INTRODUÇÃO
As fendas craniomaxilofaciais são malformações raras, mas com potencial desfigurante.
A incidência é estimada em 1,4-4,9% para cada 100.000 nascidos vivos. Tessier desenvolveu
um sistema de classificação, com base em linhas faciais, partindo de 0 a 141.
A fenda número 0 apresenta característica singular devido à possibilidade de haver
tecido normal, em excesso ou até deficiente, além da possibilidade de associação com
outras fissuras, como a cranial número 14, gerando um espectro amplo de fenótipos.
A variabilidade de apresentações se expressa desde simples entalhe labial ou discreto
nariz bífido, até uma completa divisão das estruturas da linha média da face2.
Quando há o acometimento da ponta nasal, é importante que haja uma melhora de suporte,
ganhando projeção e, quando necessário, também maior rotação. Com esta finalidade,
a técnica de tongue-in-groove é um arsenal para criar uma conexão entre o septo e crura medial, que pode ser muito
útil em determinadas apresentações das fissuras medianas3.
OBJETIVO
Este artigo tem por objetivo apresentar um relato de abordagem de nariz bífido em
paciente com fissura 0-14 de Tessier.
RELATO DE CASO
A.J.P.O., 15 anos, feminina, em acompanhamento desde os 8 anos de idade no ambulatório
de Cirurgia Plástica, com queixa de nariz de estrutura alargada, associado a episódios
de bullying na escola. Não apresentava outras queixas, como hiperteleorbitismo. Não apresentava
outras comorbidades.
O planejamento cirúrgico envolveu avaliação radiológica com realização de tomografia
computadorizada em cortes finos e com reconstrução 3D, e o momento ideal foi planejado
para após a paciente completar as fases da puberdade e desenvolvimento ósseo.
Foi submetida a procedimento em tempo único, em 9 de dezembro de 2019, com duração
de 4 horas, sob anestesia geral no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
de Botucatu - UNESP (HC FMB UNESP).
Paciente em decúbito dorsal horizontal, sob intubação orotraqueal. Foi realizada marcação
de incisão subcostal de 4 cm em sulco inframamário direito com verde brilhante e infiltração
com solução contendo lidocaína a 2%, soro fisiológico 0,9% e adrenalina 1:200.000.
Este local foi incisionado, seguido por dissecção até identificação do 6º arco costal
e abertura do pericôndrio para coleta de cartilagem de 5cm de comprimento. O fechamento
foi feito por planos e com curativo oclusivo.
O acesso nasal foi feito com incisão transcolumelar em “W” e infracartilaginosas após
prévia infiltração local, com adrenalina 1:100.000 e ropivacaína a 0,75% adicionados
ao soro fisiológico 0,9%. O retalho de cobertura foi levantado após dissecção cuidadosa
com exposição do arcabouço osteocartilaginoso onde notava-se: osso nasal com duplo
contorno, em asa de gaivota; ausência de septo cartilaginoso convencional; cartilagens
triangulares distantes; e cartilagens alares distantes com ligamentos espessos e de
curvatura não habitual.
As cruras mediais foram separadas e as cartilagens ósseas do dorso nasal afastadas,
permitindo três osteotomias de cada lado, sendo a primeira paramediana próxima ao
centro; a segunda, oblíqua de lateral para medial, que retirou fatia triangular que
continha defeito ósseo bilateral; e a terceira, baixa-alta completada por pressão
digital. Após hemostasia, seguiu-se o implante de spreader grafts medindo 40 mm x 4 mm de cada lado utilizando fio de polipropileno 5-0.
Fechamento feito em 5 camadas: septo (resquício osteofibroso), dois enxertos e duas
triangulares com três pontos. Após, realizada a sutura das cruras mediais das alares
com strut columelar de cartilagem medindo 25 mm x 3 mm. Fixado também com fio de polipropileno
5-0, assim como o strut com spreader de tongue-in-groove. Feita, então, a transecção de margens cefálicas das cartilagens alares mantendo
6 mm de extensão, seguida por suturas transdomais e interdomal com fio de polipropileno
5-0, mantendo formato de diamante no neodomo nasal.
Sequencialmente, realizado enxerto de cartilagem tipo escudo para projeção e camuflagem
da ponta nasal, bem como enxerto de cartilagem amassada em dorso, recoberto por pericôndrio.
Por fim, feita a síntese das incisões transcolumelar e intracartilaginosas com mononylon
6-0 e catgut 4-0, respectivamente, com implante de splint nasal bilateral fixado por fio de mononylon 3-0. O curativo foi feito com micropore,
aquaplast e tampão nasal.
Recebeu alta 24 horas após o procedimento, com a retirada do tampão nasal, prescrição
de anti-inflamatório não esteroidal por 5 dias, amoxicilina com clavulanato por 7
dias e solução nasal com soro fisiológico diariamente. O splint nasal e o aquaplast, bem como os pontos inabsorvíveis externos foram retirados no
8º dia de pós-operatório.
O retorno ambulatorial ocorreu no 4º, 8º, 30º dia, 6º e 15º mês de pós-operatório.
Estava assintomática e satisfeita com resultado estético e funcional, com ganho de
projeção nasal e ausência do aspecto bífido (Figura 1). As imagens radiológicas e de pré, intra e pós-operatório estão a seguir (Figuras 2 and 5).
Figura 1 - Direita para esquerda: fotos de pré-operatório, 6º mês de pós e 15º mês pós-operatório
em vista anterior.
Figura 1 - Direita para esquerda: fotos de pré-operatório, 6º mês de pós e 15º mês pós-operatório
em vista anterior.
Figura 2 - Direita para esquerda: foto de pré-operatório, 6º mês de pós e 15º mês pós-operatório
em vista de perfil esquerdo.
Figura 2 - Direita para esquerda: foto de pré-operatório, 6º mês de pós e 15º mês pós-operatório
em vista de perfil esquerdo.
Figura 3 - Direita para esquerda: foto e tomografia computadorizada em pré-operatório e 6º mês
pós-operatório.
Figura 3 - Direita para esquerda: foto e tomografia computadorizada em pré-operatório e 6º mês
pós-operatório.
Figura 4 - Enxertos de cartilagem no intraoperatório (à direita). Aspecto da incisão em região
inframamária direita após 6 meses (à esquerda).
Figura 4 - Enxertos de cartilagem no intraoperatório (à direita). Aspecto da incisão em região
inframamária direita após 6 meses (à esquerda).
Figura 5 - Aspecto do dorso nasal no intraoperatório (à direita). Aspecto de strut com spreader de tongue-in-groove (ao centro). Cartilagem tipo “escudo” para camuflagem de ponta nasal (à esquerda).
Figura 5 - Aspecto do dorso nasal no intraoperatório (à direita). Aspecto de strut com spreader de tongue-in-groove (ao centro). Cartilagem tipo “escudo” para camuflagem de ponta nasal (à esquerda).
DISCUSSÃO
A fissura 0 de Tessier não tem seu mecanismo de desenvolvimento plenamente compreendido,
mas reconhece-se seu surgimento na terceira semana de gestação4. Resulta em falha de fusão dos dois processos nasais mediais, e quando ocorre é frequente
a presença de nariz bífido. Eventualmente, este erro na embriogênese pode causar desde
a agenesia ou até duplicação dessas estruturas na linha média. Enquanto isso, a fissura
14 se caracteriza por alteração cranial, sendo a presença de hiper ou hipoteleorbitismo
marcantes5.
Em nosso relato, a paciente apresenta, além de aspecto de nariz bífido, hipertelorbitismo.
Porém, a paciente não apresentou esta queixa durante o seguimento e optamos por abordagem
exclusiva do nariz6.
O tratamento do nariz bífido é buscado há tempos7, sendo que em artigos prévios há relato de abordagem aberta, ressecando os tecidos
que estavam em excesso e com enxertos de cartilagem associados4. Devido à rara incidência, os estudos são escassos, mesmo sendo a fissura craniofacial
mais comum. A grande variação fenotípica da face nesta síndrome também está presente
no nariz: columela curta e larga, septo nasal duplicado ou ausente, dorso plano, ponta
nasal também variável. As séries de casos mostram que essa diversidade também altera
a padronização do tratamento, que deve ser individualizada8.
A técnica escolhida para rinoplastia foi a aberta estrutura, sendo a reconstrução
da ponta nasal a etapa mais desafiadora. Optou-se por técnica tongue-in-groove para uma projeção e rotação da ponta previsíveis e permanentes, baseado em bons resultados
prévios descritos9.
O tratamento ainda se mostra de sucesso quando em tempo único na maioria das séries,
obviamente variando a depender do número de procedimentos associados para correção
de defeitos comitentes, especialmente os labiais10.
CONCLUSÃO
A rinoplastia aberta estrutura com técnica tongue-in-groove pode fornecer resultado estético satisfatório em paciente com nariz bífido secundário
a fissura 0-14 de Tessier.
REFERÊNCIAS
1. Tessier P. Anatomical classification facial, cranio-facial and latero-facial clefts.
J Maxillofac Surg. 1976;4(2):69-92.
2. da Silva Freitas R, Alonso N, Shin JH, Busato L, Ono MC, Cruz GA. Surgical correction
of Tessier number 0 cleft. J Craniofac Surg. 2008;19(5):1348-52.
3. Antunes MB, Quatela VC. Effects of the Tongue-in-Groove Maneuver on Nasal Tip Rotation.
Aesthet Surg J. 2018;38(10): 1065-73.
4. Mazzola RF, Mazzola IC. Facial clefts and facial dysplasia: revisiting the classification.
J Craniofac Surg. 2014;25(1):26-34.
5. Nam SM, Kim YB. The Tessier number 14 facial cleft: a 20 years follow-up. J Craniomaxillofac
Surg. 2014;42(7):1397-401.
6. Pidgeon TE, Flapper WJ, David DJ, Anderson PJ. From birth to maturity: midline tessier
0-14 craniofacial cleft patients who have completed protocol management at a single
craniofacial unit. Cleft Palate Craniofac J. 2014;51(4):e70-9.
7. Miller PJ, Grinberg D, Wang TD. Midline cleft. Treatment of the bifid nose. Arch Facial
Plast Surg. 1999;1(3):200-3.
8. Spataro EA, Most SP. Tongue-in-Groove Technique for Rhinoplasty: Technical Refinements
and Considerations. Facial Plast Surg. 2018;34(5):529-38.
9. Tawfik A, El-Sisi HE, Abd El-Fattah AM. Surgical correction of bifid nose. Int J Pediatr
Otorhinolaryngol. 2016;86:72-6.
10. Kolker AR, Sailon AM, Meara JG, Holmes AD. Midline Cleft Lip and Bifid Nose Deformity:
Description, Classification, and Treatment. J Craniofac Surg. 2015;26(8):2304-8.
1. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, Cirurgia Plástica,
Botucatu, SP, Brasil.
Autor correspondente: Balduino Ferreira de Menezes Neto, Avenida Professor Mário Rubens Guimarães Montenegro, S/N - Jardim Sao Jose, Botucatu
- SP, Brasil, CEP 18618-970, E-mail: balduinofmneto@gmail.com
Artigo submetido: 02/12/2020.
Artigo aceito: 18/05/2021.
Conflitos de interesse: não há.