INTRODUÇÃO
O colesteatoma é uma entidade histopatologicamente benigna, mas localmente muito agressiva,
sendo uma causa importante de otite média crónica e surdez.
Congénito ou adquirido, consiste num processo inflamatório crónico que resulta na
migração do epitélio queratinizado da membrana timpânica para o ouvido médio.
A acumulação de placas de queratina é o factor subjacente na etiologia do colesteatoma.
Os achados clínicos habituais são otorreia purulenta, perfuração timpânica com extensão
ao ouvido interno e erosão dos ossículos com resultante hipoacusia ou surdez1.
O tratamento consiste em erradicar todo o tecido do ouvido médio, contudo, as taxas
de recidiva podem ser elevadas, de 8% até 50%2. A recidiva manifesta-se geralmente com otorreia no pós-operatório3.
A área de ablação de mastoidectomia pode ser bastante extensa e, para evitar complicações,
a sua obliteração é importante4. A obliteração pode ser conseguida com uso de materiais aloplásticos ou reconstrução
autóloga. O lipofilling ou autoenxerto adiposo é o método de obliteração da cavidade mastóidea mais utilizado
na literatura5,6.
A utilização do retalho de fáscia temporal é uma técnica cirúrgica estabelecida para
a reconstrução da mastoide3. Na literatura podem ser encontradas descrições deste retalho para este fim.
Neste caso clínico debatemos a abordagem cirúrgica de um colesteatoma recidivado,
que após excisão radical pelo serviço de Otorrinolaringologia (ORL) foi submetido
a reconstrução com retalho de fáscia temporal pela Cirurgia Plástica.
OBJETIVO
O objectivo deste trabalho é apresentar o retalho de fáscia temporal como uma opção
cirúrgica adequada para a reconstrução da cavidade mastóidea.
RELATO DE CASO
Doente de 50 anos, do sexo masculino, caucasiano, com o diagnóstico de otite média
crónica colesteatomatosa à esquerda.
A primeira manifestação da doença ocorreu 4 anos antes, em maio de 2014, com um episódio
de otite média supurada esquerda, tendo após várias recidivas progressivamente evoluído
para uma otite média crónica.
Durante este período manteve seguimento no serviço de ORL do Centro Hospitalar e Universitário
de Coimbra.
A doença teve períodos de remissão e recidiva avançando paulatinamente para lesão
lítica do ouvido interno com cofose.
Realizou múltiplos ciclos de antibioterapia empírica e dirigida, lavagens e corticoterapia
tópica. Laboratorialmente, o único microrganismo identificado foi Pseudomonas aeruginosa.
Imagiologicamente, a tomografia axial computadorizada (TAC) maxilofacial descrevia
uma lesão polipoide com extensão ao canal auditivo externo.
A biópsia revelou tecido inflamatório com granulação tendo excluído lesão neoplásica.
Em dezembro de 2016, o doente foi submetido a mastoidectomia radical modificada e
meatoplastia e, em novembro de 2017, a mastoidectomia aberta com limpeza cirúrgica,
redução da cavidade da mastoide com cartilagem, timpanoplastia com pericôndrio e fáscia
e revisão de meatoplastia.
Em julho de 2018, após nova recidiva e instalada a cofose, foi proposto para revisão
de mastoidectomia e obliteração do espaço morto com retalho de fáscia temporal.
Considerações anatómicas
A fáscia parietotemporal é uma extensão do sistema músculo aponeurótico superficial
(SMAS) inferiormente e da gálea aponeurótica superiormente.
Na fossa temporal encontra-se superficial à fáscia temporal profunda e ao músculo
temporal. Acima do músculo temporal, a fáscia parietotemporal encontra-se imediatamente
acima do periósseo.
É uma fina fáscia vascularizada pela artéria temporal superficial (TS).
A artéria TS é um ramo da carótida externa. Trata-se de uma artéria de pequeno calibre,
com aproximadamente 1-3 mm de diâmetro. É geralmente acompanhada por uma veia de calibre
semelhante. Estes vasos cursam anteriores ao pavilhão auricular e o pulso pode ser
facilmente palpado.
Ao longo do seu curso, a artéria TS ramifica-se para vascularizar a fáscia parietotemporal,
hélix, músculo temporal e couro cabeludo.
Linha de Pitanguy: o ramo frontal do nervo facial corre numa linha imaginária 0,5 cm abaixo do tragus
e 1,5 cm acima do bordo lateral do supracílio e corre o risco de ser seccionado se
a dissecção for muito profunda. Esta linha imaginária é chamada linha de Pitanguy
e é uma referência anatómica que deve ser respeitada.
O ramo auriculotemporal corre posterior à artéria e é um nervo sensitivo para o couro
cabeludo. Este ramo do nervo maxilar (por sua vez um dos ramos no nervo craniano trigémeo
- CN V) é frequentemente sacrificado na dissecção, resultando numa área de hipostesia
do couro cabeludo.
Técnica cirúrgica
Revisão de mastoidectomia por ORL (Figuras 1, 2 e 3)
Figura 1 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###
Figura 1 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###
Figura 2 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###
Figura 2 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.###
Figura 3 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.
Figura 3 - Revisão de mastoidectomia pela Otorrinolaringologia.
Doente submetido à remoção de tecido epitelial e mucosa da cavidade de esvaziamento
petromastóidea. Foram avivados os limites com broca diamantada e submetido a remoção
de membrana timpânica.
Levantamento de tecido cutâneo do canal auditivo externo (CAE).
Retalho de fáscia parietotemporal superficial
Realizar a incisão na pele em forma de “V” na região pré-auricular de forma a expor
a fáscia (Figura 4).
Figura 4 - A incisão na pele em forma de “V” na região pré-auricular de forma a expor a fáscia.
Figura 4 - A incisão na pele em forma de “V” na região pré-auricular de forma a expor a fáscia.
O couro cabeludo é dissecado da fáscia de uma forma semelhante a uma ritidectomia.
O plano pretendido é imediatamente superficial à fáscia parietotemporal superficial.
Neste passo é necessário cuidado para não lesar os folículos e causar alopecia.
Após a exposição da fáscia e identificação do pedículo vascular, o retalho é delimitado
fazendo uma incisão até ao plano pretendido, que é o folheto posterior da fáscia temporal
profunda.
Posteriormente, o retalho é levantado de distal para proximal, afunilando à medida
que nos aproximamos do pedículo vascular. Neste passo é necessário cautela para não
lesar o ramo frontal do nervo facial.
O ramo auriculotemporal no nervo maxilar é frequentemente sacrificado, resultando
numa área de hipostesia do couro cabeludo.
Pode-se visualizar o retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais
(Figuras 5 to 6).
Figura 5 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.
Figura 5 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.
Figura 6 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.
Figura 6 - Retalho de fáscia temporal baseado nos vasos temporais superficiais.
O “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto (Figuras 7, 8 e 9). Foi utilizada cola de fibrina para promover a aderência.
Figura 7 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
Figura 7 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
Figura 8 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
Figura 8 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
Figura 9 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
Figura 9 - “Inset” na cavidade, obliterando todo o espaço morto.###
O meato do CAE é deixado para epitelizar por segunda intenção, aplicando-se um penso
com gaze gorda.
A sutura é realizada por planos e um dreno aspirativo é deixado e retirado no pós-operatório
imediato (Figura 10).
Figura 10 - Pós-operatório imediato.
Figura 10 - Pós-operatório imediato.
Esta técnica reconstrutiva apresenta um bom resultado funcional e estético final aos
5 meses pós-operatório, com total epitelização do meato auditivo externo e sem sinais
de recidiva (Figura 11).
Figura 11 - Bom resultado funcional e estético final aos 5 meses após a reconstrução com retalho
de fáscia temporal.
Figura 11 - Bom resultado funcional e estético final aos 5 meses após a reconstrução com retalho
de fáscia temporal.
RESULTADOS
No caso clínico apresentado o tratamento foi eficaz. Exteriormente apenas se visualiza
um meato do canal auditivo totalmente epitelizado e sem suspeita de recidiva de colesteatoma.
À data da alta da consulta de Cirurgia Plástica, 5 meses após a reconstrução com retalho
de fáscia temporal (Figura 11), o doente encontrava-se bem e sem queixas clínicas. Apresentava a mímica facial
preservada, demonstrando a integridade do nervo facial, nomeadamente do ramo frontal.
Não ocorreram mais episódios de recidiva como otorreia nem suspeitas de progressão
da doença como vertigens ou cefaleias.
DISCUSSÃO
O retalho de fáscia temporal é um retalho versátil, sendo geralmente utilizado na
reconstrução da cabeça e pescoço7.
Tem como objectivos obliterar o espaço morto e aumentar a vascularização da área anatómica
afectada, melhorando consequentemente o aporte de antibióticos. Esta é a principal
vantagem quando comparado com outras opções reconstrutivas não vascularizadas, como
o autoenxerto adiposo ou uso de material aloplástico8.
O retalho de fáscia temporal é uma técnica eficaz no arsenal do cirurgião plástico
para obter reconstruções da região temporal com bons resultados a longo prazo9. Neste sentido apresenta-se como uma técnica adequada para obter a obliteração do
ouvido médio e mastoide, especialmente importante em pacientes com doença localmente
avançada que necessitem de extensa mastoidectomia.
Apresenta vantagens também quando comparado com outras opções reconstrutivas, nomeadamente
com o retalho temporal miofascial. Este retalho tem como principal desvantagem o volume
excessivo do retalho e menor plasticidade quando comparado com o retalho a fáscia
temporal.
Por ser um retalho fascial, as sequelas, como a deformidade estética causada à zona
dadora, são mínimas e a cicatriz inconspícua no couro cabeludo.
Destaca-se também a vantagem em abordar as patologias em equipas multidisciplinares
assim como o papel da Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética como especialidade
cirúrgica reconstrutiva de última linha num hospital polivalente.
CONCLUSÃO
No caso clínico apresentado a escolha de tratamento revelou-se eficaz para atingir
o objectivo proposto de obliterar a cavidade mastóidea, sem recidivas e com a menor
morbilidade possível.
Neste trabalho pretendeu-se também apresentar sumariamente a técnica cirúrgica de
forma a se tornar reprodutível e simples a sua execução.
REFERÊNCIAS
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with Obliteration. Skull Base Surg. 1991;1(2):97-105.
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flap. Int J Med Sci. 2011;8(5):362-8.
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Petrosectomy for Chronic Discharging Ears. Otol Neurotol. 2016;37(3):248-51.
9. Karimnejad K, Akhter AS, Walen SG, Mikulec AA. The temporoparietal fascia flap for
coverage of cochlear reimplantation following extrusion. Int J Pediatr Otorhinolaryngol.
2017;94:64-7.
1. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Cirurgia Plástica e Queimados, Coimbra,
Portugal.
Autor correspondente: João Baltazar Ferreira, Praceta Professor Mota Pinto, Coimbra, Portugal, CEP 3004-561, E-mail: joao_cbf@msn.com
Artigo submetido: 19/10/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.