INTRODUÇÃO
O pioderma gangrenoso (PG) corresponde a uma dermatose autoimune crônica e rara,
descrita pela primeira vez por Brunstng e O Larry em 1930, ressaltando a ausência
de
caráter infeccioso. Histopatologicamente, é caracterizada por um infiltrado
neutrofílico dérmico inespecífico não infeccioso, não neoplásico e sem vasculite
primária1.
A base etiológica ainda permanece pouco conhecida, sendo idiopático em 25 a 50% dos
casos. Nos demais está associado com doenças sistêmicas de fundo autoimune, com
destaque para as doenças inflamatórias intestinais, principalmente a colite
ulcerativa, mas também, artrites, gamopatias, especialmente por IgA, entre
outras2,3. Pode surgir ainda como uma manifestação paraneoplásica e com
o uso de certos medicamentos (propiltiouracil e isotretinoína em casos especiais)
e
substâncias ilícitas como a cocaína4.
O PG tem uma incidência de 2 a 3 casos em 1 milhão de habitantes por ano4,5. Dados nacionais de uma análise retrospectiva mostraram que, no
Brasil, este índice é de 0,38 casos por 10.000 atendimentos5, sendo as mulheres as
mais acometidas, entre a segunda e quinta década de vida4.
O quadro clínico é variável, sendo que a forma ulcerosa, única ou múltipla, que surge
sobre uma cicatriz prévia, é a mais prevalente6. As ulceras são bem delimitadas, com alo violáceo, centro
necro-hemorrágico, purulento e crescimento centrífugo acelerado, sendo a
característica marcante da lesão, terminando com a formação acelerada de tecido de
granulação7. Além da forma ulcerada, ainda
classificamos didaticamente em formas pustulosa e vegetante, menos prevalentes e com
menor associação a complicações pós-cirúrgicas8.
A histopatologia no PG é inespecífica, seja à microscopia óptica, seja à imuno-
histoquímica, não existindo no momento marcadores sorológicos capazes de culminar
a
um diagnóstico laboratorial; desta forma, o diagnóstico é clínico por exclusão9,10.
Ressalta-se a importância do conhecimento do padrão cutâneo da lesão, pois o PG pós-
cirúrgico tem diagnóstico, via de regra, demorado, porque é suplantado pelos
diagnósticos mais comuns como deiscência e infecção de ferida, acarretando em
desbridamentos desnecessários que tendem a piorar o quadro, uma vez que o padrão da
lesão do PG está relacionado ao fenômeno de patergia em até 50%, dos casos, no qual,
pequenos traumas podem desencadear novas lesões6,11.
Neste ponto é necessário que o cirurgião plástico tenha o diagnóstico de PG em seu
arsenal de diagnósticos diferenciais, pois com o conhecimento das lesões cutâneas,
dos fatores predisponentes e condições cirúrgicas de risco será possível evitar
situações evolutivas extremamente graves para os pacientes.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 39 anos de idade, caucasiana, previamente hígida, sem
antecedentes cirúrgicos e obstétricos, foi submetida à mamoplastia redutora (Figura 1), procedimento realizado sem
intercorrências, recebendo alta hospitalar após 24 horas, sem queixas e em bom
estado geral.
Figura 1 - Pós-operatório imediato.
Figura 1 - Pós-operatório imediato.
Paciente recebeu antibioticoprofilaxia com cefezolina 1g 6/6h durante a internação,
complementada com cefalexina 500 mg 6/6h, domiciliar até o 7º dia pós-operatório
(DPO). Paciente reavaliada após 72 horas de procedimento cirúrgico, ainda sem
queixas, ferida operatória com bom aspecto, mantida microporagem de rotina.
No 15 DPO, em consulta de rotina, ferida operatória apresenta úlcera necrótica em
cicatriz vertical de mama esquerda, com drenagem de modera quantidade de secreção
sero-purulenta (Figura 2). Realizado
desbridamento de tecidos desvitalizados, prescrito antibioticoterapia com
cirprofloxacino 500 mg 12/12h e curativos locais com colagenase pomada, além de
microporagem em demais porções da ferida cirúrgica, com bom aspecto e boa evolução.
No 17 DPO paciente é reavaliada, sendo identificada piora importante da lesão, com
progressão centrípeta, acometendo segmentos da cicatriz no sulco inframamário.
Paciente negava sintomas sistêmicos.
Figura 2 - 10º dia pós-operatório - Lesão ulcerada em progressão.
Figura 2 - 10º dia pós-operatório - Lesão ulcerada em progressão.
Devido à surpreendente evolução, a hipótese de PG foi considerada. Desta forma,
realizamos revisão sistemática na literatura especializada no tocante ao manejo
terapêutico da afecção, buscando estabelecer um protocolo de tratamento de PG (Tabela 1).
Tabela 1 - Relatos clínicos e terapêuticos do PG, pesquisados nas bases de dados
dentre as publicações dos últimos 10 anos.
Base de Dados |
Estratégia de Busca |
Resultados |
Casos Clínicos |
PubMed |
(pyoderma grangrenosum) AND (breast) |
81 |
66 |
Lilacs |
(pyoderma grangrenosum) AND (breast) |
3 |
3 |
SciELO |
(pyoderma grangrenosum) AND (breast) |
2 |
2 |
Total |
|
86 |
71 |
Tabela 1 - Relatos clínicos e terapêuticos do PG, pesquisados nas bases de dados
dentre as publicações dos últimos 10 anos.
Iniciamos tratamento de primeira linha com corticoterapia oral e tópica. Iniciada
prednisona 60 mg/dia por 7 dias, 40 mg/dia da mesma por mais 7 dias, seguido de 20
mg/dia por mais 7 dias, e por fim 10 mg/dia por quatro dias, terminando com 10
mg/dia em dias alternados, completando 28 dias de tratamento (Figura 3).
Figura 3 - 21º dia pós-operatório - Após 4 dias de início de corticoterapia oral
e tópica.
Figura 3 - 21º dia pós-operatório - Após 4 dias de início de corticoterapia oral
e tópica.
O tratamento tópico adotado compreendeu uso diário de fludroxicortida 0,125 mg/g
(Drenison®), mantidos do início da terapêutica oral até a
estruturação da cicatriz, que ocorreu ao fim do 2º mês PO, cerca de 20 dias após fim
de corticoterapia oral (Figura 4). A paciente
apresentou evolução favorável, com fechamento completo das lesões após o período de
tratamento de um mês. A Figura 5 mostra o no 3º
mês PO.
Figura 4 - 30º dia pós-operatório - Após 13 dias de início da corticoterapia
oral e tópica.
Figura 4 - 30º dia pós-operatório - Após 13 dias de início da corticoterapia
oral e tópica.
Figura 5 - 3 meses de pós-operatório - Lesão cicatrizada.
Figura 5 - 3 meses de pós-operatório - Lesão cicatrizada.
DISCUSSÃO
O PG se apresenta como complicação devastadora tanto para o paciente como para o
cirurgião plástico, acarretando em questionamentos sobre as condições técnicas do
procedimento cirúrgico realizado12. A
inexistência de uma exame complementar que ratifique o diagnóstico do PG associado
aos achados inespecíficos no estudo histopatológico, impõe obrigatoriedade sobre o
conhecimento clínico desta afecção, para que possa se estabelecer a suspeita
diagnóstica1,2,4.
Em relação ao tratamento, o objetivo é limitar a destruição tecidual, promover a cura
da ferida e obter um bom resultado estético. Desbridamentos e realização de enxertos
de pele são contraindicados3-5.
A terapia com corticosteroides sistêmicos é o método mais efetivo para o tratamento
do PG, sendo o tratamento de primeira linha. As doses imunossupressoras são
necessárias na maioria dos casos, com cerca de 100-200 mg/dia de prednisolona ou
60-80 mg/dia de prednisona4,6,7.
Alternativamente, a ciclosporina, em doses em torno de 6-10 mg/kg/dia, pode produzir
melhora significativa com cicatrização das lesões em períodos entre 1 e 3 meses,
sendo bem indicada para uma minoria de pacientes que não respondem a
corticoterapia7,8.
Inibidores do TNF-alfa, como o infliximabe, vêm sendo utilizados com bons resultados
em pacientes que se beneficiam com o uso dessa droga por suas comorbidades10,12.
A oxigenoterapia hiperbárica pode estar indicada em pacientes que não toleram ou não
respondem a altas doses de corticoides sistêmicos, contudo, o resultado terapêutico
mostra-se menos eficaz, como demostrados em algumas séries de casos11. A terapêutica tópica está indicada como
complemento da sistêmica, e isoladamente, em casos muito selecionados e de menor
gravidade, sendo os corticoesteroides as drogas de eleição6,7,11.
A antibioticoterapia não está respaldada para os casos de PG, como demonstrado em
todas as séries estudadas, de forma que não há benefícios clínicos do uso de
antimicrobianos nestes pacientes7,9.
Em relação a cirurgias plásticas futuras, o paciente deverá ser orientado sobre as
chances de recorrência do PG, devendo este ponto ser bem explicitado no Termo de
Consentimento Esclarecido a ser assinado pelo mesmo. Recomenda-se um longo
follow-up com médico reumatologista, que deverá rastrear outras
afecções autoimunes7,9,12.
COLABORAÇÕES
FFGO
|
Concepção e desenho do estudo; realização das operações e/ou
experimentos; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu
conteúdo.
|
MF
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
AMNG
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
OSF
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
MRM
|
Realização das operações e/ou experimentos.
|
EGC
|
Aprovação final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; realização
das operações e/ou experimentos.
|
OS
|
Aprovação final do manuscrito.
|
REFERÊNCIAS
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retrospective review of patient characteristics, comorbidities and therapy in
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2007;2:19. DOI: http://dx.doi.org/10.1186/1750-1172-2-19
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Fonseca DM. Multiple cavitary pulmonary nodules in association with pyoderma
gangrenosum: case report. An Bras Dermatol. 2012;87(2):301-4. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0365-05962012000200018
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http://dx.doi.org/10.1016/j.ad.2011.04.010
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Cicatrização. Rev Bras Cir Plást. 2006;21(2):120-4.
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S. Pioderma gangrenoso - apresentação clínica de difícil diagnóstico. An Bras
Dermatol. 2011;86(1):153-6. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0365-05962011000100025
7. Azulay RD, Azulay LA. Dermatologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara
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gangrenoso: casuística e revisão de aspectos clínico-laboratoriais e
terapêuticos. An Bras Dermatol. 1999;74(5):465-72.
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Pioderma Gangrenoso: um Artigo de Revisão. J Vasc Bras. 2013;12(1):25-33. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492013000100006
11. Coelho LF, Correia FG, Ottoni FA, Santos FPST, Pereira LB, Lanna
CCD. Pioderma gangrenoso: um desafio para o reumatologista. Rev Bras Reumatol.
2009;49(3):315-20. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0482-50042009000300013
12. Graças AM, Alecrim ES, Lyon S. Pioderma gangrenoso: evidências
clínicas e características. Rev Med Minas Gerais.
2016;26:e-1790.
1. Hospital São Lucas, Serviço de Cirurgia
Plástica Osvaldo Saldanha, Santos, SP, Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São
Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Francisco Felipe Góis
de Oliveira, Av. Ana Costa, 146 conjunto 1201 - Vila Matias - Santos,
SP, Brasil. CEP 11060-000. E-mail:
felipegoismd@gmail.com
Artigo submetido: 19/10/2017.
Artigo aceito: 5/9/2018.
Conflitos de interesse: não há.