INTRODUÇÃO
A cirurgia plástica pode ser considerada a cirurgia geral em seu máximo refinamento
técnico. A busca constante por evolução e meios de tornar o que antes não parecia
possível em algo exequível é um dos seus nortes. Assim, surge nesta especialidade
a microcirurgia, que utilizando-se de óptica de magnificação é capaz de transferir
tecidos e corrigir defeitos que pareciam irreversíveis1.
Neste último caso, a exigência técnica é alta e o treinamento longo. Especialmente
em países em desenvolvimento, a questão tempo versus custo se torna grande empecilho2.
A complexidade destes procedimentos é elevada e exige grande afinamento prático, com
precisão máxima para que não ocorram erros e perdas catastróficas para o paciente3.
A necessidade de entender e executar cada possibilidade de reconstrução é uma habilidade
fundamental para o cirurgião plástico, especialmente o reparador4.
O treinamento clínico, ainda que seja fundamental, quando é possível ser feito incialmente
de forma experimental, é muito mais seguro e envolve menos riscos aos pacientes5-7.
O clamp vascular metálico é considerado um dos fatores limitantes ao treinamento simultâneo
de mais de um residente. Material delicado, normalmente de alto custo para os laboratórios
de treinamento, que facilmente perde sua precisão ao longo do tempo, principalmente
por manipulação de alunos no início de sua formação - que são os mais presentes neste
tipo de atividade.
Como forma de solucionar este tipo de empecilho, em 2009, nesta mesma instituição,
Walter Huaraca, sob orientação do professor Fausto Viterbo, propôs uma técnica simples
e de fácil execução: fio único de mononylon 5.0 para elaboração de dois nós falsos
em segmento proximal e distal da área que será seccionada para treinamento de sutura
término-terminal vascular, com capacidade de tração para aproximação das bordas dos
vasos, conseguindo substituir o clamp vascular metálico8.
A sequência técnica se inicia com nó falso distal à artéria femoral, com mínima pressão
local, sendo o mesmo fio utilizado para outro nó falso, agora proximal, a cerca de
1 cm do anterior. Secciona-se a artéria no ponto central, mantendo a tensão do fio
para facilitar a anastomose microcirúrgica. Após o término desta, retira-se o clamp de fio, tracionando-o pela extremidade distal. O aspecto após a montagem do clamp de fio e antes da secção se encontra na Figura 1.
Figura 1 - Ponto de Huaraca (aumento 25x).
Figura 1 - Ponto de Huaraca (aumento 25x).
OBJETIVO
O presente artigo tem por objetivo central avaliar a replicabilidade da técnica proposta
por Huaraca em 2009, comparando o clamp feito com fio de mononylon com o clamp metálico tradicional, demonstrando uma forma de diminuir o custo do treinamento,
sem prejudicar a evolução do tratamento.
MÉTODOS
Foram selecionados seis ratos masculinos da raça Wistar disponíveis no laboratório
de microcirurgia experimental do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Botucatu para sutura término-terminal da própria artéria femoral, sendo um dos lados
realizado com clamp vascular habitual metálico e o contralateral com técnica de Huaraca, no mesmo tempo
cirúrgico e pelo mesmo cirurgião. Os lados da sutura foram escolhidos ao acaso. As
cirurgias foram realizadas no mês de dezembro de 2020.
Programação
No experimento, o peso dos animais, diâmetros dos vasos, número de pontos e tempo
cirúrgico foram aferidos, bem como avaliada a patência final após 30 minutos por pesquisador
independente.
Após 72 horas do procedimento inicial, os ratos foram reavaliados para checagem de
peso e da patência arterial final por outro pesquisador.
Avaliação de patência
A patência era considerada pérvia quando havia sinal de fluxo distal à anastomose,
considerando a coloração do vaso, pulsação e de acordo com a manobra de Acland - feita
com duas pinças para avaliação do reenchimento vascular em sentido proximal ao distal.
Técnica cirúrgica
O procedimento padrão de anestesia em ambos os grupos foi feito com 80 mg/kg de ketamina
e 10 mg/kg de xilazina, por via intraperitoneal, seguida por anestesia local com lidocaína
7 mg/kg nas regiões inguinais. Isto era feito após a pesagem e tricotomia da região
inguinal dos animais.
No intraoperatório, foi usado tramadol 5 mg/kg via intramuscular, enrofloxacino (10
mg/kg) e cetoprofeno (5 mg/kg) pela via subcutânea. Dose de 100 mg/kg de dipirona
sódica por via subcutânea era aplicada diariamente nos dias subsequentes ao procedimento
inicial para controle da dor.
A incisão padrão foi realizada de forma oblíqua na região inguinal do rato e a artéria
femoral foi dissecada no nível mais proximal possível, onde tem seu diâmetro medido
no local estimado de secção (Figura 2).
Figura 2 - Rato com artéria femoral direita isolada por fita azul.
Figura 2 - Rato com artéria femoral direita isolada por fita azul.
Após a dissecção arterial, a mesma era clampeada com fio (técnica de Huaraca) ou clamp metálico (Figura 3), escolhido aleatoriamente. Em seguida, a artéria foi seccionada com tesoura de microcirurgia,
sua luz foi lavada com soro fisiológico e teve sua camada adventícia removida também
com tesoura microcirúrgica. A seguir, a anastomose foi feita com mononylon 10-0 de
agulha cilíndrica.
Figura 3 - Vaso imerso em soro fisiológico (aumento 25x), com clamp metálico tradicional.
Figura 3 - Vaso imerso em soro fisiológico (aumento 25x), com clamp metálico tradicional.
Em todos os lados, o músculo e a pele foram fechados por planos com pontos separados
de fio mononylon 5.0 - o mesmo utilizado na técnica de Huaraca.
Após 72 horas, os ratos foram e pesados novamente e foram reabertas as suturas da
pele e músculo para reavaliar a patência vascular também por observação direta do
fluxo (Figura 4) e realizada a ressutura da pele e músculo com pontos de mononylon preto 5.0.
Figura 4 - Revisão da anastomose após 72 horas (aumento 25x).
Figura 4 - Revisão da anastomose após 72 horas (aumento 25x).
A técnica de confecção do clamp de fio conforme proposto por Huaraca está esquematizada na Figura 5.
Figura 5 - Demonstração esquemática da execução do clamp de fio de mononylon conforme técnica de Huaraca.
Figura 5 - Demonstração esquemática da execução do clamp de fio de mononylon conforme técnica de Huaraca.
Análise estatística
Para as variáveis quantitativas para comparação das patências foi utilizado o teste
t de Student e para as variáveis qualitativas foi utilizado o teste Exato de Fisher.
Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA)
O presente trabalho foi aprovado pela CEUA da Faculdade de Medicina de Botucatu, sob
o número de registro 1372/2020.
RESULTADOS
Os seis ratos selecionados no estudo tinham entre 60 e 90 dias de vida, com variação
de peso entre 242 e 307 g, com média de 270,8 g. Após 72 horas, apresentaram ganho
de peso médio de 3 g.
Os vasos tinham diâmetro de 0,9 a 1 mm, com média de 0,95 mm à direita e 0,93 mm à
esquerda.
O número de pontos de sutura por anastomose variou de 5 a 6 em ambos os lados, com
média de 5,6 à direita e 5,5 à esquerda.
O tempo de realização da anastomose incluiu o tempo gasto para elaboração da técnica
de Huaraca, tanto para a passagem dos pontos e criação do clamp de fio quanto retirada final para checagem de patência e sangramento. Este tempo
de execução somou de 3 a 5 minutos ao procedimento final, com média de 4,16 minutos.
A média de tempo de anastomose com técnica de Huaraca foi de 26,8 minutos contra 18,83
minutos utilizando o clamp metálico convencional (p=0,001). O número de pontos por minuto foi de 0,26 com aquela e 0,25 com este (p=0,85).
A taxa de falha (trombose) - ausência de patência final após 72 horas - foi de 33%
nos dois grupos (p=1,00).
Alguns destes dados estão resumidos nas Tabelas 1 to 2 a seguir:
Tabela 1 - Média e desvio-padrão referentes às variáveis segundo patência.
PATÊNCIA |
|
|
Huaraca |
Metal |
p |
DIÂMETRO |
MÉDIA |
0,95 |
0,93 |
0,60 |
|
DP |
0,05 |
0,05 |
|
TEMPO |
MÉDIA |
26,83 |
18,83 |
0,001 |
|
DP |
3,66 |
2,40 |
|
PONTO/MIN |
MÉDIA |
0,26 |
0,25 |
0,85 |
|
DP |
0,08 |
0,04 |
|
Tabela 1 - Média e desvio-padrão referentes às variáveis segundo patência.
Tabela 2 - Taxa de falhas (trombose).
HUARACA |
Metal |
p |
0,33 |
0,33 |
1,00 |
Tabela 2 - Taxa de falhas (trombose).
DISCUSSÃO
A microcirurgia tem múltiplas aplicações clínicas: útil no tratamento de trauma graves
em que os métodos mais simples da escada e elevador reconstrutivo não são suficientes,
como os enxertos e retalhos locais, especialmente quando há grandes fraturas e exposição
de estruturas nobres; essencial no reimplante de membros, especialmente dedos; ferramenta
fundamental nos grandes tumores de cabeça e pescoço, em que pode possibilitar que
o paciente consiga realizar suas atividades habituais.
O treinamento é fundamental e o sucesso do procedimento dificilmente vai ser alcançado
com a simples tentativa e erro diretamente na clínica, uma vez que retalhos perdidos
causam grande prejuízo ao paciente, especialmente para a área doadora, que não pode
ser revertida em alguns casos. Portanto, é essencial que cada retalho livre seja meticulosamente
realizado, com taxas de sucesso próximas a 100% em média.
A técnica proposta por Huaraca tem grande utilidade quando se observa que o fio utilizado
é o mesmo que será necessário para a sutura final do rato, bem como é de baixo custo,
facilmente encontrado, e com pequena curva de aprendizado para sua execução. Este
método é especialmente importante quando o número de cirurgiões em treinamento simultâneo
exige múltiplos clamps metálicos.
O uso de animais vivos é considerado o padrão-ouro neste tipo de treinamento, uma
vez que cria uma simulação muito próxima do que é a prática em humanos. Contudo, os
problemas éticos envolvidos demandam a substituição, sempre que possível, por outros
materiais, como os sintéticos ou cadavéricos9. Nossa escolha se baseou na disponibilidade destes animais em nossa instituição e
caráter mais realístico do procedimento.
Vários estudos mostraram que o ideal é atingir patências ao redor 95% em caráter experimental
antes de se ingressar no tratamento clínico de pacientes. Consideramos nossa taxa
de patência satisfatória, uma vez que a média de diâmetro dos vasos abordados em nosso
estudo também fica percentualmente menor do que muitos experimentos com taxas próximas
ao 100%10.
O tempo médio para a realização da anastomose varia na literatura. A média de tempo
de anastomose em nosso trabalho foi considerada satisfatória, e menor que muito outros
trabalhos previamente publicados, porém com menos pontos por anastomose11.
As patências atingidas foram ligeiramente menores do que as taxas encontradas na literatura
para este tipo de anastomose arterial término-terminal12-15.
CONCLUSÃO
O clamp feito com fio conforme proposto por Huaraca se mostra uma alternativa segura em relação
ao clamp metálico tradicional, sendo ferramenta útil no dia a dia do laboratório experimental
em microcirurgia, ampliando o leque de possibilidades para os cirurgiões em fase de
aprendizagem.
Apesar de aumentar o tempo cirúrgico, tem boa aplicabilidade em relação ao padrão
ouro, que é de maior custo, e pode facilitar o treinamento em vários serviços de residência
médica no Brasil, estimulando o ensino continuado e mais abrangente dessa nobre área
da Medicina.
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http://dx.doi.org/10.1590/S0102-86502002000300008
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1. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Botucatu, Departamento de Cirurgia
Plástica, Botucatu, SP, Brasil.
Autor correspondente: Balduino Ferreira de Menezes Neto, Avenida Professor Mário Rubens Guimarães Montenegro, S/N - Jardim São Jose, Botucatu
- SP, Brasil, CEP 18618-970, E-mail: balduinofmneto@gmail.com
Artigo submetido: 27/01/2021.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.