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Dermolipectomia higiênica em infecção por micobactéria não tuberculosa: relato de caso
Hygienic dermolipectomy in infeccion by non-tuberculous mycobacteria: case report
Case Reports -
Year2010 -
Volume25 -
Issue
1
Romeo dos Santos Pohlmann1, José Luiz Leal2, Flavia Freire Dantas3, Giancarlo Cervo Rechia1, Luiz Fernando Campos1, Thiago Roberto Bandeira1, Priscila Aragão Antonini1, Carina Pereira Coelho1
RESUMO
Introdução: A incidência de infecção por micobactéria não tuberculosa está aumentando em todo o mundo. No Brasil, já tivemos dois grandes surtos dessa infecção após cirurgias plásticas. Isso tem chamado a atenção de cirurgiões quanto ao diagnóstico e ao tratamento da micobacteriose. Fisiopatologia: As estações de tratamento de água são os reservatórios das micobactérias. As mesmas acabam por contaminar equipamentos médicos. Após o contato do paciente com o material, este desenvolve a infecção. Tratamento: É realizado por meio do uso de antibióticos. Às vezes, a ressecção das lesões acelera o tratamento. Relato do caso: Relatamos o caso de um paciente ainda obeso, com abdome em avental após perda ponderal acentuada, e com múltiplas lesões por micobactéria disseminadas por todo o abdome. A fonte de infecção foi uma colecistectomia convencional. Como forma de ressecar todas as lesões macroscópicas do abdome, optamos por realizar uma dermolipectomia higiênica após marcação do abdome em âncora. Conclusão: A melhor maneira de nossos pacientes não adquirirem esse tipo de infecção é assegurarmos a higiene adequada de nosso material cirúrgico.
Palavras-chave:
Mycobacterium. Infecção. Infecções por Mycobacterium. Complicações pós-operatória. Controle de infecções. Obesidade mórbida.
ABSTRACT
Introduction: The incidence of nontuberculous mycobacterial disease is increasing worldwide. In Brazil, we had two big outbreaks of this bacterial infeccion after plastic surgeries. This has drawn the attention of surgeons to the diagnosis and treatment of mycobacteriosis. Physiopatologhy: Water supplies are now recognized as a reservoir for mycobacterias. These bacterias end up contaminating medical equipment. After the contact of the patients with the material, they develop the infeccion. Treatment: Mycobacterial lesions are primarily treated using antimicrobial agents. However, removal of the lesion may speed resolution. Case report: We reported a case of a patient still obese, with massive hanging pannus after important weigtht loss and multiple injuries by mycobacteria spread throughout the abdomen. The source of infection was a conventional cholecystectomy. As a way to resect all macroscopic lesions of the abdomen, we choose to perform a hygienic dermolipectomy after marking in anchor. Conclusion: The best way of our patients not to acquire this type of infection is through the appropriate hygiene of our surgical material.
Keywords:
Mycobacterium. Infection. Mycobacterium infections. Postoperative complications. Infection control. Obesity morbid.
INTRODUÇÃO
A frequência de infecção por micobactérias não tuberculosas está aumentando em todo o mundo. Ainda não existe uma explicação para esse aumento, porém atribui-se em parte à melhora nos métodos de cultura. Além disso, a sobrevivência desses organismos é aumentada por fatores do hospedeiro (imunossupressão), alteração de suas defesas por lesão de tecidos ou colocação de um corpo estranho.
No Brasil, o primeiro surto de infecção por micobactérias não tuberculosas ocorreu em 2005, na cidade de Campinas-SP, e envolveu dezenas de pacientes submetidos à colocação de próteses mamárias. Posteriormente ocorreram novos casos no Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Goiás, Minas Gerais e Espírito Santo. No total, somam-se mais de 2000 casos registrados desde então.
A infecção por essas micobactérias não tuberculosas é considerada do tipo hospitalar, pois se manifesta após a realização de procedimentos invasivos. A maior incidência dessas infecções é registrada nas áreas de cirurgia geral (videocirurgias) e de cirurgia plástica estética. Nesta área, os casos mais frequentes ocorrem após mamoplastias de aumento com implantes e também após lipoaspiração. Contudo, já ocorreram vários casos após blefaroplastias, ritidoplastias e alguns após cirurgias crânio-maxilo-faciais.
O último grande surto de infecção por micobactérias na cirurgia plástica ocorreu em agosto de 2008, no Espírito Santo, sendo observados vários casos após procedimentos de lipoaspiração. Isso gerou processos por parte dos pacientes contra médicos e clínicas, além de causar repercussão negativa da especialidade perante a mídia.
Fisiopatologia
As micobactérias não tuberculosas são bactérias comensais encontradas no solo e na água. Infecções de tecidos moles por micobactérias na cirurgia plástica geralmente são ocasionadas por aquelas não tuberculosas de crescimento rápido: Micobacterium abscessus, M. fortuitum e M. chenolae. São chamadas assim porque crescem em 7 dias, ao invés de 14 a 21, como ocorre com as demais micobactérias. Essas bactérias geralmente estão associadas ao uso de corpos estranhos (implantes) ou procedimentos invasivos. Apesar de não serem comensais da pele, a perda da integridade desta está associada à infecção.
Os maiores reservatórios dessas micobactérias são as estações de tratamento de água e os encanamentos. Nos encanamentos de água dos hospitais, por exemplo, as bactérias formam um biofilme entre a água armazenada e os canos. Esse biofilme armazena as bactérias e serve de suporte nutricional para as mesmas. A água que corre sobre esse biofilme é utilizada na higiene dos instrumentos médicos (cânulas de lipoaspiração, por exemplo), contaminando-os. Posteriormente, com o uso do instrumento contaminado no transoperatório, a bactéria é inoculada no paciente.
Algumas micobactérias (M. abscessus) sobrevivem até mesmo em soluções com água destilada a 1%, como aquela usada em marcadores de pele para cirurgia plástica. Já ocorreram surtos de infecção por micobactérias após cirurgia plástica, nos Estados Unidos, devido à contaminação desses marcadores.
Após a inoculação da micobactéria no paciente pode ocorrer infecção em qualquer tecido, órgão ou sistema do corpo. Entretanto, os locais mais acometidos são a pele e o tecido celular subcutâneo.
Na pele, geralmente a infecção se manifesta por lesões nodulares próximas à incisão cirúrgica ou pelo aparecimento de secreção serosa na deiscência ou na cicatriz cirúrgica. Geralmente não há febre, sendo a queixa mais comum o aparecimento de secreção no local da incisão. A lesão poderá estar restrita à epiderme e à derme, ou mais frequentemente estar presente em todo o trajeto cirúrgico, inclusive com implantação em parede abdominal, articulações ou em outras cavidades. A infecção evolui com aspecto inflamatório crônico e granulomatoso, podendo formar abscessos, frequentemente com crescimento lento, com manifestação até um ano após o ato cirúrgico.
Não existem sinais patognomônicos; a suspeita normalmente é levantada devido à falta de resposta aos antibióticos mais utilizados no tratamento de patógenos habituais de pele.
As lesões podem surgir desde duas semanas até doze meses após o procedimento cirúrgico. Perante um caso suspeito nós devemos realizar biópsia ou aspiração da lesão e solicitar: pesquisa para BAAR (geralmente positivo), cultura (confirmação do tipo de micobactéria) e anatomopatológico (granulomas com áreas centrais de necrose).
Ultrassonografia e ressonância nuclear magnética podem ser solicitadas para diagnóstico, identificação e localização de coleções líquido-caseosas a serem ressecadas.
RELATO DO CASO
JQ, 63 anos, sexo masculino, branco, procurou o serviço de cirurgia geral do Hospital de Ipanema com vistas à realização de uma cirurgia bariátrica. Na época, o seu índice de massa corpórea (IMC) era de 62 kg/m2 (altura: 1 metro e 70 centímetros e peso: 180 kg). Foi submetido então, em 2006, a uma laparotomia exploradora com plano de realização de cirurgia bariátrica. Porém, no transoperatório, foi evidenciada esteato/cirrose hepática e colecistite, com importante processo inflamatório. Em decorrência do grande número de aderências e da dificuldade cirúrgica, optou-se pela realização exclusiva de colecistectomia, não sendo realizada, portanto, a redução gástrica. Cerca de um mês após o procedimento, já em acompanhamento ambulatorial, o paciente apresentou lesões na ferida operatória. A suspeita diagnóstica no período foi de infecção bacteriana e de granulomas de corpo estranho (fios de sutura da aponeurose). Realizado tratamento com antiobioticoterapia convencional domiciliar, com discreta melhora. Contudo, nos seis meses seguintes, houve o surgimento de novas lesões na linha da ferida operatória e outras lesões em vários pontos da parede abdominal e do tórax (principalmente na mama direita). No início de 2007, o paciente foi internado novamente no Hospital de Ipanema para tratamento com antibiótico endovenoso e investigação diagnóstica, sendo submetido a biópsias e confirmada a infecção por micobactérias não tuberculosas. O paciente foi encaminhado ao Serviço de Infectologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo iniciado o tratamento com claritromicina, amicacina e etambutol. Realizou o tratamento clínico por um ano. No início de 2008, o paciente foi novamente internado no Hospital de Ipanema, sendo submetido a ressecção de várias lesões no abdome e no tórax, pelo Serviço da Cirurgia Geral. O paciente apresentou melhora do quadro e manteve o uso das medicações até maio de 2008.
Após a suspensão da medicação, o paciente evoluiu com importante recidiva das lesões, em vários locais do abdome, sendo internado pela quarta vez, em setembro de 2008. O aspecto das lesões nesse momento era de casca de laranja. O Serviço de Infectologia reiniciou antibioticoterapia e solicitou ampla ressecção de todas as lesões macroscópicas.
Devido ao fato do paciente ter apresentado nos últimos dois anos importante emagrecimento apenas com dieta (passou de 180 para 120 kg), seu abdome possuía importante flacidez, do tipo em avental.
A equipe de Cirurgia Geral solicitou o auxílio da Cirurgia Plástica para a realização da segunda ressecção das lesões por micobactérias (Figuras 1 e 2). Considerando-se que o paciente apresentava abdome em avental, ocasionando dificuldade de deambulação e higienização, associado ao fato de necessitar de ressecção ampla das lesões, optamos pela realização de paniculectomia higiênica. Este procedimento difere da abdominoplastia clássica, pois é realizado em pacientes com IMC maior do que 35 kg/m2 (IMC atual do paciente: 41 kg/m2) e consiste na retirada do excesso de panículo adiposo com finalidade puramente funcional. Com a paniculectomia higiênica realizada no paciente, conseguimos ressecar todas as lesões macroscópicas da micobacteriose (Figuras 3 e 4). Foi necessário ressecar inclusive parte da aponeurose do reto abdominal e do oblíquo externo, para remoção completa das lesões. A marcação cirúrgica foi em âncora (Figura 5), o que proporcionou a ressecção da grande flacidez de pele, tanto acima quanto abaixo do umbigo. Somente com esta marcação cirúrgica foi possível englobar todas as lesões macroscópicas a serem ressecadas (Figura 6).
Figura 1 - Visão macroscópica das lesões cutâneas: pré-operatório.
Figura 2 - Visão macroscópica das lesões em partes moles.
Figura 3 - Transoperatório após ressecção de todas lesões macroscópicas.
Figura 4 - Pós-operatório precoce.
Figura 5 - Lesões micobacterianas ulceradas.
Figura 6 - Pós-operatório de 4 meses: visão frontal.
Além de auxiliar no combate da infecção, a cirurgia trouxe grande auxílio ao paciente para realização de sua higiene e facilitar sua deambulação. No pós-operatório, foram mantidos dois drenos de hemovac calibrosos por um período de sete dias, até a drenagem tornar-se insignificante. O paciente recebeu alta hospitalar após 15 dias, pela necessidade de antibioticoterapia endovenosa, e passou a ser acompanhado ambulatorialmente. No pós-operatório, realizou consultas semanais (Figuras 7 e 8). Necessitou de cinco punções do abdome para a retirada de seroma. Não apresentou nem deiscência e nem infecção da ferida operatória até o segundo mês, quando então passou a apresentar pequenas lesões sugestivas de recidiva da micobacteriose. Porém, seguindo orientação do Serviço de Infectologia, foi mantida antibioticoterapia agressiva e não foi realizada nenhuma nova ressecção.
Figura 7 - Pós-operatório de 4 meses: visão lateral esquerda.
Figura 8 - Marcação em âncora utilizada.
Tratamento
Lesões cutâneas e de partes moles por micobactérias são primeiramente tratadas com o uso de antimicrobianos. Entretanto, a ressecção cirúrgica da mesma pode acelerar a resolução do processo. O uso do antimicrobiano é guiado pela susceptibilidade a partir de um antibiograma, o qual é necessário para correto tratamento. Um a quatro antimicrobianos são necessários, dependendo da gravidade da infecção e da possível duração do tratamento. A claritromicina geralmente é a droga central do tratamento, por apresentar baixa resistência.
A duração do tratamento é guiada pela resposta clínica, que pode durar de seis semanas, com completa resolução dos sintomas, até casos em que o tratamento é prolongado por meses, com lenta resolução clínica.
CONCLUSÃO
Devido ao importante aumento na incidência de infecções por micobactérias na área da cirurgia estética, todos cirurgiões plásticos devem estar atentos às infecções por micobactérias1-9. Devemos desconfiar de lesões suspeitas e evitar o diagnóstico tardio.
O diagnóstico precoce e o rápido início no tratamento resultarão em uma infecção menos grave e em menores sequelas estéticas e psicológicas ao nosso paciente. Para que isso ocorra, devemos ter um baixo limiar e fazer punção ou biópsia de qualquer lesão que surgir após duas semanas de pós-operatório na ferida cirúrgica do paciente. Devemos lembrar de solicitar a pesquisa direta para BAAR e a cultura para micobactérias para esse material coletado.
REFERÊNCIAS
1. ANVISA/GIPEA/GGTES. Informe técnico no 1. Infecção por Mycobacterium abscessus. Diagnóstico e tratamento. Brasília: ANVISA/GIPEA/GGTES;2007.
2. ANVISA/GIPEA/GGTES. Informe técnico no 2. Medidas para a interrupção do surto de infecção por MCR (micobactérias de crescimento rápido) e ações preventivas. Brasília:ANVISA/GIPEA/GGTES;2007.
3. ANVISA/GIPEA/GGTES. Informe técnico no 3. Alerta sobre infecções por micobactéria não tuberculosa após videocirurgia. Brasília:ANVISA/GIPEA/GGTES;2007.
4. ANVISA/GIPEA/GGTES. Informe técnico no 4. Glutaraldeído em estabelecimentos de assistência à saúde. Fundamentos para utilização. Brasília:ANVISA/GIPEA/GGTES;2007.
5. Centro Estadual de Vigilância em Saúde do Rio Grande do Sul. Prevenção e controle de infecções por micobactéria não tuberculosa relacionadas a vídeo-cirurgia e outro procedimentos invasivos. Nota Técnica Conjunta Nº 01/2007. Porto Alegre:Centro Estadual de Vigilância em Saúde do Rio Grande do Sul;2007.
6. Kaluf R, Azevedo FN, Rodrigues LO. Sistemática cirúrgica em pacientes ex-obesos. Rev Soc Bras Cir Plast. 2006;21(3):166-74.
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9. Douglas RS, Cook T, Shorr N. Lumps and bumps: late postsurgical inflammatory and infectious lesions. Plast Reconstr Surg. 2003;112(7):1923-8.
1. Especialização; Médico residente de cirurgia plástica do Hospital de Ipanema.
2. Especialista em Cirurgia Plástica; Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica; Regente do Serviço de Residência em Cirurgia Plástica do
Hospital de Ipanema.
3. Especialista em cirurgia plástica; Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
Trabalho realizado no Hospital Geral de Ipanema, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.
Correspondência para:
Romeo dos Santos Pohlmann
Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 1003, apto 807 - Copacabana
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E-mail: rpohlmann2002@yahoo.com.br
Artigo recebido: 8/5/2009
Artigo aceito: 18/1/2010
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