ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

Previous Article Next Article

Case Report - Year2022 - Volume37 - Issue 1

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2022RBCP0017

RESUMO

O colesteatoma consiste em um processo inflamatório que resulta na migração do epitélio escamoso queratinizado para o ouvido médio. Embora considerada uma entidade histopatologicamente benigna, pode se comportar de forma bastante agressiva sendo uma importante causa de surdez em todos os países. Descarga, dor, ruptura do tímpano com extensão para o ouvido interno levando à surdez e vertigem, são as manifestações clínicas mais comuns. O tratamento consiste na excisão cirúrgica de todo o epitélio estranho da orelha média. As recorrências podem chegar a 50% e são um desafio para os médicos de ouvido, nariz e garganta. Neste relato de caso descrevemos um caso de colesteatoma recorrente adquirido em um hospital terciário em Portugal, tratado com ablação radical de ouvido médio e cavidade mastóide pelos médicos otorrinolaringologistas. A opção reconstrutiva escolhida foi a obliteração do espaço morto com retalho fascial temporo-parietal pelo Serviço de Cirurgia Plástica.

Palavras-chave: Colesteatoma da orelha média; Retalhos cirúrgicos; Orelha média; cirurgia; Mastoidectomia; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos

ABSTRACT

Cholesteatoma consists of an inflmmatory process that results in the migration of squamous keratinized epithelium into the middle ear. Although regarded as a histopathologically benign entity it can behave quite aggressively being an important cause of deafness in all countries. Ear discharge, pain, ear drum rupture with extension into the inner ear leading to deafness and vertigo, are the most common clinical manifestations. Treatment consists of surgically excising all the foreign epithelium from the middle ear. Recurrences can be as high as 50% and are a challenge to Ear, Nose and Throat doctors. In this case report we describe a case of an acquired recurrent cholesteatoma in a tertiary hospital in Portugal, treated with radical ablation of middle ear and mastoid cavity by the otolaryngologists. The chosen reconstructive option was obliteration of the dead space using a temporo-parietal fascial flap by the Plastic Surgery Department

Keywords: Cholesteatoma, Middle ear; Surgical flaps; Middle ear, surgery; Mastoidectomy; Reconstructive surgical procedures.


INTRODUÇÃO

O colesteatoma é uma entidade histopatologicamente benigna, mas localmente muito agressiva, sendo uma causa importante de otite média crónica e surdez.

Congénito ou adquirido, consiste num processo inflamatório crónico que resulta na migração do epitélio queratinizado da membrana timpânica para o ouvido médio.

A acumulação de placas de queratina é o factor subjacente na etiologia do colesteatoma. Os achados clínicos habituais são otorreia purulenta, perfuração timpânica com extensão ao ouvido interno e erosão dos ossículos com resultante hipoacusia ou surdez1.

O tratamento consiste em erradicar todo o tecido do ouvido médio, contudo, as taxas de recidiva podem ser elevadas, de 8% até 50%2. A recidiva manifesta-se geralmente com otorreia no pós-operatório3.

A área de ablação de mastoidectomia pode ser bastante extensa e, para evitar complicações, a sua obliteração é importante4. A obliteração pode ser conseguida com uso de materiais aloplásticos ou reconstrução autóloga. O lipofilling ou autoenxerto adiposo é o método de obliteração da cavidade mastóidea mais utilizado na literatura5,6.

A utilização do retalho de fáscia temporal é uma técnica cirúrgica estabelecida para a reconstrução da mastoide3. Na literatura podem ser encontradas descrições deste retalho para este fim.

Neste caso clínico debatemos a abordagem cirúrgica de um colesteatoma recidivado, que após excisão radical pelo serviço de Otorrinolaringologia (ORL) foi submetido a reconstrução com retalho de fáscia temporal pela Cirurgia Plástica.

OBJETIVO

O objectivo deste trabalho é apresentar o retalho de fáscia temporal como uma opção cirúrgica adequada para a reconstrução da cavidade mastóidea.

RELATO DE CASO

Doente de 50 anos, do sexo masculino, caucasi­ano, com o diagnóstico de otite média crónica colesteatomatosa à esquerda.

A primeira manifestação da doença ocorreu 4 anos antes, em maio de 2014, com um episódio de otite média supurada esquerda, tendo após várias recidivas progressivamente evoluído para uma otite média crónica.

Durante este período manteve seguimento no serviço de ORL do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

A doença teve períodos de remissão e recidiva avançando paulatinamente para lesão lítica do ouvido interno com cofose.

Realizou múltiplos ciclos de antibioterapia empírica e dirigida, lavagens e corticoterapia tópica. Laboratorialmente, o único microrganismo identificado foi Pseudomonas aeruginosa.

Imagiologicamente, a tomografia axial computadorizada (TAC) maxilofacial descrevia uma lesão polipoide com extensão ao canal auditivo externo.

A biópsia revelou tecido inflamatório com granulação tendo excluído lesão neoplásica.

Em dezembro de 2016, o doente foi submetido a mastoidectomia radical modificada e meatoplastia e, em novembro de 2017, a mastoidectomia aberta com limpeza cirúrgica, redução da cavidade da mastoide com cartilagem, timpanoplastia com pericôndrio e fáscia e revisão de meatoplastia.

Em julho de 2018, após nova recidiva e instalada a cofose, foi proposto para revisão de mastoidectomia e obliteração do espaço morto com retalho de fáscia temporal.

Considerações anatómicas

A fáscia parietotemporal é uma extensão do sistema músculo aponeurótico superficial (SMAS) inferiormente e da gálea aponeurótica superiormente.

Na fossa temporal encontra-se superficial à fáscia temporal profunda e ao músculo temporal. Acima do músculo temporal, a fáscia parietotemporal encontra-se imediatamente acima do periósseo.

É uma fina fáscia vascularizada pela artéria temporal superficial (TS).

A artéria TS é um ramo da carótida externa. Trata-se de uma artéria de pequeno calibre, com aproximadamente 1-3 mm de diâmetro. É geralmente acompanhada por uma veia de calibre semelhante. Estes vasos cursam anteriores ao pavilhão auricular e o pulso pode ser facilmente palpado.

Ao longo do seu curso, a artéria TS ramifica-se para vascularizar a fáscia parietotemporal, hélix, músculo temporal e couro cabeludo.

Linha de Pitanguy: o ramo frontal do nervo facial corre numa linha imaginária 0,5 cm abaixo do tragus e 1,5 cm acima do bordo lateral do supracílio e corre o risco de ser seccionado se a dissecção for muito profunda. Esta linha imaginária é chamada linha de Pitanguy e é uma referência anatómica que deve ser respeitada.

O ramo auriculotemporal corre posterior à artéria e é um nervo sensitivo para o couro cabeludo. Este ramo do nervo maxilar (por sua vez um dos ramos no nervo craniano trigémeo - CN V) é frequentemente sacrificado na dissecção, resultando numa área de hipostesia do couro cabeludo.

Técnica cirúrgica

Revisão de mastoidectomia por ORL (Figuras 1, 2 e 3)

Figura 1 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###

Figura 2 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###

Figura 3 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.

Doente submetido à remoção de tecido epitelial e mucosa da cavidade de esvaziamento petromastóidea. Foram avivados os limites com broca diamantada e submetido a remoção de membrana timpânica.

Levantamento de tecido cutâneo do canal auditivo externo (CAE).

Retalho de fáscia parietotemporal superficial

Realizar a incisão na pele em forma de “V” na região pré-auricular de forma a expor a fáscia (Figura 4).

Figura 4 - A incisão na pele em forma de “V” na região pré-auricular de forma a expor a fáscia.

O couro cabeludo é dissecado da fáscia de uma forma semelhante a uma ritidectomia. O plano pretendido é imediatamente superficial à fáscia parietotemporal superficial.

Neste passo é necessário cuidado para não lesar os folículos e causar alopecia.

Após a exposição da fáscia e identificação do pedículo vascular, o retalho é delimitado fazendo uma incisão até ao plano pretendido, que é o folheto posterior da fáscia temporal profunda.

Posteriormente, o retalho é levantado de distal para proximal, afunilando à medida que nos aproxi­mamos do pedículo vascular. Neste passo é necessário cautela para não lesar o ramo frontal do nervo facial.

O ramo auriculotemporal no nervo maxilar é frequentemente sacrificado, resultando numa área de hipostesia do couro cabeludo.

Pode-se visualizar o retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais (Figuras 5 to 6).

Figura 5 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.

Figura 6 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.

O “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto (Figuras 7, 8 e 9). Foi utilizada cola de fibrina para promover a aderência.

Figura 7 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###

Figura 8 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###

Figura 9 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###

O meato do CAE é deixado para epitelizar por segunda intenção, aplicando-se um penso com gaze gorda.

A sutura é realizada por planos e um dreno aspirativo é deixado e retirado no pós-operatório imediato (Figura 10).

Figura 10 - Pós-operatório imediato.

Esta técnica reconstrutiva apresenta um bom resultado funcional e estético final aos 5 meses pós-operatório, com total epitelização do meato auditivo externo e sem sinais de recidiva (Figura 11).

Figura 11 - Bom resultado funcional e estético final aos 5 meses após a reconstrução com retalho de fáscia temporal.

RESULTADOS

No caso clínico apresentado o tratamento foi eficaz. Exteriormente apenas se visualiza um meato do canal auditivo totalmente epitelizado e sem suspeita de recidiva de colesteatoma.

À data da alta da consulta de Cirurgia Plástica, 5 meses após a reconstrução com retalho de fáscia temporal (Figura 11), o doente encontrava-se bem e sem queixas clínicas. Apresentava a mímica facial preservada, demonstrando a integridade do nervo facial, nomeadamente do ramo frontal. Não ocorreram mais episódios de recidiva como otorreia nem suspeitas de progressão da doença como vertigens ou cefaleias.

DISCUSSÃO

O retalho de fáscia temporal é um retalho versátil, sendo geralmente utilizado na reconstrução da cabeça e pescoço7.

Tem como objectivos obliterar o espaço morto e aumentar a vascularização da área anatómica afectada, melhorando consequentemente o aporte de antibióticos. Esta é a principal vantagem quando comparado com outras opções reconstrutivas não vascularizadas, como o autoenxerto adiposo ou uso de material aloplástico8.

O retalho de fáscia temporal é uma técnica eficaz no arsenal do cirurgião plástico para obter reconstruções da região temporal com bons resultados a longo prazo9. Neste sentido apresenta-se como uma técnica adequada para obter a obliteração do ouvido médio e mastoide, especialmente importante em pacientes com doença localmente avançada que necessitem de extensa mastoidectomia.

Apresenta vantagens também quando comparado com outras opções reconstrutivas, nomeadamente com o retalho temporal miofascial. Este retalho tem como principal desvantagem o volume excessivo do retalho e menor plasticidade quando comparado com o retalho a fáscia temporal.

Por ser um retalho fascial, as sequelas, como a deformidade estética causada à zona dadora, são mínimas e a cicatriz inconspícua no couro cabeludo.

Destaca-se também a vantagem em abordar as patologias em equipas multidisciplinares assim como o papel da Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética como especialidade cirúrgica reconstrutiva de última linha num hospital polivalente.

CONCLUSÃO

No caso clínico apresentado a escolha de tratamento revelou-se eficaz para atingir o objectivo proposto de obliterar a cavidade mastóidea, sem recidivas e com a menor morbilidade possível.

Neste trabalho pretendeu-se também apresentar sumariamente a técnica cirúrgica de forma a se tornar reprodutível e simples a sua execução.

REFERÊNCIAS

1. Vartiainen E. Factors associated with recurrence of cholesteatoma. J Laryngol Otol. 1995;109(7):590-2.

2. Rutkowska J, Özgirgin N, Olszewska E. Cholesteatoma Definition and Classification: A Literature Review. J Int Adv Otol. 2017;13(2):266-71.

3. Hung T, Leung N, van Hasselt CA, Liu KC, Tong M Long-term outcome of the Hong Kong vascularized, pedicled temporalis fascia flap in reconstruction of mastoid cavity. Laryngoscope. 2007;17(8):1403-7.

4. Skoulakis C, Koltsidopoulos P, Iyer A, Kontorinis G. Mastoid Obliteration with Synthetic Materials: A Review of the Literature. J Int Adv Otol. 2019;15(3):400-4.

5. Çath T, Çelik C, Olgun L. Subtotal Petrosectomy and Blind Sac Closure of the External Auditory Canal: Single-Center Experience with 44 Cases. Turk Arch Otolaryngol. 2014;52(3):81-6.

6. Pyle GM, Wiet RJ. Petrous Apex Cholesteatoma: Exteriorization vs. Subtotal Petrosectomy with Obliteration. Skull Base Surg. 1991;1(2):97-105.

7. Demirdover C, Sahin B, Vayvada H, Oztan HY. The versatile use of temporoparietal fascial flap. Int J Med Sci. 2011;8(5):362-8.

8. Yung M. The Use of Temporoparietal Fascial Flap to Eliminate Wound Breakdown in Subtotal Petrosectomy for Chronic Discharging Ears. Otol Neurotol. 2016;37(3):248-51.

9. Karimnejad K, Akhter AS, Walen SG, Mikulec AA. The temporoparietal fascia flap for coverage of cochlear reimplantation following extrusion. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2017;94:64-7.











1. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Cirurgia Plástica e Queimados, Coimbra, Portugal.

COLABORAÇÕES
JBF Análise e/ou interpretação de dados, Conceituação, Análise Formal, Investigação, Realização de operações e/ou ensaios, Redação - Preparação do Projeto Original, Redação - Revisão e Edição
CB Análise e/ou interpretação de dados, Investigação
RM Visualização
MJFS Realização de operações e/ou ensaios, Supervisão

Autor correspondente: João Baltazar Ferreira, Praceta Professor Mota Pinto, Coimbra, Portugal, CEP 3004-561, E-mail: joao_cbf@msn.com

Artigo submetido: 19/10/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.

Conflitos de interesse: não há.

 

Previous Article Back to Top Next Article

Indexers

Licença Creative Commons All scientific articles published at www.rbcp.org.br are licensed under a Creative Commons license