INTRODUÇÃO
A neurofibromatose é um distúrbio autossômico dominante, dividido em neurofibromatose
tipo 1 (NF1), neurofibromatose tipo 2 (NF2) e schwannomatose. A NF1 está associada
a um aumento do risco de formação de tumores benignos e malignos, com acometimento
neurocutâneo. A doença afeta, predominantemente, pele, ossos e o sistema nervoso,
mas as complicações são generalizadas, variáveis e imprevisíveis1.
A NF1 afeta homens, mulheres e todos os grupos étnicos igualmente. A incidência de
nascimento é de 1 em 2.500 a 1 em 3.000 e um mínimo de prevalência de 1 em 4.000-5.000.
Além dos tumores, as manchas café com leite estão presentes em 99% dos pacientes com
NF12.
A evolução variável, muitas vezes com tumores limitantes, além da incidência significativa
de casos de NF1 que necessitam de tratamento, torna fundamental a discussão de condutas
já realizadas na prática médica para um reconhecimento precoce, cuidadoso e individualizado
do diagnóstico e tratamento do enfermo.
OBJETIVO
O objetivo do trabalho é relatar um caso cirúrgico de neurofibromatose, chamando atenção
para a técnica cirúrgica e as características da doença, bem como para a importância
do procedimento na qualidade de vida de pacientes limitados pela afecção.
RELATO DE CASO
O relato de caso segue o modelo preconizado pelo SCARE3, sendo aprovado pelo comitê de ética e pesquisa do Centro Universitário CESMAC, com
CAEE 61674922.3.0000.0039.
Paciente de 23 anos, masculino, pardo, buscou atendimento em unidade básica de saúde
e posteriormente em hospital público com queixa de tumor em glúteo e face lateral
da perna direita que crescia há 11 anos (Figura 1), além de manchas café com leite em terço distal de pernas há 3 anos (Figura 2).
Figura 1 - Fotos do paciente mostrando volumoso neurofibroma em glúteo e região posterior da
coxa.
Figura 1 - Fotos do paciente mostrando volumoso neurofibroma em glúteo e região posterior da
coxa.
Figura 2 - Fotos do paciente mostrando manchas café com leite em terço distal da perna direita.
Figura 2 - Fotos do paciente mostrando manchas café com leite em terço distal da perna direita.
Paciente negava comorbidades e não possuía antecedentes pessoais de neoplasias e familiares
de quadros similares de NF1. Dois anos antes do atendimento, com desejo de retirada
da massa, procurou atendimento com equipe hospitalar que realizou um exame anatomopatológico,
com diagnóstico de fibrolipoma, e uma tomografia, que concluiu a presença de uma lesão
infiltrativa, acometendo região glútea direita e porção proximal da face posterior
da coxa direita, com medidas de 22,2cm X 23,8cm (LxT), densidade de partes moles,
conteúdo gorduroso no interior e sem sinais de invasão da musculatura da área.
Após os exames, o paciente foi submetido a procedimento cirúrgico com retirada apenas
parcial da tumoração. A primeira cirurgia foi realizada por outra equipe, não havendo
dados relativos à técnica e à justificativa da impossibilidade de retirada de todo
o tumor. O paciente apresentava grande apelo para a retirada total da massa, tanto
pela limitação de mobilidade (não conseguia realizar suas atividades preferidas, como
correr e pedalar), quanto pela dificuldade de manter relações interpessoais, o que
o isolava dos convívios sociais.
Por isso, com crescimento mais acelerado da tumoração e das manchas café com leite,
procurou novamente hospital para retirada total da massa. A partir da análise clínica
e dos exames complementares, que não indicavam a invasão da musculatura, optou-se
pelo procedimento de retirada total do neurofibroma.
A cirurgia ocorreu sob efeito de raquianestesia e anestesia geral, com o paciente
em decúbito lateral esquerdo. A incisão foi feita margeando a lesão fibromatosa, que
tinha aspecto gorduroso. Realizou-se a ressecção no plano acima da fáscia e a hemostasia
dos vasos sangrantes, que resultou em perda sanguínea não significativa no intraoperatório.
Após a retirada de 6,920 quilos de peça cirúrgica, as bordas da lesão foram aproximadas
e fez-se um curativo com gaze de Rayon e Gaze algodoada (Figura 3). Não houve intercorrências durante o procedimento e pós-operatório imediato.
Figura 3 - Evolução do procedimento, no intraoperatório, da retirada do neurofibroma.
Figura 3 - Evolução do procedimento, no intraoperatório, da retirada do neurofibroma.
Cerca de dois meses após a retirada do tumor, foi realizado um enxerto de pele na
lesão do quadril e coxa em lado direito, a partir da ressecção de pele em região coxofemoral
ipsilateral, com uso de curativo de Brown após enxerto em região doadora e receptora
(Figura 4). Após mais dois meses, realizou-se um retalho fasciocutâneo em V-Y (Figura 5) na região acometida de quadril e coxa, com suturas em ponto Donatti e contínuo (Figura 6).
Figura 4 - Pós-operatório de enxerto de pele em quadril e coxa direitos dois meses após o procedimento.
Figura 4 - Pós-operatório de enxerto de pele em quadril e coxa direitos dois meses após o procedimento.
Figura 5 - Marcação com azul patente de área de retalho fasciocutâneo em V-Y.
Figura 5 - Marcação com azul patente de área de retalho fasciocutâneo em V-Y.
Figura 6 - Pós-operatório imediato de retalho fasciocutâneo em V-Y em região de quadril e coxa.
Figura 6 - Pós-operatório imediato de retalho fasciocutâneo em V-Y em região de quadril e coxa.
DISCUSSÃO
O diagnóstico da NF1 pode ser definido com parâmetros apenas clínicos quando duas
ou mais das seguintes condições estão presentes: 6 ou mais máculas café com leite
com mais de 5mm de diâmetro em indivíduos pré-púberes e mais de 15mm após a puberdade,
2 ou mais neurofibromas de qualquer tipo ou 1 plexiforme, sardas na região axilar
ou inguinal, um tumor de via óptica, dois ou mais nódulos de Lisch, uma lesão óssea
distinta ou um parente de primeiro grau com NF1 pelos critérios descritos4.
O uso de critérios clínicos no diagnóstico evidencia uma possibilidade de identificação
e manejo mais precoces da afecção, evitando que as lesões, como as do paciente em
questão, sejam retiradas já com crescimento exacerbado e causando limitações.
Em relação à caracterização do neurofibroma, em estudo de Rozza-de-Menezes et al.5 a presença de neurofibromas dérmicos lipomatosos, como no caso descrito, é comum
(prevalência de 17,5%). Essa variante é mais frequente em lesões de maior massa. Acreditase
que a mutação NF1 pode levar a um metabolismo lipídico alterado e estar relacionada
ao acúmulo de gotículas lipídicas no citoplasma.
A neurofibromatose não apresenta cura. Seus únicos tratamentos são a excisão cirúrgica
ou o uso de laser de CO2 para neurofibromas cutâneos menores que um centímetro6. No paciente em questão optouse pela exérese da massa, com ótimos resultados em pós-operatório
imediato. Apesar do grande benefício estético e na qualidade de vida do paciente,
o ganho a longo prazo da remoção de grande número de neurofibromas por cirurgia ou
laser, do ponto de vista de controle da afecção, não foi comprovado. Da mesma forma,
a remoção a laser de máculas café com leite não foi completamente avaliada7.
Em relação às perspectivas futuras de controle da NF1, algumas alternativas de tratamento,
como os relacionados a inibidores de proteína p21Ras8 (objetivando inibir a angiogênese), a indutores de diferenciação celular8 e a moduladores de atividade hormonal9, estão sendo estudadas. Entretanto, não há tratamento eficaz para prevenir, ou mesmo
reverter, as lesões características da NF1, o que ainda representa um atraso científico
em estudos sobre a afecção.
Na realização do enxerto em lesão em dorso há um desafio adicional, por ser a área
principal de decúbito, proporcionando força de cisalhamento que compromete a integração
do enxerto cutâneo10, como no paciente. No entanto, apesar dos riscos, é amplamente indicada a realização
da enxertia.
Já em se tratando dos retalhos, em estudo realizado por Calil et al.11 20 pacientes com lesões em região posterior da coxa foram submetidos a realização
do retalho fasciocutâneo em V-Y. Dentre os pacientes, não houve necrose de tecido,
ocorrendo poucas complicações imediatas nos procedimentos (três infecções, uma deiscência
e um hematoma). O estudo corrobora que esse retalho, o mesmo realizado pelo paciente
em questão, pode ser utilizado com segurança no tratamento de lesões isoladas ou múltiplas
da região glútea e posterior da coxa.
A NF1 é uma doença com evolução imprevisível e pode causar grande impacto na vida
do enfermo. A deformidade do paciente em questão conferiu-lhe um extremo isolamento
social e uma limitação de atividades diárias prazerosas, diminuindo sua qualidade
de vida.
CONCLUSÃO
Esse estudo salienta a importância do diagnóstico e manejo precoces dos pacientes
com neurofibromatose tipo 1, com o objetivo de diminuir a progressão das lesões. Além
disso, os neurofibromas podem se tornar extremamente limitantes e prejudicar a qualidade
de vida de grande parte dos indivíduos com NF1 e, apesar de não apresentarem cura,
há a necessidade de pesquisas em tratamentos menos invasivos e preventivos para as
lesões.
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retalho fáscio-cutâneo da região posterior da coxa em V-Y. Rev Assoc Med Bras. 2001;47(4):311-9.
1. Centro Universitário CESMAC, Maceió, AL, Brasil
2. Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil
3. Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, Maceió, AL, Brasil
Autor correspondente: Bárbara Miranda Martins Rua Cônego Machado, 984, Bairro Farol, Maceió, AL, Brasil. CEP: 57051-160, E-mail:
bmirandam94@gmail.com
Artigo submetido: 29/09/2022.
Artigo aceito: 15/03/2023.
Conflitos de interesse: não há.