Open Access Revisão por pares

Original Article - Year 2024 - Volume 39 - Issue 4

Aplicações do retalho deltopeitoral na reconstrução de grandes defeitos da cabeça e pescoço: Relato de dois casos

Application of the Deltopectoral Flap in the Reconstruction of Large Head and Neck Defects: Two Case Reports

http://www.dx.doi.org/10.1055/s-0045-1801848

RESUMO

Introdução O retalho deltopeitoral foi descrito pela primeira vez por Aymard em 1917 para a reconstrução do nariz. Todavia, recebeu destaque a partir de 1965, quando Bakamjian começou a utilizar o retalho para reconstruções faringoesofágicas.
Métodos Análise retrospectiva de pacientes operados em 2022. Dentre estes, foram selecionados dois pacientes que foram submetidos à reconstrução cervicofacial com retalho deltopeitoral. Os pacientes foram avaliados em relação à idade, sexo, etiologia da lesão, localização do defeito e número de tempos cirúrgicos realizados por paciente. Foram ainda analisados complicações pós-operatórias e satisfação pessoal dos pacientes.
Resultados Os pacientes foram submetidos à reconstrução da região cervicofacial após ressecção tumoral e ambos necessitaram mais de um tempo cirúrgico para refinamento e transecção do pedículo. Um dos pacientes apresentou deiscência de ferida operatória após o reposicionamento do retalho na área doadora, evoluindo com cicatriz hipertrófica e hipocrômica em relação às áreas adjacentes. Nos dois casos descritos em nosso estudo, optou-se pela confecção do retalho deltopeitoral por fornecer um retalho com pele fina, textura e cor semelhantes à região cervicofacial, pedículo constante e previsível, bom alcance aos defeitos, segurança e reprodutividade do retalho, técnica cirúrgica rápida e sem necessidade de mudança de decúbito no intraoperatório.
Conclusões O retalho deltopeitoral permanece como importante opção de tratamento na reconstrução de grandes defeitos da cabeça e pescoço mesmo após o advento da microcirurgia. Permite a transferência de tecido de forma eficiente e confiável com pequena deformidade na área doadora, possibilitando uma reconstrução esteticamente aceitável.

Palavras-chave: procedimentos de cirurgia plástica; neoplasias de cabeça e pescoço; retalhos cirúrgicos; terapêutica; complicações pós-operatórias

ABSTRACT

Introduction The deltopectoral flap was first described by Aymard in 1917 for nose reconstruction but became prominent after 1965 when Bakamjian began to use it for pharyngoesophageal reconstructions.
Methods This study is a retrospective analysis of patients undergoing surgery in 2022. Among them, we selected two patients subjected to cervicofacial reconstruction with deltopectoral flap. Their assessment included age, gender, lesion etiology, defect location, number of surgical procedures performed per patient, postoperative complications, and the personal satisfaction of the subjects.
Results Patients underwent cervicofacial reconstruction after tumor resection, and both required more than a surgical time for pedicle refinement and transection. One patient had a defect in an operative wound after repositioning the remnant in the donor area leading to a hypertrophic and hypochromic scar in the surrounding region. In these two cases, the deltopectoral flap supplied thin skin, with similar texture and color to the cervicofacial region, a consistent and predictable pedicle, good defect cover, flap safety and reproductivity, a fast surgical technique, and no need for patient positioning change during the procedure.
Conclusions The deltopectoral flap remains a significant therapeutic option in reconstructing large head and bone defects despite the advent of microsurgery. It allows for efficient and reliable tissue transfer with small deformities in the donor area, allowing an acceptable aesthetic reconstruction.

Keywords: plastic surgery procedures; head and neck neoplasms; surgical flaps; therapeutics; postoperative complications


Introdução

O retalho deltopeitoral foi descrito pela primeira vez por Aymard em 1917 para reconstruções nasais.Todavia,recebeu destaque em 1965, quando Bakamjian começou a utilizar o retalho para reconstruções faringoesofágicas.1,2

Este retalho tem padrão axial, baseado nos vasos perfurantes da artéria torácica interna, em sua porção medial, e padrão randomizado em sua porção lateral.1,2,3

A utilização deste retalho havia perdido popularidade devido aos retalhos livres, contudo permanece no cenário atual como alternativa em regiões onde não há disponibilidade de equipe microcirúrgica ou quando o paciente não é elegível para esta técnica.1,4

Objetivo

Apresentar as aplicações do retalho deltopeitoral para fechamento de grandes defeitos na região cervicofacial, bem como apresentar dois casos e a técnica cirúrgica empregada no serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Federal da Lagoa.

Métodos

O estudo foi realizado através de uma análise retrospectiva de pacientes operados no ano de 2022 em conjunto com a equipe da Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Dentre estes, foram selecionados dois pacientes que foram submetidos à reconstrução cervicofacial com retalho deltopeitoral.

Estes foram avaliados em relação à idade, sexo, etiologia da lesão, localização do defeito e número de tempos cirúrgicos realizados por paciente. Foram ainda analisados complicações pós-operatórias e satisfação pessoal dos pacientes.

Este estudo seguiu os princípios éticos de Helsinque e foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital Federal da Lagoa.

Técnica cirúrgica

O retalho possui formato retangular, na região torácica superior desde o esterno até a região anterior do deltoide. Abase do retalho está localizada paraesternalmente a 2cm da borda esternal, sendo o limite superior a clavícula e o limite inferior, paralelo ao limite superior, entreo 3° ou 4° espaço intercostal.1

Há casos em que para alcançar o defeito, o comprimento do retalho precisa ser estendido até a região lateral do deltoide. Existe ainda a possibilidade do uso de expansores previamente a transferência tecidual para promover um alongamento dos tecidos. Outra estratégia que pode ser utilizada para diminuir chances de necrose do retalho, seria a autonomização prévia da extremidade distal do retalho promovendo uma neovascularização nesta localização.5

O suprimento sanguíneo deste retalho é proveniente dos vasos perfurantes da artéria torácica interna com a contribuição do 2° e 3° ramos perfurantes na sua porção medial. Já a porção lateral ao sulco do deltoide, possui padrão randômico derivado das artérias musculocutâneas dos ramos deltoide e acromial da artéria tóracoacromial.1,2

A incisão é feita de acordo com a marcação prévia do retalho e o plano de dissecção profundamente à fáscia deltoide na região deltoide e à fáscia peitoral no tórax, no sentido distal para a base. O comprimento do retalho irá variar conforme a distância até o defeito para que o alcance e seja suturado sem tensão. O pedículo do retalho permanece, em média, por um período de 2 a 3 semanas até que ocorra a neovascularização na área receptora.1

No segundo tempo cirúrgico, o pedículo é seccionado e recolocado na área doadora e o defeito remanescente do local doador pode ser coberto com enxertos de pele até a sua completa cicatrização. O retalho deltopeitoral em geral alcança um bom resultado estético, fornecendo uma coloração e textura aceitáveis.1,6

Paciente 1

Paciente do sexo masculino de 71 anos, apresentou-se na unidade com lesão ulcerada em região cervical esquerda com tempo de evolução de aproximadamente 4 anos (►Fig. 1). Foi realizado o planejamento cirúrgico do caso para a ressecção da lesão bem como confecção do retalho deltopeitoral (►Fig. 2). Aspecto após ressecção da lesão tumoral demonstrou margens livres após a congelação intraoperatória (►Fig. 3). O retalho deltopeitoral promoveu o fechamento do defeito cervical (►Fig. 4). No segundo tempo cirúrgico, após 4 semanas, foi realizado a secção do pedículo e enxertia de pele total no defeito remanescente. (►Fig. 5). Follow-up com 6 meses, observa-se boa cicatrização tanto do retalho quanto da área enxertada. (►Figs.6 e 7). Histopatológico da lesão confirmou o diagnóstico de carcinoma basocelular ceratótico com estadiamento pT2N0.

Fig. 1 - Aspecto macroscópico da lesão em região cervical.

Fig. 2 - Planejamento cirúrgico e dermarcação da lesão cervical com margens.

Fig. 3 - Aspecto após a ressecção tumoral.

Fig. 4 - Aspecto após a confecção do retalho deltopeitoral e cobertura da região cervical.

Fig. 5 - Aspecto pós 2° tempo cirúrgico com o reposicionamento do pedículo e enxerto da região anterior do ombro esquerdo com curativo de Brown.

Fig. 6 - Imagem da área doadora do retalho (follow-up de 6 meses) demonstrando boa cicatrização da área enxertada.

Fig. 7 - Imagem da área receptora do retalho (follow-up de 6 meses) demonstrando boa cicatrização e cobertura do defeito.

Paciente 2

Paciente do sexo masculino de 51 anos, apresentou-se na unidade com lesão ulcerovegentante e friável em região cervicofacial à esquerda com tempo de evolução de 6 meses e crescimento recente acelerado (►Fig. 8). Foi realizado o planejamento cirúrgico do caso para a ressecção da lesão bem como confecção do retalho deltopeitoral (►Fig. 9). Aspecto imediato após ressecção da lesão tumoral (►Fig. 10).Oretalho deltopeitoral promoveu o fechamento do defeito cervicofacial (►Fig. 11). No segundo tempo cirúrgico, após 4 semanas, foi realizado a secção do pedículo e enxertia de pele total no defeito remanescente. (►Fig. 12). Follow-up de 3 meses, observa-se área de deiscência de ferida operatória após o reposicionamento do retalho na área doadora em cicatrização. (►Fig.13).Follow-up de 6 meses com completa cicatrização da ferida (►Figs. 14 e 15). Histopatológico evidenciou carcinoma do tipo mucoepidermoide de alto grau de parótida esquerda com linfonodo positivo.

Fig. 8 - Aspecto macroscópico da lesão em região cervicofacial à esquerda.

Fig. 9 - Planejamento do retalho deltopeitoral.

Fig. 10 - Aspecto após a ressecção tumoral com exposicão do arco e ramo mandibulares bem como da região cervical esquerda.

Fig. 11 - Aspecto no pós-operatório imediato da confecção do retalho e enxertia da região do ombro esquerdo com curativo de Brown.

Fig. 12 - Imagem do pós-operatório recente do 2° tempo cirúrgico com reposicionamento do pedículo e fechamento da região cervicofacial.

Fig. 13 - Follow-up de 3 meses com deiscência de ferida operatória em área doadora.

Fig. 14 - Imagem oblíqua esquerda do follow-up de 6 meses, com cicatrização completa da área de deiscência e integração completa do retalho na região cervicofacial esquerda.

Fig. 15 - Perfil esquerdo do follow-up de 6 meses, com cicatrização completa da área de deiscência e integração complete do retalho na região cervicofacial esquerda.

Devido ao estadiamento avançado, necessitou de tratamento adjuvante, sendo realizado radioterapia pela técnica de intensidade modulada (IMRT) com dose total de 6000 cGy divididas em 30 sessões. Segue em acompanhamento pelas equipes de Cirurgia Plástica, Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Radioterapia.

Resultados

Os pacientes foram submetidos à reconstrução da região cervicofacial após ressecção tumoral e ambos necessitaram mais de um tempo cirúrgico para refinamento e transecção do pedículo.

Em nenhum dos pacientes houve grandes complicações, como necroses parcial ou total do retalho, assim como hematoma e infecção. Um dos pacientes apresentou deiscência de ferida operatória após o reposicionamento do retalho na área doadora, evoluindo com cicatriz hipertrófica e hipocromia em relação às áreas adjacentes.

Durante as visitas de pós-operatório, as diferenças de textura e cor da pele do retalho com a área receptora foram pequenas. Ambos os pacientes ficaram satisfeitos com os resultados obtidos aos 6 meses de pós-operatório.

Discussão

Algumas outras opções de retalhos podem promover o fechamento dos defeitos de cabeça e pescoço, entre eles o retalho miocutâneo pediculado do músculo peitoral maior, o retalho miocutâneo do músculo trapézio e os retalhos livres, como exemplo o retalho antebraquial.7

O primeiro é um tipo de retalho pediculado fino e flexível derivado de perfurantes da musculatura do peitoral maior, com mínima morbidade da área doadora e boa combinação de cor e textura nas reconstruções da cabeça e pescoço. Contudo, em alguns casos, pode ser esteticamente desagradável devido ao volume do retalho.7,8

O retalho miocutâneo do músculo trapézio foi descrito por Nakajima e Fujino, em 1984. É comumente utilizado em pacientes pós-radioterapia e repetidos procedimentos cirúrgicos pela limitação do uso de retalhos livres. Estes últimos são menos apropriados em paciente idosos devido ao tempo cirúrgico prolongado e por requererem equipe especializada, podendo o retalho de músculo trapézio ser uma alternativa. Uma desvantagem para a confecção deste retalho é a necessidade de mudança de decúbito no intraoperatório, que pode ser crucial em pacientes oncológicos, sendo esta uma das limitações do seu uso.7,8,9

Os retalhos livres têm como vantagens a pouca espessura acarretando menor volume na área doadora, seu pedículo vascular ser, geralmente, constante e boa tolerância à radioterapia.8

Os casos apresentados foram realizados em dois tempos cirúrgicos. Haveria ainda a possibilidade de autonomização prévia à transposição do retalho no intuito de promover o fenômeno de neovascularização da extremidade distal do retalho e, por consequência, diminuir chances de necrose nesta área. Este procedimento pode ser extremamente importante em reconstruções após falha de um retalho anterior. Entretanto, haveria a necessidade de aguardar de 7 a 15 dias para que o retalho pudesse ser transferido e, além de prolongar por mais um tempo cirúrgico, a espera aumentaria ainda mais o defeito naqueles pacientes portadores de neoplasias com pior prognóstico.10

Nos casos descritos, optou-se pela confecção do retalho deltopeitoral por fornecer um retalho com pele fina, textura e cor semelhantes à região cervicofacial, pedículo constante e previsível, bom alcance aos defeitos, segurança e reprodutividade do retalho, técnica cirúrgica rápida e sem necessidade de mudança de decúbito no intraoperatório.

Por fim, o retalho deltopeitoral também é utilizado para tratamento de complicações, como fístulas salivares, contraturas cervicais e necroses cutâneas pós-radioterapia.7

Conclusão

O retalho deltopeitoral permanece como importante opção de tratamento na reconstrução de grandes defeitos da cabeça e pescoço mesmo após o advento da microcirurgia. Permite a transferência de tecido de forma eficiente e confiável com pequena deformidade na área doadora, possibilitando uma reconstrução esteticamente aceitável.

Referências

1. Thomaidis V. Cutaneous Flaps in Head and Neck reconstruction: From anatomy to surgery. Berlin, Heidelberg: Springer; 2014. Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-642-41254-7_9

2. Vanni CMRS. Retalho miocutâneo de peitoral maior nas reconstruções de defeitos da cabeça e pescoço: estudo anatômico. Orientador: Dr Fábio Roberto Pinto 2011. 155 p. Tese de douturado (Doutorado em ciências médicas) - Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013

3. Shetty R, Barreto E, Paul M K. Incisão em abordagem única por meio de técnica de retalho deltopeitoral para reconstrução de traqueostomia em paciente submetido a radioterapia após laringectomia. Rev Bras Cir Plást 2014;29(02):294–296

4. Kang SK, Qamar SN, Tikka T, Milner TD. Deltopectoral Flap Reconstruction of the Posterior Pharyngeal Wall: A Single Stage Pedicle Flap Alternative Solution to the Free Flap Reconstruction of Circumferential Laryngopharyngeal Defects. Indian J Otolaryngol Head Neck Surg 2022;74(03):416–421

5. Ding J, Li Y, Li W, et al. Use of expanded deltopectoral skin flaps for facial reconstruction after sizeable benign tumor resections. Am J Transl Res 2018;10(07):2158–2163

6. Kerdoud O, Aloua R, Slimani F. The deltopectoral flap in fullthickness cheek defect: A case report. Ann Med Surg (Lond) 2021; 62:119–122

7. Chan RCL, Chan JYM. Deltopectoral flap in the era of microsurgery. Surg Res Pract 2014;2014(5p):420892

8. Portinho CP, et al. Reconstrução microcirúrgica em cabeça e pescoço: uma análise retrospectiva de 60 retalhos livres. Rev Bras Cir Plást 2013;28(03):434–443

9. Yang HJ, Lee DH, Kim YW, Lee SG, Cheon YW. The Trapezius Muscle Flap: A Viable Alternative for Posterior Scalp and Neck Reconstruction. Arch Plast Surg 2016;43(06):529–535

10. Colletti G, Autelitano L, Tewfik K, Rabbiosi D, Biglioli F. Autonomized flaps in secondary head and neck reconstructions. Acta Otorhinolaryngol Ital 2012;32(05):329–335











1. Serviço de Cirurgia Plástica, Hospital Federal da Lagoa, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Ensaio Clínico

Não.

Financiamento

Os autores declaram não ter recebido financiamento para esta pesquisa.

Endereço para correspondência José Paulo Guedes Saint-Clair, Rua Jardim Botânico, 501, Jardim Botânico, 6° andar, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP 22470-050 (e-mail: jose_paulo_lp@hotmail.com; cirurgiaplasticahfl@gmail.com).

Artigo submetido: 06/01/2024.
Artigo aceito: 16/11/2024.

Conflito de Interesses

Os autores não têm conflitos de interesses a declarar.