INTRODUÇÃO
A gangrena de Fournier é uma infecção causada por microrganismos aeróbios e anaeróbios1,2, que atuando de maneira sinérgica determinam uma fasciite necrosante3,4, que acomete as regiões genital, perineal e perianal5,6,7. A infecção pode prolongar-se até a fáscia de Scarpa na parede do abdome, em virtude
das comunicações anatômicas8,9 existentes entre as camadas de revestimentos das regiões perineal, escrotal, peniana
e abdominal10,11,12.
O processo infeccioso ocorre por meio de uma endarterite obliterante, que provoca
trombose dos vasos cutâneos e necrose da pele da região acometida13,14. O tratamento cirúrgico necessita de desbridamentos dos tecidos necrosados, ocasionando
feridas de extensões variadas, que necessitam de reconstruções adequadas15,16.
OBJETIVO
O propósito do estudo é apresentar a padronização do tratamento cirúrgico reconstrutivo
das feridas, após gangrena de Fournier, com a utilização de retalhos, por meio da
elaboração de fluxograma, a partir da análise da literatura.
MÉTODO
O estudo consistiu na busca por evidências relacionadas às técnicas cirúrgicas de
reconstruções após gangrena de Fournier, por meio de pesquisa na base de dados PubMed,
SciELO e LILACS, utilizando os descritores fasciite necrosante (necroting fasciitis),
gangrena de Fournier (Fournier gangrene), retalhos cirúrgicos (surgical flaps), retalho
perfurante (perforator flap), retalho miocutâneo (myocutaneous flap) e cirurgia plástica
(plastic, surgery) combinados com os operadores lógicos booleanos and ou or.
Realizou-se busca avançada limitando para palavras presentes no título e resumo. Todas
as etapas da revisão sistemática foram conduzidas por dois revisores, de forma independente
e cega. Foram incluídos os artigos relacionados aos descritores que definiram os tipos
de retalhos utilizados após gangrena de Fournier. Foram excluídos os artigos duplicados,
que não explicitavam os tipos de retalhos empregados nas reconstruções e aqueles que
não estavam diretamente relacionados ao assunto.
RESULTADOS
Os resultados do estudo encontram-se apresentados no Quadro 1 e na Figura 1.
Quadro 1 - Autores, tipo de estudo e retalhos utilizados para reconstruções das feridas, após
gangrena de Fournier, nos artigos selecionados.
Autor |
Número de Reconstruções com Retalhos* |
Tipo de Estudo |
Técnica Cirúrgica |
Parkash & Gajendran17 |
40 |
Retrospectivo |
Retalhos de avanço escrotal = 40 |
Ferreira et al.18 |
37 |
Retrospectivo |
Retalhos de avanço local = 9
Retalhos superomediais/coxa = 28
|
Hsu et al.19 |
8 |
Retrospectivo |
Retalhos miocutâneos de músculo grácil = 8 |
Coskunfirat et al.20 |
7 |
Retrospectivo |
Retalhos perfurantes da artéria femoral circunflexa medial = 7 |
Lee et al.21 |
14 |
Retrospectivo |
Retalhos musculares de grácil = 7
Retalho perfurantes da artéria pudenda interna = 7
|
Ünverdi & Kemaloğlu22 |
13 |
Retrospectivo |
Retalhos perfurantes de artéria pudenda interna = 13 |
El-Khatib23 |
8 |
Retrospectivo |
Retalhos pudendos da coxa = 8 |
Carvalho et al.24 |
16 |
Retrospectivo |
Retalhos de avanço escrotal = 16 |
Bhatnagar et al.25 |
12 |
Retrospectivo |
Retalhos fasciocutâneos da coxa = 12 |
Khanal et al.26 |
14 |
Retrospectivo |
Retalhos pudendos bilaterais = 14 |
Dadaci et al.27 |
29 |
Retrospectivo |
Retalhos Limberg/coxa = 29 |
Karaçal et al.28 |
5 |
Retrospectivo |
Retalho neurovascular/pedículo pudendo = 5 |
Quadro 1 - Autores, tipo de estudo e retalhos utilizados para reconstruções das feridas, após
gangrena de Fournier, nos artigos selecionados.
Figura 1 - Fluxograma para tratamento cirúrgico reconstrutivo de ferida, com perda cutânea em
região escrotal, após gangrena de Fournier.
Figura 1 - Fluxograma para tratamento cirúrgico reconstrutivo de ferida, com perda cutânea em
região escrotal, após gangrena de Fournier.
No fluxograma da Figura 1, observa-se que foi possível o fechamento primário nas feridas com perdas de cutâneas
de até 25%. Nas feridas com perdas cutâneas de 25% a 50%, utilizaram-se retalhos cutâneos
locais de avanço.
Quando as perdas cutâneas foram maiores de 50%, foram necessárias as confecções do
retalho superomedial da coxa, retalho pudendo da coxa ou retalho miocutâneo do músculo
grácil, com intuito de possibilitar a reconstrução adequada.
DISCUSSÃO
Os retalhos podem cursar com complicações, tais como necrose, deiscência e hematomas.
A deiscência relaciona-se com a tensão nos planos de sutura, a necrose com o suprimento
sanguíneo deficiente do pedículo vascular do retalho e o hematoma com hemostasia inadequada17,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28.
O retalho miocutâneo do músculo grácil possibilita reconstruir feridas com perda de
mais de 50% da superfície escrotal total, tendo como vantagens a boa vascularização,
que permite melhor penetração de antibióticos no tecido acometido, e a capacidade
de preencher feridas profundas19,20,21.
O retalho de avanço escrotal oferece um bom resultado estético e cumpre o princípio
de substituir com pele semelhante, sendo recomendado para perdas cutâneas do escroto
de até 50% da superfície escrotal total. Os benefícios deste método incluem a boa
qualidade da pele, com elasticidade e presença do músculo dartos17,18,22,23,24.
O retalho pudendo da coxa apresenta como benefício importante a preservação da sensação
da pele na região reconstruída pelo retalho, a presença de um suprimento sanguíneo
confiável e pequena morbidade da área doadora, sendo utilizado para coberturas de
até 50% da pele escrotal22,26,27,28,29.
O retalho fasciocutâneo superomedial da coxa é indicado no reparo de feridas com perda
cutânea de mais de 50% da superfície escrotal total, em um único procedimento cirúrgico
e com cobertura adequada, no paciente em estado clínico estável, após instabilidade
decorrente da infecção grave pela gangrena de Fournier18,19,20, por microrganismos aeróbios e anaeróbios12,30,31,32,33,34 associados com diabetes mellitus, cardiopatia e insuficiência renal13,14,15.
A técnica cirúrgica com o emprego do retalho fasciocutâneo superomedial1 da coxa unilateral ou bilateral possibilita a reconstrução da região escrotal, sendo
indicado também para as reconstruções perineal e perianal. O retalho fasciocutâneo
superomedial da coxa apresenta vascularização por meio dos ramos da artéria femoral,
o pudendo interno e o circunflexo17, sendo seguro inclusive nos pacientes diabéticos1,35 e com vasculopatias36,37.
CONCLUSÃO
O estudo realizado permitiu inferir que nas reconstruções das feridas após a gangrena
de Fournier os retalhos de avanço e pudendo da coxa foram utilizados para feridas
com perda de substância cutânea escrotal de até 50%, enquanto os retalhos miocutâneo
de músculo grácil e superomedial da coxa foram indicados para as feridas com mais
de 50% da superfície escrotal total acometida.
REFERÊNCIAS
1. Fernandez-Alcaraz DA, Guillén-Lozoya AH, Uribe-Montoya J, Romero-Mata R, Gutierrez-González
A. Etiology of Fournier gangrene as a prognostic factor in mortality: Analysis of
121 cases. Actas Urol Esp (Engl Ed). 2019;43(10):557-61.
2. Montrief T, Long B, Koyfman A, Auerbach J. Fournier Gangrene: A Review for Emergency
Clinicians. J Emerg Med. 2019;57(4):488-500.
3. Short B. Fournier gangrene: an historical reappraisal. Intern Med J. 2018;48(9):1157-60.
4. Singh A, Ahmed K, Aydin A, Khan MS, Dasgupta P. Fournier’s gangrene. A clinical review.
Arch Ital Urol Androl. 2016;88(3):157-64.
5. Norton KS, Johnson LW, Perry T, Perry KH, Sehon JK, Zibari GB. Management of Fournier’s
gangrene: an eleven year retrospective analysis of early recognition, diagnosis, and
treatment. Am Surg. 2002;68(8):709-13.
6. Kuchinka J, Matykiewicz J, Wawrzycka I, Kot M, Karcz W, Głuszek S. Fournier’s gangrene
- challenge for surgeon. Pol Przegl Chir. 2019;92(5):1-5.
7. Eke N. Fournier’s gangrene: a review of 1726 cases. Br J Surg. 2000;87(6):718-28.
8. Fattini CA, Dângelo JG. Anatomia humana sistêmica e segmentar. 3ª ed. São Paulo: Atheneu;
2011. 780 p.
9. Moore KL, Dalley AF, Agur AMR. Anatomia orientada para clínica. 8ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara; 2019. 1128 p.
10. Netter FH. Atlas de anatomia humana 3D. 6ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2015. 640
p.
11. Lopes Filho R, Lopes LC, Martins LJPM, Pedrosa ABV. Técnica de tunelização do testículo
exposto e importância da anatomia na gangrena de Fournier. Rev Ibero-Am Humanidades
Cienc Educ. 2021;7(9):34-42.
12. Kuzaka B, Wróblewska MM, Borkowski T, Kawecki D, Kuzaka P, Młynarczyk G, et al. Fournier’s
Gangrene: Clinical Presentation of 13 Cases. Med Sci Monit. 2018;24:548-55.
13. Demir CY, Yuzkat N, Ozsular Y, Kocak OF, Soyalp C, Demirkiran H. Fournier Gangrene:
Association of Mortality with the Complete Blood Count Parameters. Plast Reconstr
Surg. 2018;142(1):68e-75e.
14. Lin TY, Cheng IH, Ou CH, Tsai YS, Tong YC, Cheng HL, et al. Incorporating Simplified
Fournier’s Gangrene Severity Index with early surgical intervention can maximize survival
in high- risk Fournier’s gangrene patients. Int J Urol. 2019;26(7):737-43.
15. Radcliffe RS, Khan MA. Mortality associated with Fournier’s gangrene remains unchanged
over 25 years. BJU Int. 2020; 125(4):610-6.
16. Yilmazlar T, Gulcu B, Isik O, Ozturk E. Microbiological aspects of Fournier’s gangrene.
Int J Surg. 2017;40(1):135-8.
17. Parkash S, Gajendran V. Surgical reconstruction of the sequelae of penile and scrotal
gangrene: a plea for simplicity. Br J Plast Surg. 1984;37(3):354-7.
18. Ferreira PC, Reis JC, Amarante JM, Silva ÁC, Pinho CJ, Oliveira IC, et al. Fournier’s
gangrene: a review of 43 reconstructive cases. Plast Reconstr Surg. 2007;119(1):175-84.
19. Hsu H, Lin CM, Sun TB, Cheng LF, Chien SH. Unilateral gracilis myofasciocutaneous
advancement flap for single stage reconstruction of scrotal and perineal defects.
J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2007;60(9):1055-9.
20. Coskunfirat OK, Uslu A, Cinpolat A, Bektas G. Superiority of medial circumflex femoral
artery perforator flap in scrotal reconstruction. Ann Plast Surg. 2011;67(5):526-30.
21. Lee SH, Rah DK, Lee WJ. Penoscrotal reconstruction with gracilis muscle flap and internal
pudendal artery perforator flap transposition. Urology. 2012;79(6):1390-4.
22. Ünverdi ÖF, Kemaloğlu CA. A Reliable Technique in the Reconstruction of Large Penoscrotal
Defect: Internal Pudendal Artery Perforator Flap. Urology. 2019;128:102-6.
23. El-Khatib HA. V-Y fasciocutaneous pudendal thigh flap for repair of perineum and genital
region after necrotizing fasciitis: modification and new indication. Ann Plast Surg.
2002;48(4):370-5.
24. Carvalho JP, Hazan A, Cavalcanti AG, Favorito LA. Relation between the area affected
by Fournier’s gangrene and the type of reconstructive surgery used. A study with 80
patients. Int Braz J Urol. 2007;33(4):510-4.
25. Bhatnagar AM, Mohite PN, Suthar M. Fournier’s gangrene: a review of 110 cases for
aetiology, predisposing conditions, microorganisms, and modalities for coverage of
necrosed scrotum with bare testes. N Z Med J. 2008;121(1275):46-56.
26. Khanal B, Agrawal S, Gurung R, Sah S, Gupta RK. Pudendal flap-a good option for creating
neo-scrotum after Fournier’s gangrene: a case series. J Surg Case Rep. 2020;2020(11):rjaa414.
27. Dadaci M, Yildirim MEC, Yarar S, Ince B. Assessment of Outcomes After Limberg Flap
Reconstruction for Scrotal Defects in Patients With Fournier’s Gangrene. Wounds. 2021;33(3):65-9.
28. Karaçal N, Livaoglu M, Kutlu N, Arvas L. Scrotum reconstruction with neurovascular
pedicled pudendal thigh flaps. Urology. 2007;70(1):170-2.
29. Mello DF, Helene Júnior A. Reconstrução escrotal com retalho fasciocutâneo superomedial
da coxa. Rev Col Bras Cir. 2018; 45(1):e1389.
30. Arora A, Rege S, Surpam S, Gothwal K, Narwade A. Predicting Mortality in Fournier
Gangrene and Validating the Fournier Gangrene Severity Index: Our Experience with
50 Patients in a Tertiary Care Center in India. Urol Int. 2019;102(3):311-8.
31. Abass-Shereef J, Kovacs M, Simon EL. Fournier’s Gangrene Masking as Perineal and Scrotal
Cellulitis. Am J Emerg Med. 2018;36(9):1719.e1-1719.e2.
32. Ballard DH, Mazaheri P, Raptis CA, Lubner MG, Menias CO, Pickhardt PJ, et al. Fournier
Gangrene in Men and Women: Appearance on CT, Ultrasound, and MRI and What the Surgeon
Wants to Know. Can Assoc Radiol J. 2020;71(1):30-9.
33. Levenson RB, Singh AK, Novelline RA. Fournier gangrene: role of imaging. Radiographics.
2008;28(2):519-28.
34. Kuo CF, Wang WS, Lee CM, Liu CP, Tseng HK. Fournier’s gangrene: ten-year experience
in a medical center in northern Taiwan. J Microbiol Immunol Infect. 2007;40(6):500-6.
35. Carrillo-Córdova LD, Aguilar-Aizcorbe S, Hernández-Farías MA, Acevedo-García C, Soria-Fernández
G, Garduño-Arteaga ML. Escherichia coli productora de betalactamasas de espectro extendido
como agente causal de gangrena de Fournier de origen urogenital asociada a mayor mortalidad.
Cir Cir. 2018;86(4):327-31.
36. Syllaios A, Davakis S, Karydakis L, Vailas M, Garmpis N, Mpaili E, et al. Treatment
of Fournier’s Gangrene With Vacuum- assisted Closure Therapy as Enhanced Recovery
Treatment Modality. In Vivo. 2020;34(3):1499-502.
37. Egin S, Kamali S, Hot S, Gökçek B, Yesiltas M. Comparison of Mortality in Fournier’s
Gangrene with the Two Scoring Systems. J Coll Physicians Surg Pak. 2020;30(1):67-72.
1. Universidade Federal Minas Gerais, Faculdade de Medicina, Belo Horizonte, MG, Brasil.
2. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Autor correspondente: Rui Lopes Filho Av. Professor Alfredo Balena, 189, 10º andar, Santa Efigênia, Belo Horizonte, MG,
Brasil. CEP: 30130-100 E-mail: ruilopesfilho@terra.com.br
Artigo submetido: 27/10/2021.
Artigo aceito: 13/09/2022.
Conflitos de interesse: não há.