INTRODUÇÃO
Em 11 de março de 2020 foi declarada a pandemia de COVID-19, causada pelo novo
coronavírus. No dia 30/03/2020, quando haviam sido registrados 320 casos no
Brasil, a Divisão de Cirurgia Plástica e Queimaduras do maior complexo
hospitalar da América Latina foi fisicamente destinada aos infectados; os
pacientes queimados foram contrarreferenciados e os profissionais da saúde
foram realocados.
Neste contexto, tivemos o desafio de tratar um paciente grande queimado e
politraumatizado com trombose arterial em membro inferior direito, rara
complicação associada à queimadura. Seu tratamento foi
conduzido em um dos institutos do complexo que não é especializado no
atendimento ao trauma, mas para onde foi deslocada temporariamente a estrutura para
esses atendimentos, e onde ele permaneceu internado pela necessidade de cuidados
multidisciplinares especializados.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 18 anos, sem comorbidades, vítima de
colisão com caminhão, seguida de explosão de tanque de gasolina
de sua moto, apresentava queimadura predominantemente de 3º grau com
superfície corpórea queimada (SCQ) estimada de 50% em membros
inferiores, abdome, dorso inferior e antebraço esquerdo, e queimaduras de
2º grau superficial em antebraço direito (Figura 1).
À tomografia computadorizada (TC), identificada hemorragia subaracnoide,
hemoventrículo (IV ventrículo) e sinais de lesão axonal difusa.
Em TC de controle houve sinais de piora do edema cerebral; optou-se por
derivação ventricular externa (DVE) e passagem de cateter para
monitorização da pressão intracraniana (PIC) pela equipe da
neurocirurgia.
Após 24 horas apresentou edema, diminuição da temperatura e
cianose não fixa de membro inferior direito com pouca melhora da
possível congestão venosa pós-escarotomia. Após 12 horas
com a piora da perfusão, foi submetido à angiotomografia (AngioTC)
(Figura 2), evidenciando fluxo filiforme e
por vezes ausência de fluxo em artéria tibial anterior e posterior,
tronco tibiofibular, fibular e difícil caracterização nos
segmentos mais distais, evoluindo com cianose fixa. Diante do quadro de lesão
vascular ainda não delimitada, queimadura profunda extensa e neurotrauma
grave, optou-se por amputação após compensação
clínica.
Após retirada de DVE e PIC com melhora do quadro clínico, realizada
amputação transtibial aberta no 13º dia de
internação (DIH). Após 6 dias, o coto apresentava-se
isquêmico com presença de necroses (Figura 3), necessitando de ampliação do nível de
amputação para transfemoral.
Figura 1 - Atendimento inicial de paciente com 50% SCQ predominantemente de
3º grau por chama direta.
Figura 1 - Atendimento inicial de paciente com 50% SCQ predominantemente de
3º grau por chama direta.
Figura 2 - A. Reconstrução arterial; B e
C. AngioTC de membros inferiores evidenciando afunilamento
e obstrução do fluxo em artéria tibial anterior (seta
laranja) e tibial posterior (seta vermelha), e difícil
caracterização dos segmentos mais distais em membro inferior
direito.
Figura 2 - A. Reconstrução arterial; B e
C. AngioTC de membros inferiores evidenciando afunilamento
e obstrução do fluxo em artéria tibial anterior (seta
laranja) e tibial posterior (seta vermelha), e difícil
caracterização dos segmentos mais distais em membro inferior
direito.
A partir daí, realizamos operações seriadas semanais com
desbridamento e enxertia de pele em malha. A Tabela 1 sumariza nossas intervenções cirúrgicas.
Neurologicamente, o paciente apresentou melhora do nível de
consciência e coordenação motora, possuindo ainda áreas
de ulceração (Figura 4) para enxertias futuras.
No 27º DIH, foi colhido teste molecular (RT-PCR) para COVID-19, que viera
negativo, para investigação de picos febris sem outros sintomas,
tratada com antibioticoterapia por infecção de corrente
sanguínea. No 41º DIH, realizado teste sorológico COVID-19 de
todos internados da mesma unidade de terapia intensiva (UTI) devido à
infecção de um dos pacientes. Neste, houve positividade para
imunoglobulina G.
Figura 3 - Aspecto necrótico de retalho muscular de coto de
amputação transtibial aberta de perna direita e
visualização de queimadura extensa e profunda em membro
inferior esquerdo.
Figura 3 - Aspecto necrótico de retalho muscular de coto de
amputação transtibial aberta de perna direita e
visualização de queimadura extensa e profunda em membro
inferior esquerdo.
Figura 4 - Todas as escaras foram excisadas e cobertas com enxerto parcial de pele
em malha 3:1. Os membros superiores foram utilizados 2 vezes como
área doadora de pele após 15 dias de
restauração. Ainda há áreas ulceradas que
serão cobertas por enxerto de pele.
Figura 4 - Todas as escaras foram excisadas e cobertas com enxerto parcial de pele
em malha 3:1. Os membros superiores foram utilizados 2 vezes como
área doadora de pele após 15 dias de
restauração. Ainda há áreas ulceradas que
serão cobertas por enxerto de pele.
Tabela 1 - Sumário das cirurgias realizadas de acordo com o dia de
internação e seus resultados.
#Cirurgia
- Dia de internação (DIH)
|
Evolução |
#1 -
2º DIH DVE pela equipe da neurocirurgia.
|
Retirada
no 5º DIH após pressão intracraniana se manter
normal com DVE fechada por 72 horas.
|
#2 - 12º DIH
Amputação transtibial aberta direita
pela cirurgia vascular (CV): o músculo apresentava-se com
pouco sangramento, presença de hematomas, vasos trombosados;
optou-se então por manter retalho muscular aberto sem
cobertura cutânea para avaliar viabilidade, e instalada
terapia por pressão subatmosférica (VAC).
|
Curativo VAC retirado após 6 dias
evidenciando retalho muscular de coto com necroses e aspecto
isquêmico (Figura 2).
|
#3 -
18º DIH Amputação transfemoral
direita pela CV. Desbridamento e enxertia em abdome e
antebraço esquerdo.
|
Abertura
de curativo do enxerto após 6 dias: integração
>90%.
|
#4 - 24º DIH
Amputação transtibial esquerda pela
CV devido à extensão e profundidade da queimadura no
pé, levando a inviabilidade de reconstrução do
membro. Desbridamento e enxertia em coto transfemoral direita.
|
Abertura de curativo do enxerto
após 6 dias: integração >90%.
|
#5 -
31º DIH Desbridamento e enxertia em dorso, região
inguinal e glúteo à direita.
|
Abertura
de curativo do enxerto após 7 dias: integração
~60%.
|
#6 - 32º DIH
Traqueostomia pela cirurgia torácica para
proteção de via aérea após falha de
extubação (status neurológico
+ agitação psicomotora).
|
|
#7 -
38º DIH Desbridamento e enxertia em coto esquerdo.
|
Abertura
de curativo do enxerto após 7 dias: integração
~80%.
|
#8 - 45º DIH Desbridamento e
enxertia em dorso e glúteos.
|
Abertura de curativo do enxerto
após 7 dias: integração ~80%.
|
Tabela 1 - Sumário das cirurgias realizadas de acordo com o dia de
internação e seus resultados.
DISCUSSÃO
A queimadura extensa é das mais severas e complexas formas de trauma1. Neste caso, houve um
benéfico compartilhamento de atuação entre a equipe
assistencialista do instituto não especializado com a equipe da
divisão de queimaduras. Houve necessidade da enfermagem, não afeita ao
tratamento de pacientes queimados, rapidamente ser treinada quanto à
realização dos curativos, sendo fundamentais os esforços
conjuntos com a equipe da cirurgia plástica para a integração
dos enxertos e restauração da área doadora (reutilizada
após 15 dias).
A ativação precoce da coagulação descontrolada e a
fibrinólise podem ser consequências da lesão endotelial e da
resposta inflamatória sistêmica2. Evidências atuais sugerem que o aumento
incontrolável do sistema de coagulação é proporcional
à SCQ, profundidade da queimadura, lesão inalatória e
hemodiluição na fase de ressuscitação
volêmica3.
A queimadura grave pode causar trombose de capilares e veias de pequeno calibre, mas
raramente de médio e grande calibre4,5. Poucos casos de
trombose arterial induzida por queimadura foram relatados, apesar de bem descrita
em
necropsias de pacientes queimados5.
Dentre estes casos, a maioria dos pacientes tinham fatores de risco como
doença aterosclerótica ou cateterização da
artéria6. Neste
caso, o paciente sem comorbidades apresentou alterações laboratoriais
precoces (Tabela 2) associadas à
hemoconcentração com aumento da hemoglobina e hematócrito
(aumento da viscosidade sanguínea, fator de risco para trombose); discrasia
sanguínea com o aumento do tempo de atividade da protrombina (TAP) e tempo de
tromboplastina parcial ativada (TTPa) e consumo de plaquetas, sugerindo
coagulação intravascular disseminada (CIVD). Na CIVD ocorre atividade
procoagulante contínua com deposição de fibrina em pequenos e
médios vasos que consomem e depletam os fatores de coagulação,
podendo ocasionar tromboses e sangramentos7. Estudos cinéticos com fibrinogênio e
plaquetas marcadas revelam que, além deste consumo sistêmico, ocorre
significativo consumo local nas áreas queimadas8. Neste caso, a AngioTC sugeriu trombo arterial
nativo, que poderia ser causado por aterosclerose, aneurisma,
dissecção ou hipercoagulabilidade9. O trauma poderia originar trombose arterial subsequente a
um pseudoaneurisma ou dissecção arterial, o que não foi visto
no exame de imagem10. Assim, a
etiologia mais provável da trombose foi pela hipercoagulabilidade associada
à CIVD secundária à resposta inflamatória
sistêmica do grande queimado.
Tabela 2 - Exames laboratoriais dos 5 primeiros dias de internação
evidenciando: hemoconcentração pelo aumento de hemoglobina
(Hb) e hematócrito (Ht); discrasia sanguínea com aumento do
tempo de protrombina (RNI) e do tempo de tromboplastina parcial ativada
(TTPA) com consumo de plaquetas sugerindo CIVD; quadro inflamatório
sistêmico sugerido pelo aumento de proteína C reativa
(PCR).
|
Hb (g/dL)/Ht
(%)
|
Plaquetas |
RNI |
TTPA |
PCR |
11/04/20 |
19,9 / 55 |
565.000 |
1,6 |
1,3 |
|
12/04/20 |
23 / 65 |
309.999 |
1,9 |
1,17 |
39 |
13/04/20 |
20,0 / 61 |
183.000 |
2,2 |
1,39 |
117 |
14/04/20 |
12,2 / 35 |
76.999 |
1,5 |
1,22 |
87,68 |
15/05/20 |
11,6 / 32 |
77.000 |
1,2 |
1,2 |
103,54 |
Tabela 2 - Exames laboratoriais dos 5 primeiros dias de internação
evidenciando: hemoconcentração pelo aumento de hemoglobina
(Hb) e hematócrito (Ht); discrasia sanguínea com aumento do
tempo de protrombina (RNI) e do tempo de tromboplastina parcial ativada
(TTPA) com consumo de plaquetas sugerindo CIVD; quadro inflamatório
sistêmico sugerido pelo aumento de proteína C reativa
(PCR).
O uso de trombolíticos estava contraindicado pelo neurotrauma11, e a embolectomia foi preterida,
pois precisaria ser realizada precocemente quando o paciente ainda necessitava de
compensação clínica e neurológica. Por este motivo, e
pela profundidade e extensão das queimaduras, optamos pela
amputação do membro.
Apesar da ausência de complicações infecciosas locais,
consideramos a abordagem cirúrgica tardia. Além de aguardar melhores
condições clínicas, a perda física de nossa estrutura
especializada em queimaduras acarretou dificuldades de logística, desde a
obtenção de sala operatória, até a disponibilidade dos
nossos equipamentos e insumos específicos. Felizmente, após a
reorganização do complexo hospitalar, conseguimos realizar
intervenções cirúrgicas semanais.
Para prevenção da COVID-19, houve alocação dos pacientes
internados de acordo com seu status infeccioso, com alas para suspeitos, infectados
e não infectados. Todo paciente atendido no pronto-socorro realiza triagem
infecciosa RT-PCR e é considerado suspeito, permanecendo em isolamento com
precaução de gotículas. Após resultado, o paciente
é encaminhado para sua respectiva ala, onde é realizada constante
vigilância dos sinais infecciosos (febre e sintomas respiratórios). Se
presentes, são novamente transferidos para ala suspeita até completa
investigação com exame de imagem e novo RT-PCR para COVID-19.
Além disso, houve impedimento à visitação de qualquer
paciente, seja na enfermaria ou UTI. Apesar destes esforços, o paciente foi
infectado durante a internação e, felizmente, não apresentou
nenhuma complicação respiratória ou outra
complicação trombótica.
CONCLUSÃO
Apesar do conhecimento da coagulopatia relacionada à queimadura, ainda
necessitamos de evidências de critérios diagnósticos,
profilaxia e tratamento. A COVID-19 causou importantes mudanças em nossa
prática clínico-cirúrgica. Assim, o compartilhamento de
conhecimentos e habilidades, interação entre profissionais de diversas
áreas, e a busca por soluções adaptadas à
situação de crise podem despontar como legado positivo frente à
pandemia.
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Burn Heal. 2017 Set;3:2059513117728201. DOI: https://doi.org/10.1177/2059513117728201
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https://doi.org/10.1016/s0002-9610(88)80552-x
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https://doi.org/10.1097/00005373-197905000-00010
6. Barret JP, Dziewulski PG. Complications of the hypercoagulable
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7. Pintão MCT, Franco RF. Coagulação intravascular
disseminada. Medicina (Ribeirão Preto). 2001
Dez;34:282-91.
8. Levi M, Van Der Poll T. Disseminated intravascular coagulation: a
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10. Mitchell ME, Carpenter JP. Clinical features and diagnosis of acute
lower extremity ischemia. Waltham, MA: UpToDate; 2020.
11. Braun JD. Embolism to the lower extremities. Waltham, MA: UpToDate;
2020.
1. Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Cirurgia
Plástica e Queimaduras, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Rafael Eiki
Takemura, Avenida Doutor Enéas Carvalho de Aguiar, 255,
Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil., CEP: 05403-000, E-mail:
eikitakemura@gmail.com
Artigo submetido: 06/07/2020.
Artigo aceito: 10/01/2021.
Conflitos de interesse: não há.
Instituição: Disciplina de Cirurgia Plástica da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.