INTRODUÇÃO
Segundo o Ministério da Saúde, atualmente há 46 centros de referência de alta
complexidade em assistência a queimados no Brasil, cinco deles em Minas Gerais1. Devido à prevalência, morbidade, mortalidade,
complexidade e altos custos de tratamento das vítimas de queimadura, faz-se
necessário estudo epidemiológico permanente para que sejam propostas e validadas
estratégias de abordagem, bem como previstos e alocados adequadamente os recursos
necessários à prevenção, terapêutica e reabilitação dos pacientes.
O artigo “Epidemiologia das queimaduras no estado de Minas Gerais”, publicado na
Revista Brasileira de Cirurgia Plástica2, analisa dados do ano de 2010 do Centro de Tratamento de
Queimados (CTQ) do Hospital João XXIII, maior da América Latina especializado no
tratamento desta enfermidade.
OBJETIVO
Os objetivos deste novo estudo foram investigar os dados epidemiológicos do ano de
2020 de um CTQ de alta complexidade, instalado no Hospital João XXIII, em Belo
Horizonte-MG, e compará-los aos dados do mesmo centro apresentados há uma década no
referido artigo, para reorientar o planejamento.
MÉTODO
Trata- se de estudo observacional, retrospectivo, baseado em consulta aos prontuários
de pacientes internados no CTQ do Hospital João XXIII, incluindo-se enfermarias e
centros de tratamento intensivo pediátrico e de adultos, que compara os dados de
2020 aos de fevereiro de 2009 a julho de 2010 do referido artigo. Foram incluídas
variáveis do estudo anterior e adicionadas novas variáveis rotineiramente
registradas nos prontuários. Excluíram-se deste estudo os pacientes atendidos no
setor de urgência, mas não internados, tratados e acompanhados ambulatorialmente.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospitalar do
Estado de Minas Gerais, registrado sob número CAAE 07134818.7.0000.5119.
RESULTADOS
Em 2020 foram internados no Hospital João XXIII 473 pacientes com queimaduras, sendo
63,4% do sexo masculino (300) e 36,6% do sexo feminino (173). A média de idade foi
de 30 anos, e 21,6% (102) tinham idades entre 0 e 4 anos.
Foram internados 40,6% (192) dos pacientes na enfermaria de queimados adultos, com
idade média de 44 anos, 31,7% (150) na enfermaria de queimados pediátricos, com
idade média de 4 anos, 23,7% (112) no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) de
adultos, com idade média de 44 anos, e 4,0% (19) no CTI pediátrico, com idade média
de 5 anos, sendo 38,1% (180) provenientes da capital e 61,9% (293) do interior do
estado de Minas Gerais. A média de internação dos pacientes foi de 25 dias, sendo
de
17 dias nas enfermarias, de 26 dias no CTI adulto e de 30 dias no CTI
pediátrico.
A superfície corporal queimada (SCQ) média dos pacientes admitidos foi de 18,8%,
sendo 19,2% entre os homens e 18,1% entre as mulheres. A SCQ média dos admitidos nas
enfermarias foi de 12,6%, dos admitidos no CTI de adultos de 35%, e dos admitidos
no
CTI pediátrico de 33%.
Sofreram queimadura por acidente 87,5% (414) dos pacientes e, por agressão, 6,1%
(29). Queimaduras por tentativa de autoextermínio ocorreram em 6,4% (30) dos
pacientes, sendo 70% (21) mulheres e 30% (9) homens.
Em relação ao agente etiológico da queimadura, 34,5% (163) foram causadas por
líquidos quentes, atingindo 77,5% (79) dos pacientes de 0 a 4 anos, 23,7% (112) por
álcool, 19,9% (94) por calor direto, 9,5% (45) por líquidos inflamáveis, exceto
álcool, 6,1% (29) por eletricidade, e 6,3% (30) por outro agente. A SCQ média das
queimaduras provocadas por álcool foi de 23,9%, e por líquidos quentes de 12,1%.
Entre vítimas de queimadura por álcool, 60,7% (68) eram homens.
No CTI pediátrico 31,5% (6) das crianças foram internadas com queimaduras por chama
direta, 26,3% (5) por escaldadura, 15,8% (3) por álcool, 15,8% (3) por inflamáveis,
exceto álcool, 5,3% (1) por soda cáustica e 5,3% (1) por abrasão traumática.
Foram realizados 580 desbridamentos cirúrgicos, 473 enxertos autólogos, 8 enxertos
homólogos e 24 retalhos. Em relação ao desfecho, 91,1% (431) dos internados
receberam alta hospitalar e 1,5% (7) foram transferidos para serviços privados.
Foram a óbito 7,4% (35) dos pacientes, correspondentes a 29,5% (33) daqueles
admitidos no CTI de adultos e a 10,5% (2) dos admitidos no CTI pediátrico.
Entre os óbitos, 94,3% (33) ocorreram no CTI de adultos, sendo 54,6% homens e 45,4%
mulheres, com idade média de 43 anos e SCQ média de 49,7%. A SCQ média entre os
homens que faleceram nessa unidade foi de 47,4%, e entre as mulheres, de 52,4%. A
mediana do tempo de internação até o óbito foi de 9 dias. Em relação à causa das
queimaduras que levaram aos óbitos nessa unidade, 63,6% (21) foram por acidente,
15,2% (5) por agressão física e 21,2% (7) por autoextermínio. Entre os 30 pacientes
que tentaram autoextermínio, 23,3% (7) foram a óbito, com média de idade também de
43 anos, e SCQ média de 69%. As queimaduras que mais provocaram óbito foram causadas
por álcool, em 42,4% (14) dos pacientes, seguidas pelas provocadas por calor direto,
em 33,3% (11) dos casos, por inflamáveis, exceto álcool, em 15,2% (5) dos casos, e
por agente gasoso, químico ou elétrico em 9,1% (3) dos casos.
Entre os óbitos, 5,7% (2) ocorreram no CTI pediátrico, ambos por queimaduras causadas
por acidentes, um deles por queimadura de vias aéreas e outro por pneumonia de
aspiração.
A principal causa dos óbitos foi sepse, correspondendo a 57,1% (20) dos casos, 28,6%
(10) faleceram por disfunção de múltiplos órgãos e sistemas, e 14,3% (5) faleceram
por outras causas. Os germes mais prevalentes, que causaram septicemia e óbito,
foram Acinetobacter baumanii, Pseudomonas aeruginosa, Enterococcus
faecalis e Enterobacter cloacae.
Não houve óbito nas enfermarias. Entre os pacientes que faleceram em 2020, apenas
um
foi detectado como positivo para Covid-19. A causa do seu óbito foi sepse com foco
nas feridas cutâneas.
Comparando-se dados de 2010 aos de 2020, verifica-se que as maiores vítimas de
queimaduras continuam sendo homens, adultos jovens, com superfícies corporais
queimadas equivalentes, internados por tempo superior a três semanas (Tabela 1).
Tabela 1 - Comparação entre internados no Centro de Tratamento de Queimados em 2010
e em 2020.
|
2010 |
2020 |
Sexo
masculino
|
62,5% |
63,4% |
Sexo feminino |
37,5% |
36,6% |
Idade
média
|
29 |
30 |
SCQ média |
20,8% |
18,8% |
SCQ
média em pacientes do sexo masculino
|
20% |
19,2% |
SCQ média em pacientes do sexo
feminino
|
22,3% |
18,1% |
Tempo médio de internação (dias) |
23,5 |
25 |
Tabela 1 - Comparação entre internados no Centro de Tratamento de Queimados em 2010
e em 2020.
Entretanto, nesse período houve inversão da procedência dos pacientes. Em 2010, a
maioria dos pacientes internados residia na capital. Em 2020, a maioria residia no
interior do estado (Figura 1).
Figura 1 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por procedência.
Figura 1 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por procedência.
As queimaduras por acidente foram ainda mais frequentes e causaram mais óbitos em
2020, ao contrário das queimaduras por tentativa de autoextermínio (Figuras 2, 3, 4).
Figura 2 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por intencionalidade das queimaduras.
Figura 2 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por intencionalidade das queimaduras.
Figura 3 - Estratificação do desfecho dos internados no Centro de Tratamento de
Queimados por queimadura acidental.
Figura 3 - Estratificação do desfecho dos internados no Centro de Tratamento de
Queimados por queimadura acidental.
Figura 4 - Estratificação do desfecho dos internados no Centro de Tratamento de
Queimados por tentativa de autoextermínio.
Figura 4 - Estratificação do desfecho dos internados no Centro de Tratamento de
Queimados por tentativa de autoextermínio.
Tentativas de autoextermínio mantiveram-se predominantes entre pacientes do sexo
feminino em 2010 (66%) e em 2020 (70%), e causaram 39% dos óbitos em 2010, e 20% em
2020. Entre os óbitos por autoextermínio, em 2010 foram de pacientes mais jovens,
com acometimento de menor SCQ (Tabela 2).
Estes dados assemelham-se aos publicados em estudo específico do mesmo CTQ3.
Tabela 2 - Comparação entre óbitos por autoextermínio dos internados no Centro de
Tratamento de Queimados em 2010 e em 2020.
|
2010 |
2020 |
Idade
média (anos)
|
39 |
43 |
SCQ média |
40% |
69% |
Tabela 2 - Comparação entre óbitos por autoextermínio dos internados no Centro de
Tratamento de Queimados em 2010 e em 2020.
Em 2010 o álcool foi o agente etiológico mais prevalente. Em 2020 manteve- se
relevante, mas foi superado por líquidos quentes (Figura 5), principalmente até a idade de 4 anos em ambos os períodos. A
partir dos 5 anos de idade, o principal agente etiológico foi o álcool em ambos os
estudos. Nesse período, manteve-se como o agente etiológico que provocou queimaduras
mais graves, com SCQ média de 28% em 2010 e de 23,9% em 2020, responsável por 52,7%
dos pacientes que foram a óbito em 2010, e por 40% em 2020.
Figura 5 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por agente etiológico das queimaduras.
Figura 5 - Estratificação dos internados no Centro de Tratamento de Queimados
por agente etiológico das queimaduras.
Em 2010 o autor identificou mortalidade de 16,3%, com tendência de queda, e em 2020
a
mortalidade realmente diminuiu para 7,4%. O número médio de procedimentos cirúrgicos
por paciente foi coincidente nos dois períodos (2,28 versus 2,24).
Foram 0,85 procedimentos de enxerto autólogo por paciente em 2010 e de 1,00 por
paciente em 2020.
DISCUSSÃO
Comparar momentos distintos do mesmo centro de tratamento permite avaliar indicadores
que validem o planejamento vigente ou alertem para a necessidade de correções.
Comparar dados de centros diferentes é tarefa desafiadora, uma vez que, apesar de
o
tratamento de queimados estar bem estabelecido na literatura mundial, há variáveis
de difícil isolamento e controle, como a pressão que a demanda impõe com recursos
limitados do serviço público, a transferência tardia de pacientes de centros não
especializados, e a eficiência do atendimento pré-hospitalar, que gera admissões de
pacientes com prognóstico muito desfavorável, cujo desfecho mais provável teria sido
o óbito na cena do trauma. Há casos dramáticos de pacientes com a SCQ próxima a
100%, que chegam ao pronto-atendimento orientados e conversando, mas cujo desfecho
para o óbito é, na prática atual, irreversível.
Globalmente, a mortalidade por queimadura é em torno de 5%4. Entretanto, conforme o escopo da publicação, encontram-se
dados muito diferentes na literatura mundial, como taxa de mortalidade de 37,75% em
estudo no Irã5, de 36,12% em estudo que
excluiu crianças no Paquistão4, de 23,4% nos
Camarões6, de 5,3% nos Estados Unidos4, e de 4,3% na Espanha7, em estudo em que apenas 9,7% eram queimados graves e cuja SCQ
média foi de apenas 8,3%.
O presente trabalho visou à comparação da evolução do mesmo centro de tratamento
quando se posicionou perante os dados da literatura há uma década. A publicação de
dados muito favoráveis são sempre inspiração para se espelhar em resultados
melhores. Em relação à comparação de dados muito específicos em períodos diferentes,
não se pode concluir sobre recortes de resultados aparentemente melhores em estudos
não dirigidos para este fim específico, pois a disponibilidade de recursos pode
depender de variáveis não isoladas, como a complexidade dos casos internados no
mesmo momento.
Entre os períodos estudados identificou-se maior encaminhamento de pacientes graves
para tratamento na capital do estado, ficando os centros do interior responsáveis
por pequenos e médios queimados locais. No CTQ do Hospital João XXIII buscou-se
intensificar a realização de desbridamentos e enxertias cutâneas precoces e no mesmo
tempo cirúrgico, conforme orienta a literatura8, com objetivo de diminuir a taxa de mortalidade. A utilização de
enxertos homólogos não foi maior devido à disponibilidade limitada nos bancos de
pele do país. Empenhou-se, também, em intensificar o esforço de se decidir levar
cobertura cutânea a feridas com tempos de epitelização limítrofes, para que não
cicatrizassem espontaneamente e gerassem sequelas de retração.
O aumento de óbitos por queimadura acidental entre os períodos avaliados demonstra
a
necessidade de intensificação das ações de prevenção. Mantém-se o protagonismo do
álcool nos desfechos mais desfavoráveis a partir dos 5 anos de idade, e a
necessidade de atenção especial e dirigida para regulamentação da comercialização
dessa substância e campanhas preventivas de conscientização da população.
Há diversas ações em curso visando à melhora dos indicadores. A solicitação de
aquisição de tecnologia para microenxertia a Meek9 objetiva buscar alternativa para casos mais graves, em que não há
regiões doadoras de pele suficientes para enxertia autóloga. Atualmente, utiliza-se
expansão em tela no referido CTQ, em que a pele recrutada para enxertia é conduzida
junto a um rolo perfurador, que produz cortes lineares transfixantes por toda sua
superfície. Ao ser tracionada, os cortes tornam-se orifícios, com consequente
aumento da área da pele, duplicando-a, triplicando-a ou quadruplicando-a, conforme
a
decisão do cirurgião. Já a técnica Meek produz cortes ortogonais na pele recrutada
para enxertia. Ao ser transferida sobre curativo pré-sanfonado, que permite tração
em ambas as direções, produz uma matriz de pequenos enxertos quadriculares,
expandindo a pele recrutada em até nove vezes, permitindo cobrir áreas mais
extensas.
A solicitação de aquisição de matrizes extracelulares objetiva possibilitar a
simplificação de procedimentos selecionados em regiões com exposição de estruturas
nobres sem disponibilidade de retalhos locais, para permitir tratamento com enxertia
cutânea e abreviação do tempo de internação, diretamente associado à mortalidade.
Outras ações são a criação de serviço estadual de regulação de transferências ao CTQ
de alta complexidade, incentivo à criação de novos centros de tratamento de grandes
queimados no estado, proposta de criação de programa de capacitação à distância do
não especialista, sensibilização do poder público para a realização de campanha
permanente de prevenção a queimaduras e para inclusão de disciplina de prevenção a
acidentes no currículo escolar.
CONCLUSÃO
O perfil da vítima de queimadura atendido no CTQ Professor Ivo Pitanguy foi mantido
em grande parte em 10 anos. Entretanto, aumentou o número de atendimentos ao
paciente do interior do estado, e líquidos quentes ultrapassaram o álcool como
agente provocador de queimadura mais prevalente. A experiência e a busca da
conformidade com o tratamento baseado na literatura mundial resultaram em
indicadores mais favoráveis, sendo a diminuição da mortalidade o mais
significativo.
REFERÊNCIAS
1. Brasil. Ministério da Saúde. Habilitações. [acesso 2024 fev 10].
Disponível em: http://cnes2.datasus.gov.br/Mod_Ind_Habilitacoes_Listar.asp
2. Leão CEG, Andrade ES, Fabrini DS, Oliveira RA, Machado GLB, Gontijo
LC. Epidemiologia das queimaduras no estado de Minas Gerais. Rev Bras Cir Plást.
2011;26(4):573-7.
3. Oliveira RA, Andrade ES, Leão CEG. Epidemiologia das tentativas de
autoextermínio por queimaduras no estado de Minas Gerais. Rev Bras Queimaduras.
2012;11(3):125-7.
4. Ibran E, Mirza FH, Memon AA, Farooq MZ, Hassan M. Mortality
associated with burn injury - a cross sectional study from Karachi, Pakistan.
BMC Res Notes. 2013;6:545.
5. Ghahghai M, Ghorbani SS, Hoseininejad S, Sheikhi A, Farhadi M,
Rahbar R. Factors responsible for mortality among burns patients in Islamic
Republic of Iran. East Mediterr Health J. 2023;29(8):650-6.
6. Forbinake NA, Ohandza CS, Fai KN, Agbor VN, Asonglefac BK, Aroke D,
et al. Mortality analysis of burns in a developing country: a CAMEROONIAN
experience. BMC Public Health. 2020;20(1):1269.
7. Abarca L, Guilabert P, Martin N, Usúa G, Barret J P, Colomina MJ.
Epidemiology and mortality in patients hospitalized for burns in Catalonia,
Spain. Sci Rep. 2023;13(1):14364.
8. Janzekovic Z. A new concept in the early excision and immediate
grafting for burns. J Trauma. 1970;10(12):1103-8.
9. Kreis RW, Mackie D P, Hermans R P, Vloemans AR. Expansion techniques
for skin grafts: comparison between mesh and Meek island (sandwich-) grafts.
Burns. 1994;20(Suppl 1):S39-42.
1. Hospital João XXIII, Centro de Tratamento de
Queimados - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
Autor correspondente: Rodrigo Pimenta
Sizenando Av. das Constelações, 725, P3/302, Nova Lima, MG, Brasil
CEP: 34008-050 E-mail: rodrigosizenando@hotmail.com
Artigo submetido: 04/10/2023.
Artigo aceito: 30/04/2024.
Conflitos de interesse: não há.