimadura, agente etiológico envolvido, abordagem terapêutica.
Os dados referentes a agente causador das queimaduras foram agrupados da seguinte
forma: agente químico (queimaduras causadas por álcali ou ácidos); agente térmico
(queimaduras causadas por agentes inflamáveis, líquidos quentes, superfície aquecida,
brasas e chama direta); e agente elétrico (queimaduras causadas por corrente elétrica).
Os resultados foram expressos em número absoluto e porcentagem, sob a forma de tabelas
e gráficos, sendo processados com o software Microsoft Excel 2016.
RESULTADOS
Foram avaliados 625 prontuários de pacientes entre 1 mês e 18 anos de idade nos últimos
7 anos, sendo que 4 (0,6%) foram a óbito. A maior parte da amostra era composta por
lactentes (43%), seguido de pré-escolares (36%), adolescentes (11%) e escolares (10%).
A média de idade foi 12,6 anos. O sexo mais afetado foi o masculino (60%, n=376),
sendo a razão entre os sexos de 1,5:1. Com relação ao tempo de internamento, os pacientes
permaneceram cerca de 14,5 dias internados, com estadia máxima em 118 dias. Não há
diferença significativa no tempo de internamento entre os grupos de idade (p=0,61).
Também não há diferença significativa entre os sexos (p=0,83).
No estudo, 98% (612) das queimaduras apresentaram como etiologia o agente térmico,
principalmente por líquido quente em 74% dos casos, obtendo maior expressão em todas
as faixas etárias (Tabela 1). Em relação ao grau de profundidade a maioria das queimaduras foram de 2º grau (61,3%),
seguido do 3º grau (38,2%) e 1º grau isolado (0,5%).
Tabela 1 - Tipo de queimadura térmica por intervalo de idade.
|
Lactente |
Pré-Escolar |
Escolar |
Adolescente |
Tipo |
N |
% |
N |
% |
N |
% |
N |
% |
Agente inflamável |
4 |
2 |
24 |
11 |
17 |
27 |
11 |
17 |
Brasas |
7 |
3 |
5 |
2 |
0 |
0 |
0 |
0 |
Chama direta |
4 |
2 |
29 |
13 |
15 |
24 |
15 |
23 |
Líquido quente |
230 |
88 |
158 |
71 |
28 |
45 |
38 |
58 |
Superfície aquecida |
17 |
6 |
6 |
3 |
2 |
3 |
2 |
3 |
Total |
262 |
100 |
222 |
100 |
62 |
100 |
66 |
100 |
Tabela 1 - Tipo de queimadura térmica por intervalo de idade.
Quanto a superfície corporal queimada (SCQ), obtivemos 553 pacientes com 0-25% de
SCQ, 69 pacientes com 26-50% de SCQ, 2 pacientes com 51-75% de SCQ e 1 paciente na
faixa acima dos 75% de SCQ (Gráfico 1). A região corporal mais atingida foi o tronco (55%) motivando queimaduras de 2º
grau em 60% dos casos do segmento. Pacientes com mais de 25% de SCQ ficaram, estatisticamente,
8 dias a mais internados do que pacientes com até 25% de SCQ (p=0,0029).
Gráfico 1 - Intervalos de SCQ. Fonte: Os autores (2018).
Gráfico 1 - Intervalos de SCQ. Fonte: Os autores (2018).
Dentre as modalidades de tratamento, 44% (272) dos pacientes necessitaram de intervenção
cirúrgica (debridamento e enxertia), sendo os curativos maioria na terapêutica adotada.
Em se tratando de casos mais extremos, as queimaduras térmicas de 3º grau foram geradas
em sua maioria por incidentes com líquido quente (38%), em ambos os sexos, com prevalência
de pré-escolares (39%). Ainda nos acometimentos mais profundos, quando se relaciona
conduta adotada e tipos de queimadura térmica (Tabela 2), nota-se que nos acidentes com líquido quente, curativos (65%) e debridamento (85%)
foram as terapêuticas mais empregadas, ao passo que a enxertia por si só teve uma
distribuição mais homogênea entre os diversos agentes (p=0,001).
Tabela 2 - Distribuição dos tipos de queimaduras térmicas de 3º grau pela terapêutica adotada
Terapêutica |
Curativos |
Debridamento |
Enxerto |
Tipo |
N |
% |
N |
% |
N |
% |
Agente Inflamável |
10 |
9 |
2 |
4 |
18 |
24 |
Brasas |
3 |
3 |
1 |
2 |
4 |
5 |
Chama Direta |
18 |
17 |
4 |
9 |
15 |
20 |
Líquido Quente |
70 |
65 |
39 |
85 |
33 |
43 |
Superfície Aquecida |
7 |
6 |
0 |
0 |
6 |
8 |
Total |
108 |
100 |
46 |
100 |
76 |
100 |
Tabela 2 - Distribuição dos tipos de queimaduras térmicas de 3º grau pela terapêutica adotada
DISCUSSÃO
Historicamente, queimaduras são lesões facilmente evitáveis, principalmente na faixa
etária pediátrica, requerendo cuidados básicos dos pais e das próprias crianças. Isso
demonstra-se no fato de que 79% das queimaduras ocorreram em crianças até os 6 anos,
faixa etária na qual devido ao desenvolvimento neuropsicomotor não há noção adequada
de perigo e segurança. Esse dado condiz com outras pesquisas já realizadas, em que
menores de 5 anos correspondem à maior parte dos queimados7-11. Verificando-se o sexo dos pacientes, percebe-se uma clara tendência em pacientes
masculinos, com uma razão de 1,51 meninos para cada menina com queimaduras, assim
como outro centro de estudo, onde constatou-se que 53,4% eram meninos7.
Dentre os tipos de queimaduras, em nosso estudo, os líquidos quentes predominaram
em todas as faixas etárias. Isso é congruente com pesquisas realizadas em outros estados
brasileiros7,8 e países em desenvolvimento, como a Índia9,12 e o Irã11, bem como em países desenvolvidos, como o Canadá8 e o país de Gales7. Tal achado enquadra-se na chamada síndrome da chaleira quente, que ocorre quando
a criança puxa uma panela ou chaleira com água fervente que se encontra sobre o fogão.
Esse incidente ilustra a situação socioeconômica brasileira, na qual um grande número
de pessoas mora em uma mesma residência, com as crianças aglomerando-se na cozinha
junto à mãe.
Quando analisamos as regiões mais atingidas pelas queimaduras, verificamos divergências
interessantes. Um estudo canadense demonstrou que existe predominância dessas lesões
em quadril e membros inferiores8. Por outro lado, pesquisadores iranianos constataram uma grande quantidade de queimaduras
em membros superiores (47% do total de lesões)11. Em contrapartida, em nossa análise e em estudos brasileiros1,2, a região corporal mais atingida foi o tronco, contradizendo as pesquisas internacionais.
Com relação ao tempo de internação destes pacientes, nossa análise, com uma média
de 14,5 dias, vai ao encontro de estudos em países em desenvolvimento, com 17,56 dias
de internamento médio9. A média de internamento de 2 semanas é reportada ainda por pesquisadores brasileiros2,3. Os pacientes em idade escolar, de 7 a 9 anos, são os que têm a maior média de tempo
de internação, com 17,14 dias. O desvio padrão é de 12,02 dias, isso porque existe
uma grande variabilidade de extensão, profundidade e localização das queimaduras.
A profundidade da lesão depende da temperatura do agente causal e da duração do contato
com o agente. Crianças e idosos apresentam pele mais sensível que a de um adulto,
de forma que queimaduras superficiais apresentam rápida progressão para níveis mais
profundos e queda do estado geral. Na amostra a maioria das queimaduras era de segundo
grau, correspondendo a 61,3% dos pacientes. Isso é corroborado por outros estudos,
em que queimaduras de segundo grau acometem entre 50-70% dos queimados8-11.
A grande maioria (89%) dos nossos pacientes tiveram de 0-25% da superfície corporal
queimada, com apenas um registro acima de 75% de SCQ. Porém, pacientes com maior superfície
corporal atingida trazem maiores custos ao hospital, com necessidades de terapias
mais intensivas e internação mais prolongada, requerendo maior atenção aos seus ferimentos.
Em pacientes feridos por agentes inflamáveis ou brasas, a terapêutica mais utilizada
foi a enxertia. Já a maioria dos pacientes com lesões por chama direta, líquido quente
e superfície aquecida, foi tratado com curativos.
CONCLUSÃO
O grande número de crianças envolvidas em acidentes por queimaduras, mesmo nos dias
atuais, só vem reforçar a importância de prevenção para este fato, uma vez que geram
traumas físicos e psicológicos, em boa parte, irreversíveis. Com esses dados, notamos
que crianças mais novas são mais propensas a sofrerem queimaduras e que estas, em
sua maioria, acontecem em casa. Isso nos leva a crer que, com medidas simples, como
manter líquidos quentes fora do alcance, utilizar aparelhos elétricos sob supervisão
e não as deixar sozinhas na cozinha, muitos dos acidentes poderiam ser evitados. Além
disso, ter uma equipe preparada e capacitada para atender queimados é de crucial importância
no prognóstico destes doentes.
COLABORAÇÕES
MVASN
|
Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento
do Projeto, Redação - Revisão e Edição, Supervisão
|
SMM
|
Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento
do Projeto, Redação - Revisão e Edição, Supervisão
|
RD
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Aprovação final do manuscrito,
Coleta de Dados, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do
Projeto, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição,
Supervisão
|
CSC
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Coleta de Dados, Investigação,
Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Revisão e Edição
|
GLAL
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Coleta de Dados, Investigação,
Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Preparação do original,
Redação - Revisão e Edição
|
REFERÊNCIAS
1. Oliveira KC, Penha CM, Macedo JM. Perfil epidemiológico de crianças vítimas de queimaduras.
Arq Med ABC. 2007;32(Supl 2):S55-8.
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3. Vale ECS. Primeiro atendimento em queimaduras: A abordagem do dermatologista. An Bras
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4. Rossi LA, Barruffini RCP, Garcia TR, Chianca TCM. Queimaduras: características dos
casos tratados em um hospital escola em Ribeirão Preto (SP), Brasil. Rev Panam Salud
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1. Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, Curitiba, Paraná, Brasil.
2. Faculdade Evangélica do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.
Autor correspondente: Renata Damin Rua Magdalena Taborda Ribas, 728, Curitiba, PR, Brasil. CEP: 81050-350. E-mail: renatadamin@hotmail.com
Artigo submetido: 20/2/2019.
Artigo aceito: 18/4/2019.
Conflitos de interesse: não há.