INTRODUÇÃO
A reconstrução de tecidos moles do joelho e nas áreas adjacentes
a ele sempre foi um procedimento desafiador. Além dos defeitos
pós-traumáticos, os defeitos de tecido mole na área do joelho
podem ser ocasionados por infecções crônicas, lesões
actínicas ou como resultados de cirurgias para lise de bridas por
queimaduras1. A
articulação do joelho é em tipo dobradiça realizando
movimentos principalmente de flexão e extensão da perna e com
mínima rotação2. A reconstrução se apresenta como um desafio aos
cirurgiões haja visto a necessidade de os retalhos serem eficazes não
apenas para cobertura, mas precisam ser também finos o suficiente para
não prejudicarem a mobilidade após a
recuperação2.
Algumas vezes essas lesões são causadas por ressecções de
tumores ósseos em fêmur distal, patela e tíbia proximal. A
patela é um local infrequente para o aparecimento de tumores ósseos,
benignos ou malignos, assim como de lesões pseudotumorais. Na literatura
existe uma quantidade pequena de trabalhos sobre esse tema3. A maioria dos tumores são benignos com uma
incidência significativa de tumores de células gigantes e
condroblastomas4. O tumor
maligno mais frequente é o hemangioendotelioma, seguido pelo linfoma e o
osteossarcoma3.
Esse relato de caso trata-se de uma paciente com tumor metastático em patela e
reconstrução da deformidade com retalho anterolateral da coxa de fluxo
reverso. Na literatura há relatos de desistência do planejamento
cirúrgico quando a principal perfurante do retalho não se origina do
ramo descendente da artéria circunflexa femoral lateral (ACFL)5. Contudo, esse trabalho visa mostrar
que, diante dessa alteração anatômica, a
confecção do retalho não precisa ser necessariamente
descartada.
OBJETIVOS
Geral
Mostrar e discutir a reconstrução de membro inferior baseada no
retalho anterolateral da coxa de fluxo reverso com resultado estético
aceitável para cobertura cutânea em região anterior do
joelho.
Aspectos éticos
O presente relato de caso obedece a declaração de Helsinque. Foi
apresentado a paciente um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE),
sendo a paciente consultada sobe a utilização dos seus dados
clínicos de prontuário e fotografias durante o procedimento
cirúrgico para a confecção desse relato de caso.
RELATO DE CASO
O caso é originário do Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP).
Paciente J.F.S., 39 anos, sexo feminino, parda, trabalhadora rural, natural e
procedente de Calumbi/PE, apresentava formação expansiva, de
5,2x3,3cm, localizada na região da patela do joelho esquerdo (Figura 1). Apresentava clínica de dor,
edema local e limitação na flexão do membro. Início do
quadro em maio de 2019. Como antecedente, relatava nefrectomia à direita, em
2015, por tumor renal e exame histopatológico compatível com carcinoma
de células claras.
Figura 1 - Visão macroscópica do tumor.
Figura 1 - Visão macroscópica do tumor.
A primeira hipótese diagnóstica levantada pela equipe da ortopedia foi
a possibilidade de se tratar de um tumor benigno de partes moles, provavelmente um
condroblastoma. Contudo, a ressonância magnética do joelho esquerdo
apresentava formação expansiva sólida em patela esquerda,
predominantemente na sua região centromedial, medindo 5,2x3,3x2,9cm, com
descontinuidade da cortical óssea e componente de partes moles. Notava-se
também formação expansiva com as mesmas características
na margem anterior do planalto tibial medial medindo 1,9x0,6cm (Figura 2).
O planejamento cirúrgico realizado em conjunto com a cirurgia plástica
englobou a ressecção total da patela em bloco com as partes moles da
região anterior do joelho e curetagem da região de platô
tibial. A cirurgia plástica planejou reconstrução a
princípio com retalho de gastrocnêmio medial, caso fosse um defeito de
pequeno a moderado tamanho e retalho anterolateral da coxa de fluxo reverso ou
retalho livre caso grande tamanho. Não foi realizado estudo de imagem com
objetivo de avaliar a irrigação vascular do joelho ou de região
distal da coxa previamente à cirurgia.
Figura 2 - Imagem de ressonância nuclear magnética com corte sagital
de joelho esquerdo com tumoração em patela (seta vermelha) e
platô tibial medial (seta branca).
Figura 2 - Imagem de ressonância nuclear magnética com corte sagital
de joelho esquerdo com tumoração em patela (seta vermelha) e
platô tibial medial (seta branca).
A equipe da cirurgia plástica era formada por um cirurgião
plástico especializado em microcirurgia em conjunto com um residente do
último ano de cirurgia plástica e outro do segundo ano de cirurgia
plástica. Existia a possibilidade de reconstrução
microcirúrgica, portanto, o microscópio estava em
stand-by na sala cirúrgica, no entanto, não foi
utilizado para reconstrução.
A paciente foi operada pela equipe da ortopedia, com ressecção
óssea e de partes moles envolvendo as regiões da patela e fragmento
medial distal da tíbia (Figura 3). A
reconstrução proposta pela equipe de cirurgia plástica foi um
retalho anterolateral da coxa de fluxo reverso com dimensões de 14x10cm
(Figura 4). No perioperatório, foi
observado que se tratava de um retalho tipo II, uma vez que a perfurante principal
do retalho não era originária do ramo descendente e sim do ramo
transverso da ACFL5. Tal achado
obrigava que a dissecção deveria alcançar o tronco da ACFL a
fim de incluir a principal perfurante cutânea no retalho, (Figura 5). Foi realizado clampeamento acima da
bifurcação dos ramos descendente e transverso com pinça
vascular bulldog de 6cm para teste de patência do fluxo reverso. Após
a certificação da vascularização do retalho
através do fluxo reverso, procedeu-se a ligadura dupla dos vasos com fio de
algodão 3-0 e rotação do retalho (Figuras 6 to 7). A área
doadora foi fechada parcialmente, com aproximação dos bordos
utilizando fio de nylon 3-0 e cicatrização por terceira
intenção e posterior enxertia de pele. O pedículo foi protegido
por uma camada muscular do reto femoral em toda sua extensão. O procedimento
foi realizado sob raquianestesia, num total de 2,5 horas (Figura 8) com resultado estético aceitável (Figura 8-B).
Figura 3 - A. Peça cirúrgica ressecada; B.
Resultado após abordagem da cirurgia ortopédica com
ressecção de patela, partes moles e de fragmento
tibial.
Figura 3 - A. Peça cirúrgica ressecada; B.
Resultado após abordagem da cirurgia ortopédica com
ressecção de patela, partes moles e de fragmento
tibial.
Realizada proteção em área doadora com curativo de espuma de
prata. Foi feita uma imobilização com tala gessada para evitar a
flexão do joelho. O curativo primário era trocado diariamente. A
paciente foi orientada a não deambular nas primeiras 72 horas tendo sido
submetida à profilaxia de trombose venosa profunda com enoxaparina 40mg.
Após as primeiras 72 horas orientamos deambulação com membro em
extensão total e proteção com tala gessada. Paciente recebeu
alta no sétimo dia de pós-operatório não evoluindo com
complicações nesse período.
O resultado do anatomopatológico coincidiu com o da biopsia prévia
tendo resultado de carcinoma de células claras.
A paciente retornou em ambulatório no décimo quinto e trigésimo
dia de pós-operatório apresentando satisfação com o
resultado estético. Apresentava ainda discreta flexão do joelho.
Contudo, haja visto ter realizado ressecção de patela e de todo
mecanismo estabilizador do joelho evoluiu com instabilidade articular. No entanto,
apresentava deambulação com o auxílio de dispositivos
auxiliares de marcha.
DISCUSSÃO
A reconstrução cutânea e de tecidos moles na região ao
redor do joelho é frequentemente desafiadora para o cirurgião
plástico e tem como objetivo cobrir a parte óssea exposta, preservando
a função articular do joelho e conferir um bom resultado
estético. Existe a opção pela utilização de
retalhos livres, onde há a necessidade de material adequado e equipe
treinada. Contudo, a região de anastomose vascular na parte posterior do
joelho torna o procedimento ainda mais complexo. O retalho fasciocutâneo
anterolateral da coxa reverso, descrito pela primeira vez em 1990, por Zhang et
al.6, parece ser uma
opção efetiva e confiável na reconstrução de
defeitos ao redor do joelho, haja visto que possui um longo comprimento do
pedículo vascular e disponibilidade de partes moles7,8. A base
vascular deste retalho é a anastomose entre o ramo descendente da ACFL e a
artéria genicular superior lateral (AGSL), que está localizada a cerca
de 3 a 10cm acima da borda lateral da patela. Esta conexão mantém uma
perfusão cutânea constante através do fluxo sanguíneo
retrógrado, que é suficiente para a sobrevivência do
retalho5. Contudo, existem
algumas variações anatômicas em que a perfurante cutânea
não se origina do ramo descendente2.
Figura 4 - Planejamento do retalho anterolateral da coxa.
Figura 4 - Planejamento do retalho anterolateral da coxa.
Figura 5 - Dissecção do principal ramo perfurante do retalho (seta
maior) com origem no ramo transverso e não no ramo descendente (seta
menor) da ACFL.
Figura 5 - Dissecção do principal ramo perfurante do retalho (seta
maior) com origem no ramo transverso e não no ramo descendente (seta
menor) da ACFL.
Figura 6 - Elevação do retalho e pedículo após
secção proximal do vaso.
Figura 6 - Elevação do retalho e pedículo após
secção proximal do vaso.
Na literatura há relatos de desistência do planejamento
cirúrgico quando a principal perfurante do retalho não se origina do
ramo descendente da ACFL5. No caso
relatado, o planejamento foi mantido haja visto a boa perfusão após
clampeamento, acima da bifurcação, entre os ramos descendente e
transverso. Alguns pontos devem ser considerados para o bom desfecho do caso: a
não compressão e a manutenção de uma camada de
músculo ao redor do pedículo, e a confirmação do fluxo
com o clampeamento vascular.
Figura 7 - Retalho em posição final.
Figura 7 - Retalho em posição final.
Figura 8 - A. 72h de pós-operatório (à esquerda);
B. 15 dias de pós-operatório.
Figura 8 - A. 72h de pós-operatório (à esquerda);
B. 15 dias de pós-operatório.
CONCLUSÃO
O retalho anterolateral da coxa de fluxo reverso, baseado na perfurante no ramo
transverso da ACFL, se mostrou como uma boa opção, rápida e com
resultado estético aceitável para cobertura cutânea na
região anterior do joelho.
REFERÊNCIAS
1. Gravvanis A, Kyriakopoulos A, Kateros K, Tsoutsos D. Flap
reconstruction of the knee: a review of current concepts and a proposed
algorithm. World J Orthop. 2014 Nov;5(5):603-13.
2. Song M, Zhang Z, Wu Y, Ma K, Lu M. Primary tumors of the patella.
World J Surg Onc. 2015 Abr;13:163.
3. Bapista AM, Sargentini SC, Zumárraga JP, Camargo AF, Camargo
OP. Tumores da patela: a experiência do instituto de ortopedia e
traumatologia da Universidade de São Paulo. Acta Ortopéd Bras.
2016;24(3):151-4.
4. Bharathi RR, Ramkumar S, Venkatramani H. Soft tissue coverage for
defects around the knee joint. Indian J Plast Surg. 2019
Jan;52(1):125-33.
5. Demirseren ME, Efendioglu K, Demiralp CO, Kilicarslan K, Akkaya H.
Clinical experience with a reverse-flow anterolateral thigh perforator flap for
the reconstruction of soft-tissue defects of the knee and proximal lower leg. J
Plast Reconstr Aesthet Surg. 2011 Dez;64(12):1613-20.
6. Zhang G, et al. Reversed anterolateral thigh island flap and
myocutaneous flap transplantation. Zhonghua Yi Xue Za Zhi. 1990
Dez;70(2):676-8.
7. Guataçara Junior SS, Freitas RS, Novais JR, Maschio AG, Paula
DR, Marcante RFR, et al. Retalho anterolateral da coxa reverso: uma
opção de reconstrução para os membros inferiores.
Rev Bras Cir Plást. 2018;33(4):493-500.
8. Pan SC, Yu JC, Shieh SJ, Lee JW, Huang BM, Chiu HY. Distally based
anterolateral thigh flap: an anatomic and clinical study. Plast Reconstr Surg.
2004 Dez;114(7):1768-75.
1. Hospital das Clínicas da Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
2. Hospital do Câncer de Pernambuco,
Recife, PE, Brasil.
Autor correspondente: Fábio Santiago
de Macedo, Rua Hermogenes de Morais, 252, Apt 2901 - Madalena, Recife
- PE, Brasil, CEP 50610-160, E-mail:
fsdemacedo@gmail.com
Artigo submetido: 08/06/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.
Instituição: Hospital do Câncer de Pernambuco, Recife,
PE, Brasil