INTRODUÇÃO
A orelha em abano é uma deformidade decorrente do desenvolvimento anômalo do pavilhão auricular, caracterizada por uma série de alterações anátomo-estruturais, dentre as quais destacamos:
1. Aumento do ângulo escafo-conchal.
2. Apagamento da anti-hélix.
3. Afastamento da borda livre do pavilhão, em relação ao crânio.
4. Aumento da concha, presente na maioria dos casos.
A cirurgia estética desta deformidade reporta-se ao século passado. Dieffenbach(10), em 1845, preconizava a correção da deformidade pela simples excisão de pele retro-auricular. Outras escolas, como Ely(l4) em 1881, MonkS(23) em 1891 e Cocherill(6) em 1894, reconheceram a necessidade da exérese da cartilagem da concha, posteriormente divulgada por Morestin(24) em 1903, chegando até Luckett(22) em 1910, que primeiramente voltou sua atenção ao ângulo escafo-conchal, considerando-o como elemento principal na correção do pavilhão auricular deformado.
Posteriormente, Baxter(2) em 1941, McEvitt(25) em 1947, Barsky(1) em 1938, aprimoraram os princípios estabelecidos por Luckett. Mais atualmente, Converse(7,8) em 1938, Tanzer(39) em 1962, Mustardé(27,28) e Sperli(33, 34) em 1969 introduziram modificações em suas respectivas técnicas, trazendo grande contribuição ao estudo da orelha em abano.
COMENTÁRIOS TÉCNICOS
As técnicas modernas, quando devidamente executadas, permitem resultados bastante satisfatórios; entretanto, nem todas chegam a cobrir as necessidades precípuas desta correção. Assim é que:
- Poucas técnicas procuram dissecar e afrontar os elementos anatômicos rigorosamente entre si.
- A forma da anti-hélix nem sempre fica satisfatória.
- Pouca atenção tem sido dada à manutenção ortopédica do ângulo escafo-conchal, corrigido durante a cirurgia.
- Não são raras as reincidências da deformidade.
- Resultados pouco satisfatórios nos casos mais acentuados, ocasionando deformidades secundárias, como o "ear-phone", onde o pólo superior e o lóbulo ficam afastados do crânio, enquanto a porção média do pavilhão se aproxima.
- Apagamento do sulco retro-auricular, por excesso de retirada de pele.
- Em algumas técnicas, onde são deixados fios transfixando a cartilagem, após certo tempo poderá haver a reincidência por secção da cartilagem, devido à tração exercida pela mesma.
- Em alguns casos são encontradas condrites pela presença de fios na cartilagem. Essa complicação, entretanto, é de caráter transitório.
CONDUTA ANTERIOR
Fazendo o levantamento bibliográfico bastante extenso sobre o assunto, procuramos aplicar certos princípios básicos de técnica cirúrgica e mecânica física, daí chegando à execução de uma técnica que foi utilizada em nosso Serviço durante 26 anos, com follow-up prolongado.
Consistia essa técnica original (Fig. 1) de princípios clássicos de cirurgia de orelha em abano, acrescida dos seguintes detalhes.
Fig. 1 - Detalhes demarcatórios e passos cirúrgicos da técnica anterior.
Fig. 2 - Princípio do encurtamento pericondrial através da aproximação das duas bordas do pericôndrio descolado.
1. Demarcação da anti-hélix na face anterior do pavilhão auricular, com verde brilhante ou azul de metileno.
2. Demarcação de fuso de pele na altura do sulco retro-auricular, que poderá ser mais ou menos largo, conforme o caso.
3. Incisão da pele posterior (fuso) do pavilhão, previamente demarcada.
4. Retirada do fuso, em fina camada de pele.
5. Colocação de agulhas, transfixando o pavilhão, obedecendo à demarcação anterior da anti-hélix.
6. Embebem-se as pontas das agulhas transfixadas com verde brilhante ou azul de metileno; retiramo-los através da face anterior do pavilhão. Com isto, a demarcação é transferida à intimidade do pericôndrio e cartilagem, na mesma projeção da pele demarcada.
7. Incisão do pericôndrio, até atingir a cartilagem, na extensão do ramo longitudinal demarcado pelo corante.
8. Descolamento do pericôndrio posterior do pavilhão, expondo, assim, a cartilagem limpa.
9. Confecção de 4 incisões longitudinais na cartilagem, paralelas à demarcação permitindo, assim, a obtenção de 3 tiras cartilaginosas de 2 mm de largura cada.
10. Retirada de porção cartilaginosa de concha, a partir do limite da última incisão longitudinal interna. Esse fuso poderá ser tão largo quanto exija o caso.
11. Sutura do pericôndrio em jaquetão, encurtando-o de acordo com a necessidade do caso. Nesta fase, o pavilhão já permanecerá em sua posição definitiva
12. Sutura da pele, tomando o cuidado de fixar a sutura no ângulo aurículo-temporal, a fim de evitar apagamento do sulco retro-auricular.
13. Colocação de fina camada de gesso, contornando a face anterior do pavilhão e ultrapassando levemente a sua reborda em direção à face posterior.
CONDUTA ATUAL
Considerando a evolução do instrumental cirúrgico, com refinamentos micro-abrasivos, abolimos as tiras cartilaginosas em prol de um adelgaçamento da cartilagem em toda a extensão da anti-hélix.
Dessa maneira, a técnica anterior ficou assim simplificada:
1. Demarcação da anti-hélix na face anterior do pavilhão auricular, com verde brilhante ou azul de metileno (Fig. 3).
Fig. 3 - Esquema demonstrando a demarcação da anti-hélix na face anterior do pavilhão auricular; com transfixação de agulhas para a face posterior.
2. Demarcação de fuso de pele na altura do sulco retro-auricular, que poderá ser mais ou menos largo, conforme o caso (Fig. 4).
Fig. 4 - Demarcação do fuso de pele da face posterior do pavilhão auricular (esquema).
3. Incisão do fuso de pele posterior do pavilhão, previamente demarcada.
4. Retirada do fuso de pele.
5. Colocação de alfinetes ou agulhas, transfixando o pavilhão, obedecendo à demarcação anterior da anti-hélix (Fig. 5)
Fig. 5 - Agulhas transfixando a orelha até sua face posterior, permitindo a transposição da marcação da face anterior para os planos cartilaginoso e pericondrial.
6. Embebem-se as pontas dos alfinetes ou agulhas transfixados em corante (verde brilhante ou azul de metileno) retirando-as através da face anterior do pavilhão. Com isto, a demarcação é transferida à intimidade do pericôndrio e da cartilagem, na mesma projeção da pele demarcada.
7. Incisão do pericôndrio na extensão do ramo longitudinal demarcado pelo corante, até atingir a cartilagem (Fig. 6).
Fig. 6 - Esquema demonstrando a incisão do pericôndrio, até se atingir o plano cartilaginoso.
8. Descolamento do pericôndrio posterior do pavilhão, expondo, assim, a cartilagem limpa (Fig. 7).
Figs. 7a e 7b - Descolamento do pericôndrio posterior do pavilhão, expondo a cartilagem limpa.
9. Descolamento da cartilagem da pele anterior do pavilhão, na largura aproximada de 8 mm, utilizando o descolador próprio de cartilagem (Fig. 8).
Fig. 8 - Descolamento do plano cartilaginoso anterior da orelha, numa largura de aproximadamente 8mm, utilizando o descolador próprio de cartilagem.
10. Raspagem da face anterior da cartilagem, em toda a extensão demarcada. Para tanto, utiliza-se a raspa especial para cartilagem auricular (Fig. 9).
Fig. 9a - Esquema da raspagem da face anterior da cartilagem auricular, visando seu enfraquecimento e "quebra" da mola cartilaginosa.
Fig. 9b - Raspagem da face anterior da cartilagem em toda extensão demarcada.
11. Retirada de fuso cartilaginoso de concha, quando necessário.
12. Sutura do pericôndrio em jaquetão, encurtando-o de acordo com a necessidade do caso. Nesta fase, o pavilhão permanecerá em sua posição definitiva (Figs. 10a e 10b).
Figs.10a e 10b - Sutura do pericôndrio posterior da orelha em jaquetão. Dessa maneira, encurta-se o pericôndrio, posicionando o pavilhão em sua posição definitiva e mantendo o ângulo escafo-conchal corrigido. Sutura final do pericôndrio retro-auricular devidamente encurtado.
13. Sutura da pele (Fig. 11).
Fig. 11a - Reposicionamento do pavilhão corrigido.
Fig. 11b - Estabilização normal do pavilhão auricular.
Fig. 11c - Curativo semi-compressivo, com suporte de gaze.
DISCUSSÃO
A retirada adequada de pele, preservando o plano pericondrial, nos permitirá o descolamento de um pericôndrio bem espesso que, quando encurtado, manterá o pavilhão em sua nova posição. O descolamento do pericôndrio é bastante fácil e deve ser feito com bisturi ou tesoura delicada, numa extensão necessária para que a cartilagem auricular fique livre em sua face posterior.
A seguir, fazemos uma incisão de 5 mm na demarcação da futura anti-hélix. Através dessa incisão, fazemos o descolamento da face anterior da cartilagem da pele, utilizando descolador auricular.
Uma vez descolado, procedemos a raspagem de toda a extensão da cartilagem anterior, despericondrizando-a e a adelgaçando o suficiente para enfraquecer a mola cartilaginosa.
A retirada da porção cartilaginosa da concha, que poderá ser tão larga quanto demandar o caso, visa impedir a projeção da concha além do limite desejado, como soe acontecer nos casos acentuados. Além do mais, a forma desta porção poderá variar, de modo a corrigir a posição proeminente do lóbulo, que assim se encontra exclusivamente por excesso de cartilagem conchal. Nunca se deve tentar aproximar o lóbulo do crânio através de retirada de pele e tecidos moles que o compõem.
Repetimos: o responsável pela projeção do lóbulo é o excesso da porção inferior da concha.
Quando suturamos o pericôndrio em jaquetão, conseguimos imediatamente o ângulo escafo-conchal almejado. Nesta fase, podemos equilibrar o afastamento do pavilhão auricular da região mastóidea, em suas três porções: pólo superior, porção média e lóbulo.
Utilizamos fio absorvível de ácido poliglicólico ou catgut, cujos pontos são dados exclusivamente no pericóndrio posterior, em forma de jaquetão. Nunca utilizamos quaisquer tipos de pontos na cartilagem.
Os resultados tardios são persistentes, não se observando reincidência do abano.
Fig. 12a e 12b - Paciente 1: pré e pós-operatório, vista anterior.
Fig. 12c e 12d - Paciente 1: pré e pós-operatório, vista lateral.
Fig. 12e e 12f - Paciente 1: "Close-up" pré e pós-operatório posterior.
Fig. 13a e 13b - Paciente 2: pré e pós-operatório, vista anterior.
Fig. 13c e 13d - Paciente 2: pré e pós-operatório, vista posterior.
Figs. 13e e 13f - Paciente 2: "Close-up" pré e pós-operatório lateral.
CONCLUSÃO
Visando à correção do ângulo escafo-conchal (anti-hélix) através do afrouxamento da mola cartilaginosa, e pretendendo reconstruir uma anti-hélix normal, com as bordas arredondadas e sem possibilidade de reincidência, estabelecemos seis princípios adicionais que, devidamente executados, nos proporcionarão resultados bons, sem grande dificuldade técnica:
1. Demarcação da futura anti-hélix, através de agulhas que transfixam a face anterior do pavilhão auricular, atingindo a face posterior.
2. Demarcação, na face posterior, da extensão da futura anti-hélix. Incisão do pericôndrio sobre essa marcação.
3. Descolamento do pericôndrio da face posterior do pavilhão, em relação à cartilagem.
4. Adelgaçamento da cartilagem, em sua face anterior, através de raspa.
5. Retirada de porção da concha cartilaginosa, quando necessário.
6. Sutura do pericôndrio em jaquetão, determinando, assim o encurtamento necessário para se atingir o ângulo escafo-conchal almejado.
Esta técnica visa, principalmente, obedecer aos princípios básicos de cirurgia, em que os elementos anatômicos deverão ser rigorosamente dissecados e afrontados entre si.
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I - Professor Assistente do Departamento de Cirurgia da Santa Casa de São Paulo. Regente-Chefe dos Serviços Integrados de Cirurgia Plástica, Hospital Ipiranga, São Paulo.
Endereço para correspondência:
Aymar E. Sperli
Av. Cidade Jardim, 993 São Paulo - SP 01453-000
Fone: (Oll) 820-1279 - Fax: (Oll) 820-3792
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Trabalho realizado nos Serviços Integrados de Cirurgia Plástica - Serviços oficiais de ensino pós-graduado, MEC-SBCp' Hospital Ipiranga - São Paulo.