INTRODUÇÃO
Os trabalhos de Goffman que levaram à redação da obra “Estigma: notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada”1 tiveram importante contribuições no estudo social sobre estigmatização. A palavra
estigma tem origem grega para se referir a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar
algo extraordinário ou de mal sobre o status moral de quem o apresentava. Estes sinais evidenciavam que o portador era escravo,
traidor ou criminoso, que foram incorporados, historicamente, aos efeitos da graça
divina, a defeitos físicos, entre outros1.
O estigma é uma situação do indivíduo que está inabilitado para aceitação plena, com
perspectivas de desacreditado ou desacreditável, originado de defeitos físicos; distúrbios
de caráter individual (mentais, alcoolismo, homossexualidade, vício, desemprego etc.)
ou tribal (raças, nação, religião etc.) e ainda de desvalorização da identidade, sendo
nominado muitas vezes pela condição, por exemplo, o portador de sequela de queimadura
como “o queimado”, com discriminação em contextos psicossociais.
As interpretações não convencionais, de maior exposição, podem levar a extremos de
vitimização, necessidade de ganhos secundários, redução do intercâmbio social por
autoisolamento, podendo tornarse uma pessoa descontrolada, deprimida, hostil, ansiosa,
confusa, agressiva ou tímida, e muitas vezes desacreditada frente ao mundo não receptivo1.
As queimaduras são lesões que contribuem significativamente para o aumento dos índices
de mortalidade e de invalidez, resultando em pelo menos 265.000 mortes anualmente.
Cursam como uma das principais causas de anos de vida ajustados à deficiência, em
países de baixa e média renda, entre as principais causas de morbimortalidade mundiais2. Globalmente, os jovens, entre as idades de 15 e 44 anos, são responsáveis por quase
50% das mortes relacionadas com lesões no mundo. Na verdade, 7 das 15 principais causas
de morte de pessoas de 5 a 29 anos estão relacionadas a lesões causadas pelo trânsito,
suicídio, homicídio, guerra, afogamento, envenenamento e queimaduras.
Iniciativas nacionais e internacionais vêm sendo realizadas para a prevenção de queimaduras,
e a Organização Mundial da Saúde desenvolveu em 2008 o plano de prevenção e cuidados
em queimaduras e, em conjunto com a International Society for Burn Injuries (ISBI), começou a coleta de dados dos Centros de Tratamentos de Queimados sobre vítimas
de queimaduras, no Programa Global de Prevenção de Queimaduras. O programa reunirá
informações de vários países e será atualizado mensalmente3,4.
O convívio das pessoas com sequelas e deformidades físicas provocadas por queimaduras
com os que seriam considerados “normais” poderia levar ao comprometimento da autopercepção,
podendo gerar sentimentos de autodepreciação, auto-ódio, baixa autoestima, entre outros.
Como a pessoa estigmatizada lidaria com esta situação? Principalmente, tentando corrigir
o defeito, objeto do estigma, por meio de cirurgias plásticas. Todavia, percebe-se
que, mesmo após múltiplos e complexos procedimentos, ainda existiriam provas da tentativa
de corrigir o defeito, sobretudo no atendimento às sequelas de queimaduras, pois é
difícil ou impossível ao cirurgião plástico apagar as cicatrizes provocadas pelo trauma1-3. É escasso o número de publicações sobre aspectos subjetivos e psicossociais que
envolvem as pessoas com sequelas de queimaduras. Desta forma, é importante identificar
e estudar esse problema, do estigma, da perspectiva bioética para a proteção destes
indivíduos.
A Declaração de Bioética e Direitos Humanos5, pactuada em 2005, é uma ferramenta importante para promoção de melhores políticas
públicas em saúde, contribui para a reflexão da necessidade imperativa da sua defesa,
na luta contra a discriminação e estigmatização individuais, e para o fortalecimento
dos investimentos nos sistemas de saúde, como objetivo para o desenvolvimento do milênio,
e para o suporte psicossocial em todas as fases das queimaduras.
Entre outros, a declaração prevê no artigo 11 a não discriminação e não estigmatização,
em que “Nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer
razão, o que constitui violação à dignidade humana, aos direitos humanos e liberdades
fundamentais”5. Godoi & Garrafa consideram que a estigmatização resulta em desigualdades, assimetrias de poder e injustiças sociais.
Qualquer que seja a fonte do estigma, as consequências são as mesmas: violação da
dignidade humana, isolamento e exclusão sociais, menor acesso a serviços de saúde,
comprometimento das chances de vida, com deterioração da qualidade de vida e aumento
de risco de morte6.
OBJETIVO
Analisar o princípio da não estigmatização da Declaração Universal de Bioética e Direitos
Humanos (DUBDH) para a melhoria da qualidade de vida das pessoas com sequelas de queimaduras.
MÉTODOS
Trata-se de revisão integrativa da literatura composta por seis etapas. Na primeira
etapa realizou-se a formulação da pergunta, conforme a estratégia PICO, que representa
em medicina baseada em evidências o acrônimo para “P” “Paciente”, I “Intervenção”,
“Comparação” e “Outcomes” (desfecho), assim Paciente: Pessoa vítima de sequela de queimadura; Intervenção:
aplicação do princípio da não estigmatização proposto pela DUBDH; Comparação: Função
psicossocial saudável; e Outcomes: melhoria da qualidade de vida, com a formulação da pergunta: Como a aplicação do
princípio da não estigmatização, proposto pela DUBDH, pode auxiliar para a melhoria
da qualidade de vida de pessoas com sequelas de queimaduras?
Na segunda etapa realizou-se busca nas bases de dados PubMed e BVS (Biblioteca Virtual
de Saúde; LILACS, SciELO, PePSIC). Os critérios de inclusão foram: estudos publicados
nos últimos 5 anos com os descritores; em qualquer língua; completos e resumos; avaliando-se
o ano, local do estudo, tipo de estudo, amostra/população, intervenção, controle e
resultado. Os critérios de exclusão: artigos repetidos; publicados em outras fontes
distintas das referidas neste artigo; outras doenças e procedimentos. Na terceira
etapa a seleção dos artigos, conforme o fluxograma na Figura 1. Na quarta etapa a análise crítica dos estudos incluídos; na quinta a apresent ação
dos resultados; e na sexta a discussão destes à luz da Declaração Universal de Bioética
e Direitos Humanos5 no seu artigo 11, de não discriminação e não estigmatização.
Figura 1 - Fluxograma do processamento dos dados da pesquisa.
Figura 1 - Fluxograma do processamento dos dados da pesquisa.
RESULTADOS
Com os descritores stigma and burn foram encontrados 77 artigos publicados nas bases de dados PubMed e BVS nos últimos
cinco anos, sendo que, destes, 12 foram selecionados por atenderem aos critérios de
inclusão, apresentados no fluxograma (Figura 1). Foram excluídos 65 estudos conforme os critérios de exclusão e devido: a outras
causas de doenças mentais e psiquiátricas, tais como demência, Alzheimer; estresse
pós-traumático de outras causas, inclusive entre profissionais policiais; estigma
em portadores de vírus HIV, obesidade, transgênero, usuários de drogas; e ainda estudos
de atendimento agudo e clínico-cirúrgico com apresentação exclusiva de revisão de
cicatrizes e técnicas de tratamento de sequelas de queimaduras em crianças e estudo
epidemiológico de queimaduras.
Com os descritores stigma and burn and quality of life foram encontrados oito artigos. Destes, quatro estavam dentro dos critérios de inclusão,
e já foram listados os autores Ross et al.7, Gauffin & Öster8, Müller et al.9, Berg et al.10, apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 - Distribuição dos artigos conforme critérios de inclusão.
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Autor/Ano /Local |
Tipo de estudo |
Amostra/população /intervenção/ controle |
Resultado |
1 |
Jagnoor et al./2018/ Índia2 |
Identificar questões políticas prioritárias e de pesquisa do sistema de saúde associadas aos resultados de recuperação para sobreviventes de queimaduras na Índia.
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Os participantes reconheceram os desafios do cuidado e recuperação de queimaduras e identificaram a necessidade de reabilitação prolongada.
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O fortalecimento dos sistemas de saúde pode permitir que os provedores abordem questões como desenvolvimento/ fornecimento, protocolos, capacitação, coordenação eficaz, organizações- chave e redes de referência.
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2 |
Ross et al./2021/EUA7 |
Análise das características do paciente e da lesão associadas a estigma social por sobreviventes de queimaduras do Burn Model Systems do NIDILRR.
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Queimaduras faciais e amputações são fatores de risco independentes para estigma social, enquanto sexo masculino e maior integração na comunidade foram protetores.
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Importância do aconselhamento para pacientes que sofrem queimaduras faciais e/ou amputações; e do investimento em programas de extensão para sobreviventes de queimaduras para melhorar o suporte
social.
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3 |
Freitas et al./2019/ Brasil13 |
Comparar a percepção de estigmatização, sintomas de depressão e autoestima em adultos da população geral com sobreviventes de queimaduras no Brasil e verificar as possíveis correlações entre essas populações.
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Foram aplicadas as versões brasileiras do BR-PSQ-R, BDI e RSES a 120 pessoas da população
geral e a 240 dos sobreviventes de queimaduras, foram verificadas correlações moderadas entre a percepção de estigmatização e depressão e percepção de estigmatização e autoestima.
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Participantes da população em geral e sobreviventes de queimaduras exibem níveis semelhantes de percepção de estigmatização; a população geral apresentou menos sintomas de depressão e maior autoestima quando comparada aos sobreviventes de queimaduras.
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4 |
Gauffin & Öster/2019/ Uppsala, Suécia8 |
Explorar a percepção de ex-pacientes queimados sobre a saúde específica da queimadura e investigar como essas experiências correspondem às subescalas do BSHS-B.
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Entre 2000 e 2007 - 20 entrevistados com TBSA >20% entre 10 e 17 anos após a queimadura. Apesar das extensas queimaduras, os entrevistados
disseram que levavam uma vida quase normal. Outros temas após a queimadura foram: problemas de pele, redução do uso da morfina, importância do trabalho, estresse, mentalidade e o sistema de saúde.
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O BSHS-B sozinho pode não ser suficiente para avaliar a autopercepção da saúde de ex- pacientes queimados em longo prazo. A investigação de
áreas suplementares que refletem o ambiente sociocultural de expacientes, bem como
fatores pessoais, pode ser de grande importância.
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5 |
Macleod et al./2016/ Nottingham, Inglaterra14 |
Examinar como o PTSD e a preocupação com a aparência associada a queimaduras são vivenciados quando as duas dificuldades ocorrem.
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Análise fenomenológica interpretativa de 8 mulheres com sintomas de PTSD, observou-se
a preocupação com a aparência e a manutenção da sensação de ameaça por meio do estigma
social age como gatilho para reviver o incidente traumático que causou a queimadura.
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Os resultados sugerem que as intervenções psicossociais precisam ser adaptadas para abordar os processos relacionados às preocupações com a mudança na aparência e com
a revivência traumática.
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6 |
Barnett et al./2017/Malawi15 |
Registrar as descobertas de um grupo de apoio em Malawi e fornecer análise qualitativa
do conteúdo discutido por sobreviventes de queimaduras e cuidadores.
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Os cuidadores discutiram temas de culpa e autocensura pelos ferimentos de seus filhos;
distância emocional entre cuidador e sobrevivente, temores com a provável morte do
paciente e preocupações com o futuro e o estigma associado a queimaduras.
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Estabelecimento de um grupo de apoio na unidade de queimados proporcionou espaço para
que sobreviventes de queimaduras e seus familiares discutissem experiências subjetivas
e técnicas de enfrentamento.
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7 |
Berg et al./2017/ Alemanha10 |
Analisar se os pacientes em diferentes períodos desde a queimadura diferiam em relação
ao comprometimento psicossocial.
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Entre 2006 e 2012 foram questionados sobre qualidade de vida BSHS-B, HADS- D, PTSD,
IES-R, PSQ e SCQ.
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Os resultados sugerem persistência da carga psicossocial ao longo do tempo após a
queimadura. As intervenções psicossociais podem ser indicadas mesmo muitos anos após as queimaduras.
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8 |
Roberson et al./2020/ Multicêntrico16 |
Estudo multicêntrico sobre bancos de tecidos em países de baixa e média renda. |
3346 registros e 33 relatórios de 17 países foram analisados, foram encontrados como
obstáculos para criação de bancos: altos custos de capital e custos operacionais por enxerto; insuficientes oportunidades de treinamento; de inscrição de doação e estigma sociocultural em torno da doação de transplante.
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A disponibilidade de aloenxertos de pele pode ser melhorada por investimentos estratégicos em governança e estruturas regulatórias; iniciativas de cooperação internacional; programas de treinamento; protocolos padronizados e campanhas inclusivas de conscientização pública; esforços de capacitação que envolvem as principais partes interessadas podem aumentar as taxas de doações
e transplantes.
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9 |
Freitas et al./2018/ Brasil17 |
Validade da versão em português do PSQ desenvolvido nos EUA para pacientes queimados.
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240 pacientes adultos queimados internados em reabilitação em duas unidades de queimados no Brasil. Foram correlacionados os escores do PSQ com BDI, RSE, dois domínios da BSHS-R: afeto e imagem corporal e relações in- terpessoais. Utilizou-se a Análise Fatorial do Item Confirmatório (CIFA) para testar os três fatores (ausência de comportamento amigável, confuso e hostil).
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Os escores do PSQ-R se correlacionaram fortemente com depressão, autoestima, imagem corporal e relacionamentos interpessoais. Os escores totais do PSQ-R foram significativamente menores para pacientes com cicatrizes visíveis. O PSQ-
R apresentou confiabilidade e validade comparáveis à versão original.
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10 |
Ren et al./2018/China11 |
Explorar e conceituar os obstáculos encontrados para a prestação de cuidados de saúde mental em pacientes com queimaduras.
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Entrevista de 16 pacientes com queimaduras, cinco enfermeiras, quatro terapeutas de reabilitação, cinco médicos e oito cuidadores sobre suas experiências
com os serviços e barreiras de saúde atuais.
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Necessidade de enfocar os determinantes sociais, econômicos e culturais subjacentes da atenção à saúde mental.
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11 |
Müller et al./2016/ Alemanha9 |
Validade da versão alemã do PSQ / SCQ em vítimas de queimaduras.
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Todas as escalas do PSQ/SCQ apresentaram boa consistência interna. Médias de PSQ mais
altas/médias de SCQ mais baixas foram relacionadas a menos suporte social, menor qualidade de vida e mais sintomas de ansiedade/depressão.
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Evidenciou-se estrutura de quatro fatores e boa validade do PSQ/SCQ. Novos estudos
devem investigar a aplicação do PSQ/SCQ em indivíduos com distinções de aparência não relacionadas a queimaduras.
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12 |
Borges et al./2018/ Brasil12 |
Identificar a relação da espiritualidade e da religiosidade no empoderamento da mulher
queimada por autoimolação.
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Método de “narrativa da doença” com suporte nos discursos das mulheres. |
A mulher vítima de queimadura demonstrou múltiplas nuances em relação a autoimagem
e autoestima. A fé na religião e na espiritualidade ajudou na superação dos conflitos
pessoais e sociais.
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Tabela 1 - Distribuição dos artigos conforme critérios de inclusão.
Foi ampliada a busca em periódicos de referência no Brasil, entre eles a Revista Brasileira
de Cirurgia Plástica (RBCP) e a Revista Brasileira de Queimaduras. Nos últimos cinco
anos foram publicados 33 artigos na primeira, e 10 artigos sobre qualidade de vida
e queimaduras na segunda, porém não apresentaram o descritor estigma e os critérios
de inclusão.
Na base de dados BVS (SciELO, LILACS e PePSIC) foram encontrados com os descritores
“estigma e queimadura” cinco artigos, quatro já incluídos, são eles Gauffin & Öster8, Ren et al.11, Berg et al.10, Müller et al.9, e um de Borges et al.12, que estudou a relação da espiritualidade e da religiosidade no empoderamento da
mulher queimada por autoimolação. Os resultados são apresentados na Tabela 1.
DISCUSSÃO
A avaliação da não estigmatizarão pode servir como indicador de qualidade de vida
para pessoas portadoras de sequelas de queimaduras, tendo a definição de sequela como
alteração anatômica ou funcional permanente causada pela queimadura; alguns autores
preferiram nominar como ex-pacientes e sobreviventes. Considerando a definição de
indicadores de saúde como instrumentos utilizados para medir uma realidade, como parâmetro
norteador, instrumento de gerenciamento, avaliação e planejamento das ações na saúde,
de modo a permitir mudanças nos processos e resultados das ações propostas em um planejamento
estratégico18.
Os autores pesquisados nesta revisão utilizaram metodologia qualitativa para avaliar
estigma em pacientes vítimas de queimaduras, com aplicação de instrumentos já validados
ou com o objetivo de validação nos seus países. Para melhor entendimento, dividiu-se
a discussão nos tópicos a seguir:
Instrumentos de avaliação
O Burn Specific Health Scale-Brief (BSHS-B), utilizado por dois estudos10,17, é um instrumento específico e multidimensional que aborda vários aspectos dos resultados
e da reabilitação do tratamento das vítimas de queimaduras, com 114 itens. Apresenta
três modalidades, o Burn Specific Health Scale-Abbreviated (BSHS-A) composto por 80 itens, o Burn Specific Health ScaleRevised (BSHS-R) traduzido para a língua portuguesa e validado por Ferreira (apud Piccolo19), compreendendo 31 itens e seis domínios: habilidade para função simples, trabalho,
tratamento, afeto e imagem corporal, relações interpessoais e sensibilidade ao calor.
Entretanto, os aspectos da função da mão e da sexualidade não foram abordados por
essa modalidade do instrumento. É o instrumento específico mais utilizado mundialmente
para este fim, foi traduzido para língua portuguesa e adaptado e validado para o Brasil
e denominado BSHS-B-Br19.
O Questionário de Estigmatização Percebida (Perceived Stigmatization Questionnaire - BR-PSQ-R) e o Social Comfort Questionnaire (SCQ) foram desenvolvidos nos EUA para mensurar a percepção de comportamentos estigmatizantes
dirigidos a indivíduos com alterações na aparência e para avaliar o conforto social
destes indivíduos. Tem mostrado boa validade entre pessoas que sofreram queimaduras
e foi utilizado por quatro dos autores pesquisados. Nestas publicações foram evidenciados
estudos de validação por autores brasileiros e alemães9,10,13,17.
O Inventário de Depressão de Beck (BDI) é um instrumento de autoaplicação composto
por 21 itens, cujo objetivo é medir a intensidade da depressão a partir dos 13 anos
até a terceira idade. A aplicação pode ser individual ou coletiva. Outra escala para
avaliar a depressão foi Escala de Ansiedade e Depressão (Hospital Anxiety and Depression Scale - Deutsche Version; HADS-D)10.
A escala de autoestima de Rosenberg (RSES) é muito utilizada de modo geral. Foi desenvolvida,
originalmente em inglês por Morris Rosenberg, em 1965, como uma escala de avaliação
da autoestima global, aplicada em 5.024 indivíduos, englobando universitários e idosos
de Nova Iorque. A autoestima repercute em muitos comportamentos, com evidências que
mostram associações entre baixa autoestima e humor negativo, percepção de incapacidade,
delinquência, depressão, ansiedade social, transtornos alimentares e ideação suicida
e da associação entre elevada autoestima e saúde mental, habilidades sociais e bem-estar17.
A escala de estresse pós-traumático e angústia de aparência (PTSD) avalia a vivência
com um fator de estresse traumático, tal como na queimadura. Foi utilizada em dois
estudos10,14 para avaliação para vítimas de queimaduras. Outro instrumento utilizado foi o Impact of Event Scale. A Impact of Event Scale (IES) tem como proposta avaliar o estresse subjetivo relacionado a eventos de vida,
não estando focada em uma situação específica, mas nas características particulares
que envolvem tais eventos. Trata-se de uma composta por apenas 15 itens, configurada
como uma escala Likert de quatro pontos, autoaplicável, rápida e de baixo custo com bons parâmetros psicométricos,
com possibilidade de utilização tanto na prática clínica quanto em pesquisa e a escala
de avaliação de suporte social. A escala de avaliação de suporte social avalia a influência
das interações sociais sobre o bem-estar e a saúde das pessoas, sendo importante para
a compreensão de como a inexistência ou a precariedade do suporte social poderia aumentar
a vulnerabilidade a doenças, e como o suporte social protegeria os indivíduos de danos
à saúde física e mental decorrentes de situações de estresse20,21.
Estigma social e comprometimento psicossocial
Na entrevista realizada por Ren et al.11 com 16 pacientes com queimaduras, cinco enfermeiras, quatro terapeutas de reabilitação,
cinco médicos e oito cuidadores sobre suas experiências com os serviços e barreiras
de saúde atuais identificou-se que as crenças, conhecimentos, status socioeconômico,
compreensão cultural da saúde mental e estigma social das pessoas parecem desempenhar
papéis importantes na abordagem da saúde pública para a promoção da saúde e intervenções
psicossociais pós-queimadura. Freitas et al.13,17 compararam a percepção de estigmatização, sintomas de depressão e autoestima em adultos
da população geral com sobreviventes de queimaduras no Brasil e verificaram as possíveis
correlações entre essas populações e se ampliou a validação do questionário de PSQ
para a realidade brasileira.
Corroborando com os achados dos autores acima citados, o estudo de Ross et al.7 considerou as queimaduras faciais e amputações como fatores de risco independentes
para vivenciar estigma social. Berg et al.10 destacaram que os resultados da sua pesquisa, quanto aos diferentes períodos, desde
a queimadura não diferiam em relação ao comprometimento psicossocial, verificando
que sugerem a persistência da carga psicossocial relacionada às sequelas de queimaduras
ao longo do tempo. Vale ainda ressaltar que não houve diferenças significativas no
sofrimento psicossocial quanto às variáveis sociodemográficas e específicas de queimaduras;
18 (12,4%) pacientes tiveram o ponto de corte >11 para ansiedade e 22 (15,2%) para
depressão; 16 (11,1%) pacientes com triagem positiva para transtorno de estresse pós-traumático
(TEPT). Nenhuma diferença foi encontrada para a psicoterapia (fármaco) atual e o desejo
de psicoterapia6.
Pelo exposto por todos os autores desta revisão, os distúrbios psicológicos foram
prevalentes e as intervenções psicossociais podem ser indicadas mesmo após muitos
anos em pessoas com queimaduras; no entanto, os serviços psicológicos raramente são
acessíveis para lesões pós-queimadura, conforme publicado por Ren et al.11 e Barnett et al.15, em que os sobreviventes de queimaduras discutiram a frustração com longos cursos
de hospitalização, esperança criada por meio de interações com funcionários do hospital,
a associação entre saúde mental e física, sobre seus ferimentos e como isso afetaria
seu futuro, diminuição do valor próprio, maior foco em sua própria mortalidade e família,
e as dificuldades interpessoais.
Borges et al.12 realizaram estudo de narrativa proposto para identificar a relação da espiritualidade
e da religiosidade no empoderamento da mulher queimada por autoimolação. Observaram
que as mulheres com cicatriz hipertrófica apresentaram reações diversas e, com os
discursos destas, emergiram as categorias da religião como ponto alto da salvação,
da estigmatização e a resposta da vítima diante da rejeição da sociedade, da não aceitação
da nova imagem corporal, autorrejeição, autopreconceito e da espiritualidade no processo
de empoderamento da mulher queimada.
O estudo realizado por Jagnoor et al.2 revelou que os participantes, provedores de saúde, sobreviventes de queimaduras,
cuidadores, vizinhos/comunidade, organizações não governamentais envolvidas na reabilitação,
assistência jurídica, locais de trabalho e pessoal-chave na saúde na implementação
de serviço reconheceram os desafios do cuidado e recuperação de queimaduras e identificaram
a necessidade de reabilitação prolongada.
Os desafios identificados incluíram comunicação deficiente entre provedores de saúde
e sobreviventes, serviços de reabilitação limitados, dificuldades com transporte para
a unidade de saúde e alto custo associado ao tratamento de queimaduras. Tanto os sobreviventes
de queimaduras e profissionais de saúde identificaram o estigma associado às queimaduras
como o maior desafio dentro do sistema de saúde, bem como na comunidade. Barreiras
de sistemas (por exemplo, infraestrutura e recursos humanos limitados), falta de apoio
econômico e social e pouca compreensão da recuperação e reabilitação foram identificadas
como as principais barreiras à recuperação2.
Análise do princípio da não discriminação e não estigmatização da DUBDH na melhoria
da qualidade de vida das pessoas com sequelas de queimaduras
Na sociedade hodierna, o termo estigma expressa algo ruim, algo que deve ser evitado,
ele expressa uma identidade deteriorada1, que resulta da produção e mimeses de relações desiguais de poder; ele é conservador,
alimentando a ordem social injusta e desrespeitando identidades diferentes, enquanto
a dignidade humana diz respeito ao fato de que a dignidade é um atributo intrínseco
da pessoa humana e, por consequência, é irrenunciável, inalienável e indisponível5.
A discriminação é qualquer distinção, exclusão ou restrição de preferência que se
baseia, ente outros, na deficiência física ou outras características não relevantes
para o assunto em questão. Nesta revisão, não foram aplicados instrumentos para avaliação
da discriminação, esta foi descrita pelos pesquisadores de forma indireta, por meio
da percepção da estigmatização. Outros instrumentos, tal como o Expériences of Discrimination (EOD)22, poderiam ser aplicados nesta população em estudos futuros.
O processo de construção da identidade, seja ela individual ou em grupo, é uma construção
social que está atrelada à intersubjetividade1, ou seja, a dignidade humana pressupõe o respeito pelo outro, pela pluralidade e
pela diversidade humanas. Através da condição humana somos iguais, mas ao mesmo tempo
somos singulares, porém essas diferenças não podem causar desigualdades e discriminação23.
Diante do exposto pelos autores desta revisão integrativa, nesta etapa procurou-se
analisar, à luz da bioética, como o documento da DUBDH no artigo 11 do princípio da
não discriminação e não estigmatização pode contribuir na melhoria da qualidade de
vida de pessoas com sequelas de queimaduras.
Este documento foi validado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco), após a homologação da Declaração Universal sobre Bioética
e Direitos Humanos, no ano de 2005 (DUBDH)5. Tem como alicerce a justiça, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. A partir do artigo 11 da declaração,
torna-se inaceitável qualquer ato discriminatório ou estigmatizante que cause inferioridade
ao indivíduo e a retirada da sua dignidade, e desta forma reitera a necessidade de
buscar ferramentas para enfrentamento para pessoas nestas condições.
Seguindo a linha da não estigmatização e de medidas para o enfrentamento e mudanças,
nesta pesquisa elencou-se os autores Jagnoor et al.2, Ren et al.11 e Roberson et al.16, entre outros. Ren et al.11 observaram que os participantes reconheceram os desafios do cuidado e da recuperação
de queimaduras com a necessidade de reabilitação prolongada. Os desafios identificados
incluíram comunicação deficiente entre provedores de saúde e sobreviventes, serviços
de reabilitação limitados, dificuldades com transporte para a unidade de saúde e alto
custo associado ao tratamento de queimaduras.
Tanto os sobreviventes de queimaduras e profissionais de saúde identificaram o estigma
associado às queimaduras como o maior desafio dentro do sistema de saúde, bem como
na comunidade. As barreiras nos sistemas (por exemplo, infraestrutura e recursos humanos
limitados), falta de apoio econômico e social e pouca compreensão da recuperação e
reabilitação foram identificadas como os principais obstáculos à recuperação2.
Roberson et al.16, partindo das experiências de que a excisão das feridas e da cobertura temporária
com curativo biológico, tal como aloenxerto, podem melhorar a sobrevida de pacientes
com grandes queimaduras, realizaram estudo avaliando os sistemas de saúde em países
de baixa e média renda (LMICs), os quais raramente têm acesso a aloenxertos. Este
fato pode contribuir para a sobrevivência limitada de pacientes com grandes queimaduras
nesses locais.
Realizou-se estudo acerca da implementação e manutenção de bancos de tecidos em LMICs
para orientar o planejamento e a organização do sistema. A pesquisa constou de 3346
registros, com 33 relatórios de 17 países foram analisados. As barreiras comumente
relatadas para a implementação, ideal ou planejada, incluíram os altos custos de capital
e custos operacionais por enxerto, oportunidades de treinamento insuficientes, esquemas
de doação e estigma sociocultural em torno da doação e transplante. Destacou-se que
a disponibilidade de aloenxertos de pele pode ser melhorada por meio de investimentos
estratégicos em governança e estruturas regulatórias, iniciativas de cooperação internacional,
programas de treinamento, protocolos padronizados, capacitação e campanhas inclusivas
de conscientização pública16.
Ademais, Ross et al.7 destacaram a importância do aconselhamento para pacientes que sofrem queimaduras
faciais e/ou amputações; e a necessidade do investimento em programas de extensão
para sobreviventes de queimaduras para melhorar o suporte social.
CONCLUSÃO
Os resultados obtidos nesta revisão integrativa acerca do estigma em pacientes portadores
de sequelas de queimaduras apresentaram instrumentos para avaliação do estigma, estresse,
autoestima e avaliação do suporte social. Identificaram-se fatores intrínsecos e extrínsecos
relacionados à estigmatização, e foram apresentadas ponderações sobre o princípio
da não discriminação e não estigmatização da DUBDH conforme propostas pelos autores,
que destacaram ações que podem melhorar o suporte social e a qualidade de vida de
pessoas com sequelas de queimaduras.
Este estudo trouxe para reflexões a singularidade humana, ou seja, como a qualidade
de ser único, distinto dos demais, importante na formação do eu, se estabelece na
relação social com outros seres, através da alteridade, do olhar do outro e para o
outro, nos possibilitando enxergar e perceber o outro e a nós mesmos. A redução da
individualidade derivada da estigmatização pode chegar ao limite de desumanizar a
pessoa estigmatizada e discriminá-la, ao ponto de a identidade do indivíduo ser determinada
pelo próprio estigma ou a ser confundida com ele, aumentando a vulnerabilidade de
indivíduos e grupos23.
No caso específico do paciente portador de sequela de queimadura, a Declaração é de
extrema valia por incluir na agenda bioética questões de cunho social, psicológico
e econômico envoltos na gênese da injúria. Através da DUBDH promoveremos as reflexões
acerca de empoderamento e, por consequência, a consciência da necessidade da participação
social dos indivíduos acometidos pela queimadura, ratificando, assim, a autonomia
do paciente.
REFERÊNCIAS
1. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio
de Janeiro: LTC; 2008.
2. Jagnoor J, Bekker S, Chamania S, Potokar T, Ivers R. Identifying priority policy issues
and health system research questions associated with recovery outcomes for burns survivors
in India: a qualitative inquiry. BMJ Open. 2018;8(3):e020045. DOI: 10.1136/bmjopen-2017-020045
3. Hundeshagen G, Wurzer P, Forbes AA, Cambiaso-Daniel J, Nunez-Lopez O, Branski LK,
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1. Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Katia Torres Batista Asa Norte, Brasília, DF, Brasil, CEP: 70910-900, E-mail: katiatb@terra.com.br
Artigo submetido: 13/05/2021.
Artigo aceito: 14/07/2021.
Conflitos de interesse: não há.