INTRODUÇÃO
Os traumas de grande energia têm aumentado de maneira expressiva nas últimas décadas,
principalmente devido a acidentes motociclísticos e automobilísticos. As vítimas de
trauma podem apresentar ferimentos de gravidade e localização variadas, sendo os membros
inferiores um importante e comum sítio acometido. Estas podem variar de simples soluções
de continuidade da pele a grandes perdas teciduais e exposição de estruturas nobres1,2.
A decisão pela técnica a ser utilizada é fundamental para o sucesso na reconstrução,
e, partindo do princípio que a melhor reparação é sempre a mais simples3, foram criados os fundamentos da cirurgia reconstrutora. Sendo assim, o fechamento
primário da lesão apresenta-se como primeira escolha, sempre que possível.
Todavia, em ferimentos com grande perda de partes moles, ou quando realizada fasciotomia
descompressiva de membros, com retração da pele local e protusão muscular, há uma
dificuldade em realizar tal fechamento. Várias alternativas são propostas para o fechamento
da ferida de extremidade, como enxertos, retalhos, sutura elástica, fitas adesivas,
abraçadeiras de plástico, podendo os anteriores serem associados ao curativo a vácuo.
Dentro deste contexto, o fechamento através da tração intermitente com fios de Kirschner
e fios de aço torna-se uma opção viável, barata, de baixa morbidade, evitando novas
cicatrizes criadas pela rotação de retalhos que podem resultar em retração, isquemia
e necrose tecidual4,5, e sendo de fácil reprodução para o fechamento de inúmeros ferimentos de membros,
assim como de fasciotomias.
OBJETIVO
O presente estudo vem avaliar o fechamento de ferimento pós-trauma de membro inferior
com fasciotomia local, através da tração continuada e intermitente com fio de Kirschner
associado a fios de aço, como uma alternativa para os ferimentos de alta complexidade.
RELATO DO CASO
Este é um estudo retrospectivo, observacional, de um paciente submetido fechamento
de fasciotomia através de dermatotração com fio de aço, no Hospital do Trabalhador,
em Curitiba-PR, em 2020. Estudo aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa, sob CAAE
52788221.0.0000.5225.
Paciente L.F.M.P., sexo masculino, 26 anos, previamente hígido, vem à emergência do
Hospital do Trabalhador de Curitiba com história de queda de mesmo nível em bueiro,
com consequente luxação de articulação do joelho esquerdo. À admissão, apresentava
pulsos da artéria tibial posterior e da artéria poplítea preservados, pulso da artéria
tibial anterior. Encaminhado ao centro cirúrgico para redução da luxação pela equipe
de Ortopedia. No pós-operatório imediato de realização de fixação externa transarticular
foi observada lentificação no tempo de enchimento capilar, diferença de temperatura
em relação ao membro contralateral e dificuldade na palpação de pulsos.
Foi solicitada, então, avaliação da equipe de Cirurgia Vascular, que ao exame físico
paciente encontrou ausência de pulso tibial anterior, tibial posterior e poplíteo,
dor à palpação de panturrilha e diminuição na movimentação dos pododáctilos. Foi realizada
angiotomografia, que confirmou lesão de artéria poplítea, sendo o paciente conduzido
novamente ao centro cirúrgico para revascularização do membro, com interposição de
artéria poplítea com veia safena reversa e fasciotomia medial e lateral.
Durante o pós-operatório, paciente evoluiu com sinais de síndrome de reperfusão, sendo
encaminhado ao Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Após 4 dias, teve alta do CTI,
mantendo diminuição da sensibilidade em pé e motricidade ausente de pododáctilos e
antepé. Pulsos tibial anterior e posterior presentes, ausência de pulso poplíteo atribuída
ao edema. Fluxos presentes ao Doppler.
No décimo dia pós-operatório paciente começou com febre, evoluindo com flictenas e
necrose em hálux. Realizada ultrassonografia, a qual identificou presença de coleção
em terço distal da ferida, sendo drenada com saída de grande quantidade de coágulos
e coleção purulenta. Posteriormente, foi submetido a debridamentos sucessivos de tecidos
desvitalizados devido à presença de necrose muscular de compartimento posterior profundo,
membrana interóssea e compartimento anterior (Figura 1).
Figura 1 - Paciente em pós-operatório de fasciotomia (foto tirada por equipe assistente).
Figura 1 - Paciente em pós-operatório de fasciotomia (foto tirada por equipe assistente).
Foi solicitada avaliação após primeiro curativo a vácuo do paciente para acompanhamento
do quadro, sendo avaliada lesão (Figura 2) e indicada aproximação dos bordos com fios de Kirschner 1.5 em associação à torção
de fios de aço 0 (Figura 3), em associação ao curativo a vácuo para drenagem de secreção e aproximação de bordos.
Foram realizadas quatro sessões para aproximação das bordas através da torção dos
fios de aço (Figura 4), todas em centro cirúrgico sob raquianestesia; o intervalo médio entre os procedimentos
foi de 3 dias. Ao final, chegou-se à resolução total da ferida operatória com o tratamento
proposto (Figura 5), sem enxertos, retalhos ou demais procedimentos, finalizando procedimento com sutura
primária da lesão.
Figura 2 - Paciente em pós-operatório de debridamento de lesão em associação com curativo a vácuo
(foto tirada por equipe assistente).
Figura 2 - Paciente em pós-operatório de debridamento de lesão em associação com curativo a vácuo
(foto tirada por equipe assistente).
Figura 3 - Paciente em pós-operatório de inserção de fios de Kirschner 1.5 e fios de aço 0.
Figura 3 - Paciente em pós-operatório de inserção de fios de Kirschner 1.5 e fios de aço 0.
Figura 4 - Paciente em pós-operatório de tração de fios de aço, foto em visão medial e lateral,
respectivamente.
Figura 4 - Paciente em pós-operatório de tração de fios de aço, foto em visão medial e lateral,
respectivamente.
Figura 5 - Paciente em pós-operatório de nova tração de fios de aço, foto em visão medial e lateral,
respectivamente.
Figura 5 - Paciente em pós-operatório de nova tração de fios de aço, foto em visão medial e lateral,
respectivamente.
O tempo entre a primeira intervenção pela equipe de Cirurgia Plástica até a alta hospitalar
foi de duas semanas, sendo que ao final do internamento o fator determinante para
alta do paciente foi a liberação pela equipe assistente de Ortopedia. Dessa forma,
os vários tempos cirúrgicos para tração tecidual e aproximação dos bordos não geraram
prolongamento da internação hospitalar.
O paciente manteve seguimento ambulatorial por 12 meses, sem apresentar deiscência
de sutura, queixas estéticas locais, ou demais complicações inerentes ao tratamento
alvitrado, estando satisfeito com o resultado estético final, e recebendo alta do
serviço.
DISCUSSÃO
Devido ao aumento significativo nos traumas de grande energia nas últimas décadas,
principalmente devido a acidentes motociclísticos e automobilísticos, o número de
fraturas complexadas de extremidades de difícil abordagem de fechamento vem aumentando.
Muitas delas necessitam fasciotomia, o que momentaneamente torna-se necessário, mas
pode levar a dificuldade em sua sutura primária, necessitando de retalhos, enxertos,
curativo a vácuo, suturas elásticas ou demais meios para fechamento da mesma.
O número de fasciotomias registradas no Sistema Público de Saúde (SUS) na última década,
2009-2019, foi de 26.905 nacionalmente, sendo 13.758 nos membros inferiores6. Em meio a isso, torna-se necessário que o cirurgião plástico tenha um leque de alternativas
para o fechamento das fasciotomias. Entre elas, encontramos na tração intermitente
com fios de Kirschner e fios de aço um meio barato, de fácil reprodutibilidade por
outros cirurgiões e de grande valor para tal. Essa técnica é uma variação baseada
na expansão dos tecidos descrita por Neuman, em 1956, na qual se obtém ganho de pele
através de expansão lenta e intermitente7, de Bashir (1987)8 e Callanan & Macey (1997)9.
Este processo de expansão pode ser explicado pelo fenômeno de arrasto mecânico, em
que as fibras colágenas se alongam paralelamente à direção da força de tração, e a
substância fundamental, composta de mucopolissacarídeos e fluidos tissulares, que
sendo deslocada leva a um resultado final de aumento da área de superfície10,11,12,13.
Através da pele sadia são passados fios de Kirschner 1-1.5mm, sendo atravessados paralelamente
às bordas da ferida em plano dérmico, a aproximadamente 5-7mm da borda da ferida,
sendo as pontas restantes cortadas e invertidas, de modo a sustentar os mesmos e não
os perder entre suas extremidades. Após, são introduzidos fios de aço 0 através de
ambos os fios de Kirschner entre as bordas e feita a torção dos mesmos, esticados,
para realizar a tração para aproximação dos bordos. Os fios de aço são inseridos longitudinal
e paralelamente ao maior eixo da ferida em plano intradérmico, com auxílio de uma
agulha 18G curvada, manualmente. O esquema representativo de como o método é realizado
pode ser visto na Figura 6.
Figura 6 - Esquema representativo da dermatotração de pele com fios de Kirschner.
Figura 6 - Esquema representativo da dermatotração de pele com fios de Kirschner.
De maneira subsequente, a cada 2 - 3 dias, bem como semanalmente, a depender do estado
clínico do paciente e sua tolerabilidade, os fios de aço são novamente tracionados
até que os bordos estejam aptos para fechamento primário; o procedimento pode ser
realizado no centro cirúrgico sob anestesia ou sedação venosa, ou à beira do leito
com bloqueio loco regional, a depender da tolerabilidade álgica do paciente.
Durante a tração do caso avaliado, não foram avaliados sofrimento isquêmico da pele
ou demais intercorrências, sendo respeitada a tração permitida de acordo com a elasticidade
da pele apresentada a cada procedimento.
Uma metanálise conduzida por Jauregui et al.14 comparou os diversos tipos de fechamento de fasciotomias descritos na literatura,
incluindo tratamento conservador (curativos apenas), enxertos de pele parcial, sutura
elástica, aproximação gradual, dermatotração dinâmica (com dispositivos específicos)
e curativos de pressão negativa, sendo a taxa de sucesso definida como fechamento
da ferida sem necessidade de enxerto de pele parcial. A dermatotração dinâmica com
dispositivos específicos (92,7%) e técnicas de aproximação gradual (92,4%) foram as
técnicas com as maiores taxas de sucesso. Já os curativos por pressão negativa obtiveram
os piores resultados, com 78,1% de sucesso14.
A sutura elástica, outra modalidade barata e de fácil reprodutibilidade, pode ser
utilizada para fechamento gradual de feridas complexas ou fasciotomias. Foi usada
pela primeira vez em 1993 por Raskin para aproximar os bordos de uma fasciotomia pós-
síndrome compartimental em membro superior15.
O princípio baseava-se na fixação com tensão de um elástico entrelaçado, fixado aos
bordos da pele, fazendo uma tensão contínua da pele, colocando em prática o conceito
de elasticidade e complacência cutânea. A técnica foi revisada por Leite, em 1996,
após observar a incidência de necrose da pele dos bordos da ferida, quando utilizada
a técnica de Raskin; propôs, então, a fixação do elástico no subcutâneo e na fáscia
superficial, poupando a pele do evento isquêmico induzido pela força tênsil15.
Enquanto isso, a tração com fios de aço pode ser feita de maneira controlada, realizando
tração conforme a necessidade, de modo que a vascularização, que é o fator limitante
da tração cutânea nos diversos métodos, pode ser realizada sem comprometimento. Espessura,
tensão da pele do retalho deslocado, palidez cutânea e dor são os indicadores para
avaliar a tração feia com os fios de aço.
Outro ponto que deve ser levado em conta é o baixo custo do procedimento. Enquanto
fios de aço custam aproximadamente R$ 5,00, outros dispositivos de dermatotração similares
chegam a custar em torno de 500-1000 dólares e curativos de pressão negativa em torno
de 96 dólares ao dia10. Outras técnicas para se conseguir ganho de pele através da distensão intraoperatória,
descritas por Hirshowitz et al.16, Stough et al.17, Lam et al.18, Bjarnesen et al.19 e outros, necessitam de equipamentos especializados para sua execução, estando os
anteriores indisponíveis na maioria dos hospitais e sendo de maior custo7.
Quando comparada à enxertia tecidual, a dermatotração necessita de maior tempo de
internação hospitalar para que seja realizada, principalmente em feridas de grande
amplitude, todavia, apresenta melhor padrão estético do que na enxertia, com boa aceitação
do paciente quanto ao internamento para sua realização. Neste caso em questão, a dermatotração
foi realizada em centro cirúrgico sob bloqueio anestésico via raquianestesia em todos
os procedimentos, porém, a depender da tolerabilidade álgica do paciente, poderia
ser realizada à beira leito.
Consideramos que este método seja válido principalmente para os pacientes que necessitarão
manter internamento por outros motivos além do fechamento da fasciotomia, especialmente
se consideramos que a terapia a vácuo não pode ser realizada em domicílio no nosso
meio, devido sua indisponibilidade no Sistema Público de Saúde (SUS). Em casos nos
quais seja possível a alta precoce do paciente, o uso de outros métodos como a enxertia
tecidual deve ser cogitado.
CONCLUSÃO
O trabalho demonstra mais uma alternativa de grande valia, segura, barata, de fácil
reprodutibilidade e de pouca morbidade ao arsenal de técnica aos cirurgiões para o
fechamento de fasciotomia e de lesões complexas de extremidades, muitas vezes de hospitalização
prolongada e difícil manejo terapêutico.
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1. Hospital de Clínicas de Curitiba, Cirurgia Plástica, Curitiba, Paraná, Brasil
2. Hospital do Trabalhador, Cirurgia Plástica, Curitiba, Paraná, Brasil
3. Universidade Federal do Paraná, Curso de Medicina, Curitiba, Paraná, Brasil
4. Universidade de Caxias do Sul, Curso de Medicina, Caxias do Sul, Rio Grande do
Sul, Brasil
Autor correspondente: Antoninho José Tonatto Filho Rua Ubaldino do Amaral, 124/701, Bairro Alto da Gloria, Curitiba, PR, Brasil CEP:
80060-190 E-mail: aj.tonatto@gmail.com
Artigo submetido: 12/10/2020.
Artigo aceito: 13/09/2022.
Conflitos de interesse: não há.