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Case Report - Year2021 - Volume36 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2021RBCP0030

RESUMO

Os defeitos na região palpebral são causados principalmente por excisões cirúrgicas de neoplasias cutâneas. Os objetivos da reconstrução palpebral estão fundamentados na restauração da funcionalidade desta unidade anatômica para manter a proteção ocular e a recuperação de uma aparência normal devido à importância crítica da região periocular na estética facial. O reparo dos defeitos palpebrais começa com uma cuidadosa avaliação dos componentes anatômicos que têm sido ressecados e precisam ser reconstruídos; a extensão e a localização do defeito guiarão a reconstrução. Grandes defeitos comprometendo a totalidade da espessura palpebral são um desafio para os cirurgiões plásticos. Milhares de técnicas cirúrgicas têm sido descritas para a reconstrução de defeitos palpebrais de espessura total; apresentamos neste artigo a descrição de um caso de reconstrução dinâmica da pálpebra com associação de um retalho frontal com transposição do músculo temporal após ressecção de um carcinoma basocelular infiltrativo recidivado.

Palavras-chave: Músculo temporal; Recuperação de função fisiológica; Neoplasias oculares; Retalho miocutâneo; Cirurgia plástica.

ABSTRACT

Surgical excisions of skin neoplasms mainly cause defects in the eyelid region. The objectives of eyelid reconstruction are based on the restoration of this anatomical unit’s functionality to maintain eye protection and recovery from a normal appearance due to the critical importance of the periocular region in facial aesthetics. Repair of eyelid defects begins with a careful evaluation of the anatomical components that have been resected and need to be reconstructed; the extent and location of the defect will guide the reconstruction. Large defects compromising the entire body thickness are a challenge for plastic surgeons. Thousands of surgical techniques have been described for the reconstruction of total thickness eyelid defects; we present in this article the description of a case of dynamic eyelid reconstruction with an association of a frontal flap with temporal muscle transposition after resection of a recurrent infiltrative basal cell carcinoma.

Keywords: Temporal muscle; Recovery of physiological function; Ocular neoplasms; Myocutaneous flap; Plastic surgery.


INTRODUÇÃO

As pálpebras são estruturas delicadas e constituem um componente estético e funcional fundamental da face; são as estruturas encarregadas da cobertura e proteção do globo ocular e desempenham um papel crítico na lubrificação do olho. Talvez nenhuma outra região do corpo humano forneça uma interação tão delicada entre a anatomia, a funcionalidade e a estética.

O objetivo primário na reconstrução palpebral é restaurar a funcionalidade desta unidade facial para manter a proteção ocular, garantindo assim a preservação da visão; o objetivo secundário mais importante é alcançar uma aparência normal devido à importância crítica da região periocular nas relações sociais1. A restauração da aparência e a função normal das pálpebras requer a reconstrução de cada um dos seus componentes: conjuntiva, tarso e camada miocutânea2.

A perda de tecido na região palpebral é causada principalmente por excisões cirúrgicas de neoplasias cutâneas; existem algumas outras etiologias, menos comuns, tais como: trauma, infecções, malformações congênitas, complicações secundárias a intervenções médicas, crioterapia e irradiação3. Os tumores malignos da pálpebra constituem cerca de 40% de todos os carcinomas da região orbitaria4. De acordo com estudos epidemiológicos, o carcinoma basocelular é o tumor palpebral mais comum, seguido do carcinoma escamocelular5. Aproximadamente 90% dos casos afetam a pálpebra inferior e a região do canto medial6, e são caracterizados por um crescimento constante e progressivo com tendência a infiltrar os tecidos subjacentes2.

A reconstrução palpebral após a ressecção de um tumor maligno é planejada com base no tamanho e na profundidade do defeito, no comprometimento do canto medial ou lateral e na presença ou não de lesão do sistema lacrimal7. Lesões com acometimento menor que 25% podem ser resolvidas com fechamento primário do defeito na maioria dos casos8. Entretanto, defeitos palpebrais que abrangem mais de um quarto da largura da pálpebra não podem ser tratados com fechamento primário e requerem uma abordagem reconstrutiva mais complexa9. Para defeitos profundos e amplos, com comprometimento tanto da lamela anterior como posterior, têm sido descritas múltiplas opções terapêuticas com retalhos cutâneos locais associados a enxertos cartilaginosos ou mucoperiosteais que fornecem uma adequada cobertura, sustento e similaridade da pele, porém com ausência de musculatura funcionante nas pálpebras restauradas. A reconstrução dinâmica da pálpebra mediante a transposição muscular ou a realização de retalhos musculares livres funcionantes oferece uma ótima solução para a recuperação da funcionalidade palpebral e a proteção ocular subsequente.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de reconstrução dinâmica do complexo palpebral, imediatamente após a ressecção de um carcinoma basocelular infiltrativo, com a restituição das diferentes camadas previamente descritas.

RELATO DE CASO

Paciente masculino de 55 anos, proveniente do interior do estado de Rio Grande do Sul, comerciante, com hipertensão arterial com adequado controle farmacológico. Apresenta-se com quadro clínico de lesão cutânea tipo placa, eritematosa, não descamativa, de crescimento progressivo em pálpebra superior, com extensão e comprometimento do canto interno e terço medial da pálpebra inferior ipsilateral. Avaliado inicialmente pela dermatologia, realizou biopsia da lesão com resultado anatomopatológico de carcinoma basocelular infiltrativo, ante o qual foi decidido tratamento com cirurgia micrográfica de Mohs e reconstrução imediata.

O paciente foi levado à cirurgia sob anestesia geral para ressecção da lesão com margens de segurança, conforme técnica previamente descrita (Figura 1) e reconstrução periorbitária de partes moles no mesmo tempo cirúrgico. A região comprometida foi infiltrada com lidocaína 2% com adrenalina. Com a exérese da lesão, houve perda da espessura total das estruturas da pálpebra superior e inferior (lamela anterior e posterior), assim como destruição e desinserção do canto interno do olho com preservação parcial do ducto lacrimal mediante canulação com Silastic®. Após a avaliação minuciosa do defeito descrito decidiu-se realizar uma reconstrução dinâmica mediante cirurgia combinada de transposição do músculo temporal, enxerto de cartilagem da concha auricular e rotação de retalho frontal contralateral para cobertura cutânea.

Figura 1 - A. Carcinoma basocelular acometendo pálpebra superior, inferior e canto interno; B. Defeito residual após ressecção da neoplasia cutânea.

Em primeiro lugar, realizou-se um enxerto de cartilagem da concha auricular para mimetização do tarso e sustentação da pálpebra inferior. Posteriormente, mediante incisão pré-capilar com extensão à região temporal, foi confeccionado o retalho de musculo temporal (Gillies) ipsilateral com bifurcação distal, mediante a desinserção do músculo da sua origem na fossa temporal e preservação da sua inserção ao nível da apófise coronoide, garantindo assim a manutenção da funcionalidade muscular para a posterior mimetização da função do músculo orbicular da pálpebra. Após a confecção, foi realizada a transposição e posicionamento do retalho para a reconstrução da camada muscular, tanto da pálpebra superior como da pálpebra inferior; o vértice da bifurcação localizou-se ao nível do canto lateral, e o posicionamento das divisões cefálica e caudal nas pálpebras superior e inferior, respectivamente (Figura 2). Sucessivamente, realizou-se a reconstrução do canto interno mediante cantopexia com fio de aço (fixado na borda superomedial da órbita por perfuração).

Figura 2 - Retalho temporal (Gillies) bifurcado em seu extremo distal.

Finalmente, para restauração da camada mais externa e cobertura das estruturas previamente descritas, confeccionou-se um retalho frontal contralateral “em máscara”, para mimetizar a abertura da rima palpebral, com rotação anti-horária (Figura 3).

Figura 3 - Retalho frontal posicionado com incisão central que mimetiza a rima palpebral.

O paciente evoluiu adequadamente no período pós-operatório, realizando acompanhamento semanal com a equipe assistente, com confirmação da viabilidade dos retalhos. Após aproximadamente seis semanas do procedimento inicial, foi realizado um segundo tempo cirúrgico para secção do pedículo do retalho frontal, remodelação e reposicionamento das bordas da área doadora, assim como refinamento da região periocular reconstruída. Os fios de sutura da região palpebral foram deixados suficientemente longos para diminuir o risco de lesão da córnea (Figura 4). A recuperação pós-operatória foi adequada, com ótima cicatrização e manutenção da dinâmica palpebral com fechamento completo da fenda, garantindo assim a proteção e lubrificação ocular.

Figura 4 - Resultado pós-operatório de 3 meses da reconstrução inicial, após secção do pedículo vascular do retalho frontal e refinamento da unidade palpebral.

DISCUSSÃO

O reparo dos defeitos palpebrais começa com uma cuidadosa avaliação dos componentes anatômicos que têm sido ressecados e precisam ser reconstruídos; a extensão e a localização do mesmo guiarão a reconstrução. Em pacientes com defeitos de espessura total, o tamanho do defeito e o grau de frouxidão nos tecidos moles perioculares são determinantes críticos do melhor procedimento reconstrutivo ou da combinação de procedimentos necessários para a restauração da anatomia, funcionalidade e estética palpebral.

As opções de reconstrução estão resumidas, conforme a camada comprometida, da seguinte forma: lamela anterior: retalho cutâneo, retalho miocutâneo, enxerto de pele de espessura total; suporte/estrutura: retalho fascial, retalho periosteal, sling de fáscia, enxerto cartilaginoso; forro: mucosa oral, retalho local de conjuntiva; ou retalhos compostos tais como enxerto mucopericondral ou retalho tarsoconjuntival10.

É importante seguir uma abordagem sistemática da reconstrução palpebral. Pequenos defeitos da lamela anterior, com preservação do tarso, podem ocasionalmente ser tratados com cicatrização por segunda intenção11. Os melhores resultados observados com este tipo de abordagem são evidenciados nas lesões superficiais da região do canto interno, devido à resistência do osso nasal à contratura, limitando assim o risco de ectrópio cicatricial; porém, pode demorar várias semanas aumentando o risco de infecção, irritação ocular e a necessidade de curativos oclusivos que obstruem a visão do paciente durante o processo de cicatrização12. Se o defeito envolve menos do 20% da margem palpebral superior ou inferior em indivíduos jovens, e até 30% em indivíduos mais velhos, poderá ser realizado fechamento primário. Um ganho no alongamento horizontal pode ser obtido através da cantotomia ou cantólise lateral11. Defeitos superficiais da pálpebra superior, limitados à lamela anterior, são melhor reparados mediante a realização de enxerto de pele de espessura total da pálpebra contralateral; em geral, há menos contratura secundária com os enxertos de pele de espessura total do que com os enxertos de espessura parcial13. Em defeitos maiores que 50%, tradicionalmente são necessárias reconstruções com retalhos compostos locais tais como retalho frontal, retalho de Cutler-Beard, retalho de Mustardé ou retalhos de avanço/rotação da região zigomática, todos precisando de um segundo tempo cirúrgico para a reconstrução de cada uma das camadas comprometidas14,15.

Conforme o caso relatado, em grandes defeitos nos quais é necessário a ressecção da placa tarsal sem preservação das bordas medial e lateral, faz-se necessário providenciar uma estabilidade estrutural à pálpebra reconstruída mediante a realização de um enxerto cartilaginoso, geralmente de concha auricular, enxerto de mucosa de palato duro ou um enxerto condromucoso de septo nasal16,17. Seguidamente, para a proteção da neoplaca tarsal, precisa-se de uma cobertura que garanta o suprimento sanguíneo para a viabilidade do enxerto, o qual no caso relatado foi obtido com a transposição de músculo temporal. Este tipo de retalho recebe sua vascularização da artéria temporal profunda anterior e posterior, tendo assim dois territórios vasculares que permitem o uso separado da fáscia ou o músculo temporal na elevação do retalho, tornando-o muito versátil na reconstrução da cabeça e do pescoço18. No caso relatado, este retalho favoreceu adicionalmente a reconstrução dinâmica da pálpebra mediante a contração da fibra muscular do temporal que mimetiza a abertura e o fechamento da fenda palpebral.

A reconstrução de defeitos palpebrais totais representa um desafio significativo em termos de recriação de uma pálpebra cosmeticamente aceitável e com um grau de função dinâmica capaz de fornecer uma adequada proteção ao globo ocular, prevenindo o risco de olho seco e úlcera corneal secundária19. Vários métodos de tratamento têm sido propostos para restaurar a funcionalidade palpebral, tais como retalhos miocutâneos livres com transferência e anastomose nervosa e retalhos musculares ou miocutâneos locais. A reanimação palpebral mediante a transferência do músculo temporal foi descrita inicialmente por Gillies, em 193420, e tem sofrido múltiplas modificações durante o tempo para melhorar a eficácia da técnica21. O retalho de Gillies permite a criação de uma cobertura ocular funcional tanto da palpebral superior quanto da inferior, com a mimetização do canto lateral e a fenda palpebral mediante a bifurcação da sua porção mais distal; é um procedimento útil, versátil, efetivo e, com o adequado conhecimento da anatomia, tecnicamente fácil de ser realizado. Adicionalmente, em comparação com a microcirurgia é um procedimento rápido e de menor complexidade, o qual pode constituir uma vantagem em determinados pacientes.

Finalmente, a despeito de toda destreza técnica e planejamento adequado, a reconstrução palpebral de espessura total pode não ser funcionalmente bem-sucedida. O paciente pode permanecer com desconforto e irritação ocular importantes pelo contato da córnea com as estruturas utilizadas para a reconstrução. Há ainda que se citar o problema de lubrificação ocular. Em situações extremas, há relatos de paciente que optam pela enucleação. Assim, a resolução destes potenciais problemas pós-operatórios segue como motivo de estudo.

CONCLUSÃO

A importância da reconstrução das pálpebras, pela sua função de proteção ocular e por seu impacto estético, é bem estabelecida entre os cirurgiões plásticos. Cada componente palpebral deve ser cuidadosamente avaliado e, se necessário, reconstruído com a técnica cirúrgica mais indicada. A obtenção de uma pálpebra superior dinâmica é um diferencial na qualidade da proteção ocular, tendo como opções terapêuticas a realização de retalhos locais ou locorregionais, simples ou compostos, únicos ou combinados ou, se necessário e disponível, a reconstrução microcirúrgica. A transferência do músculo temporal constitui uma opção versátil, efetiva, rápida e com durabilidade dos resultados a longo prazo para a reconstrução de grandes defeitos palpebrais.

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1. Hospital de Clinicas de Porto Alegre, Serviço de Cirurgia Plástica e Craniomaxilofacial, Porto Alegre, RS, Brasil.
2. Hospital Sao Lucas da PUC, Serviço de cirurgia dermatológica, Porto Alegre, RS, Brasil.

COLABORAÇÕES

MAJZ Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição

CPP Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Redação - Revisão e Edição

SVH Conceitualização, Metodologia, Redação - Revisão e Edição

ICS Conceitualização, Redação - Preparação do original

EMZ Conceitualização, Redação - Preparação do original

JJCR Conceitualização, Redação - Preparação do original

ACPO Redação - Revisão e Edição, Supervisão

MVMC Redação - Revisão e Edição, Supervisão

Autor correspondente: Mônica Alexandra Jimenez Zerpa, Avenida Ipiranga, 7464, Sala 1118, Jardim Botânico, Porto Alegre, RS, Brasil., CEP: 91530-000, E-mail: monijimenezz@gmail.com

Artigo submetido: 06/07/2020.
Artigo aceito: 10/01/2021.

Conflitos de interesse: não há.

Instituição: Hospital de Clinicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil.

 

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