INTRODUÇÃO
Retalhos cutâneos, fasciocutâneos, musculares, livres microcirúrgicos e suas
variações são descritos para reparar as perdas de substâncias nos terços médio
e
distal da perna por diversos autores que consideram o tratamento destes defeitos
como um desafio singular1-5. A exposição de ossos, tendões, materiais de
osteossíntese, associada à falta de disponibilidade de tecidos locais nesta área
do
corpo, são fatores que contribuem para dificultar o planejamento e a terapia nestes
casos2.
Transferência microcirúrgica de retalhos livres, muitas vezes, torna-se a primeira
opção terapêutica para promover cobertura adequada e exige capacitação específica,
equipe multidisciplinar, infraestrutura especializada, maior custo e deve ser
reservada para traumas que comprometem o compartimento muscular posterior e a
vascularização da perna1,6. Por outro lado, os retalhos cutâneos,
fasciocutâneos e até fasciosubcutâneos são tecnicamente mais acessíveis, com maior
arco de rotação, menor morbidade do leito doador e de pós-operatório mais
simples3,5,7-9, mas devem ser
evitados em situações que exigem o fornecimento de maior aporte sanguíneo local
como, por exemplo, nas fraturas com exposição óssea1.
Os retalhos musculares locais, quando criteriosamente indicados e realizados, são
capazes de fornecer cobertura de rica vascularização e espessura intermediária6. Os principais músculos utilizados na
confecção de retalhos para a reconstrução dos terços médio e distal da perna são:
flexor longo dos dedos, tibial posterior, flexor longo do hálux, fibular curto,
fibular longo, extensor longo dos dedos, extensor longo do hálux, tibial anterior
reverso e sóleo4,10,11. Suas limitações, e prováveis contraindicações, referem-se aos
pacientes com traumas musculares e vasculares graves associados e à presença de
doença vascular periférica1,6.
Os retalhos soleares foram inicialmente descritos por Magee et al., em 198012; mas Tobin, em 198513, sistematizou e correlacionou a morfologia do músculo sóleo
com o padrão vascular de seus pedículos e ramos intra e extramusculares, permitindo
a criação de um grande retalho pediculado confeccionado com a metade longitudinal
do
músculo, o retalho de hemisóleo. Este retalho pode ser construído utilizando os
ventres medial ou lateral do músculo sóleo e com fluxo sanguíneo direto ou
reverso.
Portanto, quatro retalhos são possíveis: hemisóleo medial pediculado proximalmente,
hemisóleo medial pediculado distalmente (ou reverso), hemisóleo lateral pediculado
proximalmente e hemisóleo lateral pediculado distalmente (ou reverso)13. A principal vantagem destes retalhos é a
preservação da inervação da metade do músculo sóleo que permanece no sítio doador,
mantendo a força de flexão plantar. Além disso, o retalho de hemisóleo tem um
arco
de rotação maior quando comparado ao retalho de músculo sóleo convencional13-15.
Posteriormente, em 2005 e 2008, Pu descreveu técnicas de refinamento cirúrgico
estabelecendo parâmetros e aumentando a confiabilidade para os retalhos de hemisóleo
medial6,16. E, mais recentemente, a associação da técnica aos
princípios do angiossomo (blocos tridimensionais de tecidos, cuja irrigação seria
fornecida por uma artéria específica, ramo de uma artéria-tronco profunda)17 descritos por Taylor & Palmer
(1987)17 consagrou a importância do
planejamento do desenho do retalho e a necessidade de uma dissecção cuidadosa
com o
benefício de se obter um retalho mais fino e com menor morbidade na área doadora,
sobretudo para os retalhos de fluxo reverso1,9,18.
O retalho de hemisóleo medial é o de uso mais frequente devido à proximidade deste
retalho com os defeitos que ocorrem, mais comumente, nos ¾ proximais da tíbia
e por
apresentar um arco de rotação maior que o retalho de hemisóleo lateral1,6,13.
OBJETIVO
O objetivo deste estudo é relatar a utilização do retalho de hemisóleo medial
proximal (fluxo direto) ou distal (fluxo reverso) - Figura 1 - enfatizando as vantagens, reafirmando as indicações e
analisando as complicações deste procedimento como mais uma alternativa no arsenal
cirúrgico para a reparação das perdas de substância dos terços médio e distal
da
perna.
Figura 1 - Retalhos musculares possíveis: fluxo direto ou reverso.
Figura 1 - Ilustração: Arantes HL, Freitas AG, Figueiredo JCA. Retalhos musculares e
musculocutâneos. In Mélega JM. Cirurgia Plástica – fundamentos e arte –
princípios gerais. Rio de Janeiro: MEDSI;2002. p.136.
Figura 1 - Retalhos musculares possíveis: fluxo direto ou reverso.
Figura 1 - Ilustração: Arantes HL, Freitas AG, Figueiredo JCA. Retalhos musculares e
musculocutâneos. In Mélega JM. Cirurgia Plástica – fundamentos e arte –
princípios gerais. Rio de Janeiro: MEDSI;2002. p.136.
MÉTODOS
Num período de dez anos, um total de nove retalhos de hemisóleo medial foram
confeccionados em oito pacientes (seis homens e duas mulheres) para a reparação
de
perdas de substância de etiologia traumática com exposição da tíbia. As cirurgias
foram realizadas no Hospital Ibiapaba Cebams, de Barbacena – MG.
O Comitê de Ética Médica do Hospital Ibiapaba Cebams analisou e aprovou o trabalho
referenciado sob o protocolo número 001/2018.
Os critérios para a inclusão dos pacientes foram os seguintes:
Presença de ferida com exposição óssea ou de materiais de osteossíntese
nos terços médio ou distal da perna, comprometendo uma área inferior a
50 cm².
Estabilização prévia da fratura, quando presente.
Ausência de doença vascular periférica ou outras condições que pudessem
comprometer o padrão vascular do músculo sóleo, como: diabetes,
tabagismo, paraplegia ou história prévia de obstruções vasculares dos
membros inferiores.
Ausência de evidências de trauma comprometendo o ventre medial do músculo
sóleo.
Pacientes com quadro infeccioso instalado receberam terapia específica
prévia e, quando necessário, foram submetidos a debridamentos, curativos
e antibioticoterapia sistêmica antes do procedimento.
O músculo sóleo é caracterizado por apresentar um padrão morfológico bipeniforme (em
98,8% dos casos) em que os ventres medial e lateral apresentam suprimentos
neurovasculares independentes e separados longitudinalmente na linha mediana.
O
ventre medial origina-se na tíbia proximal e insere-se na face dorsal-medial do
tendão calcanear e o ventre lateral origina-se na fíbula proximal e insere-se
na
face dorsolateral do tendão calcanear. Na metade distal os ventres medial e lateral
do músculo são separados longitudinalmente por um septo intramuscular e, na metade
proximal, estes mesmos ventres são fundidos13.
A vascularização é do tipo II de Mathes & Nahai19. Existem dois pedículos dominantes proximais: ramo tibial posterior
que nutre o ventre medial através de ramos segmentares, e o ramo fibular que nutre
o
ventre lateral através de ramos segmentares proximalmente e axiais distalmente1,6. Um ramo perfurante distal da artéria tibial posterior, próximo ao
maléolo medial, também nutre a porção distal do ventre medial e forma a base do
retalho de hemisóleo medial reverso6.
Os ventres medial e lateral do músculo sóleo são inervados independentemente. O ramo
medial do nervo poplíteo medial (superficial) e o ramo medial do nervo tibial
posterior (motor) inervam o ventre medial do sóleo. Já o ventre lateral do sóleo
é
inervado pelos ramos laterais dos nervos poplíteo medial e tibial posterior13.
Técnica Cirúrgica
A incisão cutânea longitudinal é feita na face medial da perna, acompanhando
paralelamente a borda medial da tíbia. A existência de fixadores ortopédicos
externos deve ser considerada como parte inerente desse procedimento cirúrgico,
pois estarão presentes na maioria dos casos (Figura 2). A pele é cuidadosamente tracionada e permite a abertura e
exposição dos planos subcutâneo e fascial. Tanto quanto possível, nervos (sural,
safeno) e vasos (veia safena) superficiais devem ser preservados1.
Figura 2 - Marcação da incisão longitudinal programada na face medial da
perna.
Figura 2 - Marcação da incisão longitudinal programada na face medial da
perna.
O músculo gastrocnêmico é separado da porção medial do músculo sóleo por
dissecção romba20, a fáscia profunda é
aberta e a borda do sóleo é desinserida da tíbia com o bisturi. Identificam-se
os pedículos vasculares principais e secundários. A dissecção cuidadosa dos
pedículos permite a obtenção de um arco de rotação maior e, consequentemente,
um
maior alcance do retalho.
Na confecção do retalho de hemisóleo medial pediculado proximalmente, o pedículo
principal (proximal) é mantido e os pedículos secundários são ligados (Figura 3). Promove-se então a desinserção do
hemisóleo medial no tendão calcanear, feita delicadamente com bisturi ou
instrumental de corte agudo e pouco traumatizante como aquele descrito por
Pu6, e a separação dos ventres medial
e lateral dos músculos orientada pelo septo intramuscular (Figura 4).
Figura 3 - Ligadura dos pedículos distais e preservação do pedículo proximal
principal.
Figura 3 - Ligadura dos pedículos distais e preservação do pedículo proximal
principal.
Figura 4 - Músculo desinserido do tendão calcanear e separado do ventre
lateral.
Figura 4 - Músculo desinserido do tendão calcanear e separado do ventre
lateral.
Para a confecção do retalho de hemisóleo medial reverso, o pedículo principal é
mantido (ramo perfurante distal da artéria tibial posterior) sendo ligados os
pedículos principal proximal e demais secundários. Baseando-se no princípio do
angiossomo1,8, o retalho será seccionado num ponto 2 a 3
cm proximalmente ao pedículo secundário ligado, desde que o pedículo seguinte
seja o ramo perfurante distal da artéria distal posterior. É feita, então, a
separação dos ventres musculares medial e lateral também orientada pelo septo
intramuscular (Figura 5).
Figura 5 - Separação dos ventres medial e lateral para confecção de retalho
reverso.
Figura 5 - Separação dos ventres medial e lateral para confecção de retalho
reverso.
A seguir, o retalho sofre rotação sob um túnel fasciocutâneo, previamente
confeccionado (Figuras 6 e 7) e alcança a área do defeito, sendo fixado
com sutura absorvível 4.0. O túnel fasciocutâneo não poderá comprimir
demasiadamente o retalho. Neste caso, pode-se realizar a fasciotomia transversa
no túnel e até mesmo a comunicação da área de acesso ao retalho com a ferida
operatória.
Figura 6 - Retalho rodado sob túnel fasciocutâneo para cobrir a
ferida.
Figura 6 - Retalho rodado sob túnel fasciocutâneo para cobrir a
ferida.
Figura 7 - Retalho reverso rodado sob túnel fasciocutâneo.
Figura 7 - Retalho reverso rodado sob túnel fasciocutâneo.
Depois de fixado no local, o retalho é coberto com um fino enxerto de pele de
espessura parcial (Figura 8). A área
doadora do retalho não exige enxerto cutâneo e recebe sutura primária da fáscia
profunda e do tecido subcutâneo com fios de poliglecaprone 4.0. A sutura da pele
é feita com fio de nylon 4.0 (Figura 9).
São usados drenos de sucção e o curativo não compressivo geralmente dispensa
uso
de imobilização com calha de gesso na presença de fixadores externos.
Figura 8 - Enxerto de pele de espessura parcial sobre o retalho
muscular.
Figura 8 - Enxerto de pele de espessura parcial sobre o retalho
muscular.
Figura 9 - Aspecto da área doadora suturada primariamente.
Figura 9 - Aspecto da área doadora suturada primariamente.
Entre os cuidados pós-operatórios, é importante a permanência em repouso no leito
com o membro operado elevado durante 4 a 5 dias com o objetivo de diminuir o
edema e a congestão venosa.
RESULTADOS
Nesta série de oito pacientes, seis homens (75%) e duas mulheres, (25%) foram
confeccionados nove retalhos de hemisóleo (Tabela 1). Um dos pacientes (APO na Tabela 1) apresentava fraturas expostas de ambas as tíbias e foi submetido à
reparação bilateral com retalhos de hemisóleo medial em tempos distintos. Em três
pacientes foram realizados retalhos de hemisóleo medial reverso (Figuras 10A, B e C) para reparar perdas de
substância no terço inferior medial da perna causadas por queimadura e fraturas
expostas da tíbia.
Tabela 1 - Resultados.
Paciente |
Idade (anos) |
Sexo |
Localização do ferimento |
Causa do ferimento |
Tratamento prévio |
Retalho de hemisóleo medial |
Complicações do retalho e ou enxerto de pele |
Complicações da fratura |
Tempo de acompanha-mento |
PCO |
20 |
Masc |
Fratura exposta de 1/3 médio da tíbia esquerda |
Acidente automobilístico |
Retalho fasciosubcutâneo reverso de panturrilha |
Pedículo proximal |
- |
- |
30 meses |
LMF |
27 |
Masc |
Fratura exposta de 1/3 médio da tíbia esquerda |
Acidente automobilístico |
"Cross-leg" e fixação da fratura |
Pedículo proximal |
- |
Pseudo-artrose |
27 meses |
APO |
30 |
Masc |
Fratura exposta de 1/3 médio da tíbia direita |
Acidente automobilístico |
Fixação da fratura, toracotomia e laparotomia |
Pedículo proximal |
Hematoma de área doadora |
- |
22 meses |
APO |
30 |
Masc |
Fratura exposta de 1/3 médio da tíbia esquerda |
Acidente automobilístico |
Retalho hemisóleo medial à direita |
Pedículo proximal |
- |
- |
22 meses |
GMS |
41 |
Masc |
Exposição de maléolo medial direito |
Queimadura por metal superaquecido |
Debridamento e curativos |
Reverso |
- |
- |
4 meses |
OMS |
54 |
Mas |
Fratura exposta de 1/3 distal da tíbia esquerda |
Acidente domiciliar (queda) |
Fixação da Fratura |
Reverso |
Perda parcial do retalho |
- |
18 meses |
MEF |
68 |
Fem |
Fratura exposta de 1/3distal da tíbia direita |
Acidente domiciliar (queda) |
Fixação da Fratura |
Reverso |
Perda parcial do enxerto de pele |
Osteomielite crônica |
12 meses |
JASB |
32 |
Mas |
Fratura exposta de 1/3 médio da tíbia esquerda |
Acidente automobilístico |
Fixação da Fratura |
Pedículo proximal |
Perda parcial do enxerto de pele |
- |
6 meses |
MLRD |
63 |
Fem |
Exposição óssea de 1/3 médio de tíbia direita |
Queimadura elétrica |
Debridamento e curativos |
Pedículo proximal |
Perda parcial do enxerto de pele |
- |
5 meses |
Figura 10 - A: Fratura exposta de 1/3 distal da tíbia;
B: Retalho medial reverso: aspecto final da área
doadora do retalho e da área receptora com enxerto de pele;
C: Pós-operatório de 6 meses.
Figura 10 - A: Fratura exposta de 1/3 distal da tíbia;
B: Retalho medial reverso: aspecto final da área
doadora do retalho e da área receptora com enxerto de pele;
C: Pós-operatório de 6 meses.
Os seis casos restantes foram tratados com retalhos de hemisóleo pediculado
proximalmente (Figuras 11, 12 e 13)
para reparação de feridas com exposição óssea de terço médio da tíbia causadas
por
acidentes automobilísticos. A idade média foi 40,5 anos (variando de 20 a 68 anos).
Sete pacientes (77,7%) foram operados após a estabilização da fratura com fixadores
externos e apresentavam pulsos palpáveis e normais.
Figura 11 - A: Retalho de pedículo proximal. Pré-operatório;
B: Pós-operatório de 30 dias; C:
Pós-operatório de 6 meses.
Figura 11 - A: Retalho de pedículo proximal. Pré-operatório;
B: Pós-operatório de 30 dias; C:
Pós-operatório de 6 meses.
Figura 12 - A: Perna direita com retalho confeccionado e perna
esquerda com fratura exposta de tíbia; B: Pós-operatório de
24 meses.
Figura 12 - A: Perna direita com retalho confeccionado e perna
esquerda com fratura exposta de tíbia; B: Pós-operatório de
24 meses.
Figura 13 - A: Retalho de pedículo proximal. Pré-operatório;
B: Pós-operatório de 36 meses.
Figura 13 - A: Retalho de pedículo proximal. Pré-operatório;
B: Pós-operatório de 36 meses.
Dois pacientes (22,2%) foram submetidos previamente à rotação de outros retalhos com
resultados insatisfatórios. O primeiro evoluiu com necrose completa do retalho
fasciossubcutâneo reverso da panturrilha ocasionada pela grande extensão da ferida
e
tempo prolongado de exposição óssea (osteomielite crônica). O outro paciente não
suportou a imobilização no pós-operatório de um “cross leg”.
Um dos pacientes (11,1%) apresentou sangramento na área doadora do retalho no décimo
dia do pós-operatório causada pelo rompimento da ligadura do pedículo distal,
foi
submetido à drenagem imediata e não houve comprometimento da vascularização do
retalho.
Necrose parcial do retalho de hemisóleo medial reverso ocorreu em um paciente (11,1%)
e as causas prováveis estão relacionadas à presença de infecção local, congestão
venosa acentuada no pós-operatório, compressão pelo túnel fasciocutâneo e idade
avançada do paciente. Neste caso, a terapia sequencial foi conservadora
(debridamento, tratamento da osteomielite e curativos assistidos a vácuo), evoluindo
para cicatrização da ferida.
O enxerto de pele de espessura parcial foi realizado no mesmo tempo cirúrgico em oito
dos nove retalhos e, em apenas três pacientes (33,3%), observaram-se perdas pouco
significativas da integração do enxerto de pele, sem necessidade de procedimentos
cirúrgicos adicionais (Figura 11B).
O tempo médio do procedimento cirúrgico foi de duas horas, e o tempo de permanência
hospitalar após a confecção do retalho variou de 4 a 28 dias (tempo médio de 17,7
dias). Todos os pacientes evoluíram com cicatrização completa da ferida. No
acompanhamento pós-operatório três pacientes necessitaram tratamentos cirúrgicos
ortopédicos com enxertos e expansão óssea para correção de pseudoartrose. O
acompanhamento mínimo no pós-operatório foi de 4 meses e tempo médio de
acompanhamento foi de 16,2 meses.
DISCUSSÃO
As opções terapêuticas para a reparação de ferimentos complexos dos terços médio e
distal da perna ainda não podem ser consideradas consensuais. Vários retalhos
foram
descritos, entretanto, os retalhos musculares, e dentre estes o retalho de
hemisóleo, tornam-se procedimentos intermediários entre os retalhos fasciocutâneo
e
os de transferência livre.
Todos os pacientes da série foram submetidos a retalhos de hemisóleo medial
baseando-se na localização favorável da ferida e na principal característica deste
retalho, que é manter a força de flexão plantar na articulação do tornozelo. O
músculo sóleo é responsável, junto com o músculo gastrocnêmico, pela estabilização
da perna sobre o pé, ou seja, pela manutenção da postura impedindo que o corpo,
na
posição ereta, caia para frente21. A
preservação do ventre lateral do sóleo no sítio doador diminui o uso de mecanismos
compensatórios que surgem quando o sóleo é totalmente rodado: passo curto, redução
da capacidade de inclinar o corpo para a frente, ferimento calcanear contralateral
precoce, etc13.
Associado a esta preciosa vantagem, os retalhos de hemisóleo são também interessantes
por promoverem baixa morbidade no leito doador dispensando a necessidade de enxertos
de pele nesta área. Isso pode ser confirmado na série de pacientes deste estudo
onde
todas as áreas doadoras foram fechadas primariamente, não apresentando epidermólise
ou necrose. Em apenas um paciente ocorreu complicação tardia (sangramento) na
área
doadora, mas sem comprometimento do resultado final da cicatrização nas áreas
doadoras e receptoras do retalho.
O conceito de que cobrir ferimentos com rico suprimento vascular é importante nos
casos de exposição óssea, favorecendo a consolidação das fraturas, é amplamente
defendido pelos adeptos dos retalhos musculares1,6,11,13,19. Entretanto,
ainda existe controvérsia no que se refere ao verdadeiro potencial benéfico da
rica
vascularização dos retalhos musculares na consolidação primária das fraturas3, o que parece ter sido sugerido nesta série em
que três pacientes (37,5%) ainda necessitaram de complementos cirúrgicos ortopédicos
para a cura final da fratura.
Por outro lado, esta rica vascularização é certamente responsável pelos altos índices
de integração do enxerto de pele sobre o músculo, fato não observado na utilização
de retalhos fasciais e fasciosubcutâneos2,7,19 em que a capacidade de fornecimento de uma
cobertura de espessura adequada e bem vascularizada continua a ser questionada.
O tempo médio de execução da cirurgia não ultrapassou o período de duas horas e isto
tem impacto favorável direto na execução técnica, no custo do tratamento e na
taxa
de morbidade pós-operatória.
A importância da transferência livre de retalho é fundamentada no potencial de
promoção de uma cobertura em tempo único, com tecido considerado saudável e não
associado ao trauma. Combina o desenvolvimento de técnicas vasculares, microscópicos
cirúrgicos, instrumentos delicados, fios microcirúrgicos e diferenciadas estratégias
cirúrgicas que, na maioria das vezes, são os grandes fatores limitantes desta
terapia9,14,16.
Neste contexto, o retalho de hemisóleo pode ser muito útil no tratamento de perdas
de
substâncias de terço médio e inferior da perna, quando a área comprometida é
inferior a 50 cm². Retalhos de músculos sóleos convencionais podem cobrir uma
área
média de 26 cm², segundo Hughes et al.4, que
realizaram estudos numéricos em cadáveres comparando o arco de rotação dos
diferentes retalhos musculares da perna.
Pu e Dumanian consideram que feridas de até 50 cm² podem ser seguramente reparadas
com retalhos de hemisóleo medial referindo um ganho significativo no alcance deste
retalho1,6.
O conhecimento detalhado da anatomia morfológica e neurovascular do músculo sóleo
é,
obviamente, condição inicial para a realização do procedimento. Para tanto,
dissecções prévias em cadáveres podem ser muito esclarecedoras e ilustrativas22. Os refinamentos técnicos descritos por Pu
envolvem a delicadeza na abordagem cirúrgica do músculo, dissecção dos pedículos
principais com o objetivo de alongar o arco de rotação, uso de lâminas afiadas
para
a secção transversal do tendão solear medial que está intimamente unido ao tendão
do
gastrocnêmico e sutura do tendão do hemisóleo medial ao segmento lateral do músculo,
com o objetivo de minimizar a perda funcional16,20.
Aliando estes conhecimentos aos princípios descritos do angiossomo, sobretudo para
os
retalhos reversos, altos índices de sucesso podem ser alcançados22. As principais complicações descritas
(sangramento pós-operatório, perdas parciais de enxertos e fracasso de outros
tipos
de retalhos realizados previamente) foram observadas no início da série e, por
isso,
podem ser relacionadas à técnica e às indicações.
O emprego da técnica mais apurada e um maior rigor nos critérios de indicação,
ocorridos gradualmente ao longo da série, reduziram o índice de complicações na
confecção deste retalho. Portanto, a curva de aprendizado é um fator considerável
no
aprimoramento da técnica cirúrgica.
Algumas condutas complementares também estão sendo gradativamente acrescentadas no
tratamento destas feridas, como: o fechamento a vácuo assistido no preparo
pré-operatório, reduzindo a extensão do ferimento, a realização de angiograma
pré-operatório na avaliação do potencial vascular do retalho, a utilização do
Doppler no pré-operatório, auxiliando na elaboração do desenho do retalho com
maior
viabilidade, a descrição de associações de retalhos para o fechamento de feridas
extensas entre outras1,6,13,23. A inserção
destes conceitos no plano terapêutico poderá reduzir o índice de complicações
pós-operatórias e aumentar a confiabilidade técnica deste procedimento.
CONCLUSÕES
Retalhos de hemisóleo medial proximais (fluxo direto) ou distais (fluxo reverso) são
muito úteis na reparação de perdas de substância dos terços médio e distal da
perna
e permitem a cobertura de ferimentos com tecidos de espessura intermediária, rica
vascularização local, baixo índice de morbidade na área doadora, preservação da
função motora plantar, reabilitação mais rápida no pós-operatório, técnica cirúrgica
acessível e menor tempo operatório.
Podem ser considerados como uma alternativa secundária aos retalhos de transferência
livre na reconstrução destes defeitos, ou mesmo como a primeira opção de tratamento
nos casos em que feridas menores, ou a presença de comorbidades, não justificam
a
complexidade do uso de um retalho de transferência livre.
A associação ao conceito do angiossomo e os refinamentos técnicos recentemente
descritos adicionaram maior segurança na confecção dos retalhos de hemisóleo,
reafirmando que estabelecer e observar os critérios de indicação no planejamento
pré-operatório é essencial para garantir maior sucesso terapêutico e reduzir o
índice de complicações pós-operatórias.
COLABORAÇÕES
EJC
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
conceitualização; concepção e desenho do estudo; realização das
operações e/ou experimentos; redação - revisão e edição; supervisão.
|
MLPN
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
coleta de dados; realização das operações e/ou experimentos; redação -
preparação do original; software.
|
LACF
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
coleta de dados; redação - preparação do original.
|
DMCJ
|
Análise e/ou interpretação dos dados; aprovação final do manuscrito;
coleta de dados; realização das operações e/ou experimentos; redação -
preparação do original.
|
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1. Hospital Ibiapaba Cebams, Barbacena, MG,
Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São
Paulo, SP, Brasil.
3. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde,
Suprema, Juiz de Fora, MG, Brasil.
4. Faculdade de Medicina de Barbacena, Barbacena,
MG, Brasil.
5. Faculdade de Medicina, Universidade Federal de
Viçosa, Viçosa, MG, Brasil.
Autor correspondente: Emiliano José Canton, Rua Padre Anchieta, nº
48, sala 307 - Centro - Barbacena, MG, Brasil, CEP 36200-036. E-mail:
emiliano.canton@hotmail.com
Artigo submetido: 18/5/2018.
Artigo aceito: 1/10/2018.
Conflitos de interesse: não há.