INTRODUÇÃO
O couro cabeludo é uma área de considerável espessura, pouca elasticidade e abundante
vascularização. Essas características dificultam os procedimentos cirúrgicos na
área
devido ao aparecimento de complicações como sangramento intraoperatório profuso.
Apresentamos um caso de neurofibromatose tipo 1 (NF1) em que foi realizada ressecção
ampla do couro cabeludo devido à presença de múltiplos neurofibromas e reconstrução
com retalhos avançados mais autoenxerto parcial de pele (APS).
HISTÓRICO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 44 anos, com história de NF1, hipertensão e diabetes
mellitus tipo 2, procurou o serviço de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva do Hospital
Nacional Eduardo Rebagliati Martins, em Lima, Peru, devido à presença de múltiplos
tumores de formatos e tamanhos variados no couro cabeludo, alguns deles com secreção
purulenta e dor. Há dez anos foi realizada ressecção cirúrgica local de
neurofibromas no nariz. Ao exame físico, foram observados múltiplos neurofibromas
no
couro cabeludo e face (Figura 1), manchas café
com leite na flexura axilar e nódulos de Lisch.
Figura 1 - A: Neurofibromas elevados, pedunculados e de base larga,
com até aproximadamente 5cm de diâmetro e sensíveis à palpação, são
observados no couro cabeludo. B: Vista superior dos
neurofibromas no couro cabeludo. C: Múltiplos neurofibromas
de até aproximadamente 1cm de diâmetro podem ser observados na metade
superior da face e nariz.
Figura 1 - A: Neurofibromas elevados, pedunculados e de base larga,
com até aproximadamente 5cm de diâmetro e sensíveis à palpação, são
observados no couro cabeludo. B: Vista superior dos
neurofibromas no couro cabeludo. C: Múltiplos neurofibromas
de até aproximadamente 1cm de diâmetro podem ser observados na metade
superior da face e nariz.
Na tomografia computadorizada de cabeça e pescoço observam-se no couro cabeludo
formações nodulares dispersas, de diferentes tamanhos, com densidade equivalente
a
partes moles, e com realce irregular na imagem após administração de contraste,
características correspondentes a neurofibromas (Figura 2A). O tecido ósseo circundante estava íntegro, sem presença de
erosões ou sinais de extensão intracraniana (Figura 2B/2C).
Figura 2 - Tomografia computadorizada de cabeça e pescoço. A) Neurofibromas
múltiplos no couro cabeludo, com tamanhos de 3 x 4mm a 48 x 25mm. B) Na
janela óssea, não são observadas erosões ou infiltrações do tecido ósseo
circundante. C) Nenhuma evidência de extensão intracraniana.
Figura 2 - Tomografia computadorizada de cabeça e pescoço. A) Neurofibromas
múltiplos no couro cabeludo, com tamanhos de 3 x 4mm a 48 x 25mm. B) Na
janela óssea, não são observadas erosões ou infiltrações do tecido ósseo
circundante. C) Nenhuma evidência de extensão intracraniana.
Devido à clínica, ao tamanho e à ampla distribuição dos neurofibromas, optou-se pela
realização de excisão cirúrgica parcial do couro cabeludo. O procedimento envolveu
uma abordagem em duas etapas devido à impraticabilidade da excisão individual
de
neurofibromas extensos e progressivos no couro cabeludo. A primeira etapa incluiu
a
ressecção radical das áreas afetadas do couro cabeludo, seguida da colocação de
APS
para rápida cobertura.
Esta decisão considerou as preferências do paciente e a explicação das opções de
tratamento. A transferência livre de tecido foi escolhida, em vez de retalhos
locais
para tratar defeitos do couro cabeludo, com o objetivo de prevenir falha de adesão
e
aumento do defeito. O uso do APS para reconstrução do couro cabeludo foi preferido
pela sua simplicidade e funcionalidade.
Em relação à intervenção cirúrgica, após administração de anestesia geral com
intubação endotraqueal, as lesões foram marcadas com azul de metileno e, em seguida,
infiltrada solução tumescente de Klein no plano subperiosteal. Com um bisturi
número
15, é feito um corte perpendicular ao couro cabeludo no desenho pré-marcado. Com
eletrocautério, foi realizada dissecção até o plano periosteal, retirando o couro
cabeludo com os neurofibromas (Figura 3). Os
retalhos de avanço são confeccionados com pontos de Baroudi (suturas de tensão
progressiva) em todas as bordas, conseguindo a redução do defeito resultante.
Figura 3 - Área do couro cabeludo extraída até o periósteo.
Figura 3 - Área do couro cabeludo extraída até o periósteo.
O APS foi colhido com dermátomo elétrico, a área doadora foi a face anterolateral
da
coxa direita. O APS foi preparado colocando-o sobre gaze parafinada, com
microaberturas difusas feitas com bisturi 11, e após colocação foi suturado com
curativo tie-over. Um curativo hidrocoloide e uma bandagem
compressiva foram colocados na área doadora. O paciente teve recuperação
pós-operatória sem complicações.
O APS é descoberto no 10º dia, encontrando-se boa integração, sem presença de úlceras
residuais, hematomas ou seromas (Figura 4). Na
área doadora foi constatado um processo de reepitelização, optando-se pela colocação
de novo curativo hidrocoloide acrescido de bandagem oclusiva. O paciente recebeu
alta, não houve necessidade de nenhum tipo de cobertura sobre a área doadora e
o APS
teve uma boa evolução.
Figura 4 - Autoenxerto parcial de pele após 10 dias.
Figura 4 - Autoenxerto parcial de pele após 10 dias.
DISCUSSÃO
A NF1 é uma doença genética autossômica dominante com envolvimento de múltiplos
órgãos e tem prevalência global aproximada de 1 caso por 3.000 nascidos
vivos1. Todos os casos
apresentam mutação germinativa do gene NF1, porém há grande variabilidade na
apresentação das características clínicas1. A principal característica clínica da NF1 é o neurofibroma,
um tumor da bainha nervosa formado a partir de nervos espinhais, periféricos ou
cranianos.
Os neurofibromas são os tumores benignos mais frequentes na NF1 e diferentes tipos
foram descritos, como neurofibromas cutâneos, subcutâneos e plexiformes2. Outras características clínicas
incluem lesões pigmentares (mácula café com leite), anormalidades esqueléticas,
anormalidades comportamentais e gliomas de baixo grau1.
O achado dermatológico mais comum e marcante da NF1 é a presença de vários
neurofibromas cutâneos (cNFs) de diferentes tamanhos e formas2. Os cNFs têm diversos componentes
celulares (células de Schwann, fibroblastos, macrófagos e mastócitos) e são
sustentados por uma matriz extracelular dentro da derme1,3.
Os cNFs têm vários estágios, dependendo de sua aparência clínica: o estágio nascente
(não clinicamente observável), o estágio plano (afinamento ou hiperpigmentação
da
pele), o estágio séssil (pápula elevada), o estágio globular (uma base de 20 a
30mm
e altura) e o estágio pedunculado (conteúdo dérmico sustentado por uma haste
visível)4. Os sintomas
neurológicos concomitantes comuns aos cNFs são dor e prurido, e a secagem inadequada
após molhar pode causar maceração, ruptura da pele e infecções
superficiais5.
Deve-se notar que a desfiguração física de múltiplos neurofibromas está associada
a
menor qualidade de vida devido à carga psicossocial, baixa autoestima e
interferência nas atividades diárias, sociais e econômicas6. Por isso, justifica-se o tratamento, principalmente
com a presença de sintomas graves e/ou desfiguração estética4. No nosso caso, foi evidenciada a
presença de múltiplos neurofibromas, principalmente no couro cabeludo, o que causou
importante desfiguração estética na cabeça, dor concomitante e sinais de infecção
como secreção purulenta.
Atualmente, não existe um padrão-ouro aceito para o tratamento de cNFs5. Para a escolha do tratamento,
deve-se considerar o tipo, tamanho, número e localização do neurofibroma4. A excisão cirúrgica ainda é o
método mais eficaz, porém, não previne a formação de futuros neurofibromas5. Pessoas com NF1 geralmente
apresentam uma extensa carga tumoral que cobre uma grande área de sua superfície
corporal e, devido à progressão da doença, os procedimentos cirúrgicos realizados
geralmente são em vários estágios4.
No nosso caso, devido à progressão e extensão extensa dos neurofibromas no couro
cabeludo, a excisão individual de cada neurofibroma não foi viável, pelo que se
optou por realizar uma abordagem cirúrgica mais robusta em 2 tempos, primeiro
com
ressecção radical do neurofibroma. Área afetada do couro cabeludo e posterior
colocação do APS, obtendo resultados favoráveis em curto prazo7. Esta decisão de tratamento foi
tomada levando em consideração as preferências e necessidades do paciente, que
fez a
escolha após lhe terem sido explicadas todas as opções de tratamento.
Outra técnica terapêutica que poderia ter sido utilizada é a dos retalhos locais de
couro cabeludo (avanço ou rotação) previamente ampliados com expansores teciduais,
pois apresentam algumas vantagens como melhor acabamento estético em cor e textura,
resistência e durabilidade em longo prazo8. Porém, para cobrir defeitos do couro cabeludo, é
aconselhável realizar transferência livre de tecido em vez de retalhos locais,
pois
a falha na aderência dos retalhos pode aumentar o defeito9. Para a reconstrução do couro cabeludo, foi colocado
um APS por ser a forma mais simples e funcional que garantia uma rápida cobertura
da
área exposta10. Porém, a
identificação e a excisão desses tumores no início do seu desenvolvimento teriam
proporcionado melhores resultados estéticos.
Embora o uso do APS seja uma técnica conveniente para a reconstrução de grandes
defeitos do couro cabeludo, esses enxertos apresentam algumas desvantagens11. A alopecia seria uma das
consequências futuras da colocação do APS12. Um transplante capilar autólogo de áreas preservadas do
couro cabeludo poderia ser uma alternativa para a alopecia, porém esta técnica
é
reservada para pequenas áreas13.
Além disso, as células de Schwann são consideradas células tumorais dos
cNFs2 e constituem uma
importante população celular na derme14, daí sua presença no APS e no transplante capilar autólogo pode
levar ao desenvolvimento futuro de cNFs na área. Ainda, a mobilização dos APS
é
limitada e não semelhante à do couro cabeludo normal, sendo por vezes bastante
frágeis e suscetíveis a forças de cisalhamento11. No nosso paciente priorizamos uma reconstrução que
permitisse cobrir todo o couro cabeludo e observar facilmente o aparecimento de
tumores no futuro.
CONCLUSÃO
Neste relato, descrevemos o manejo cirúrgico de múltiplos cNFs no couro cabeludo em
um paciente com NF1. A ressecção do couro cabeludo afetado e a reconstrução da
área
ressecada com retalhos de avanço e colocação de autoenxerto parcial de pele deram
resultados aceitáveis que terão impacto positivo na qualidade de vida do paciente
no
futuro.
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1. Universidad Nacional De San Agustín de
Arequipa, Peru
Autor correspondente: Elizbet Susan
Montes-Madariaga Urb. José Luis Bustamante y Rivero, Cerro Colorado,
Arequipa, Peru, E-mail: emontesma@unsa.edu.pe
Artigo submetido: 07/06/2023.
Artigo aceito: 04/02/2024.
Conflitos de interesse: não há.