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Original Article - Year2021 - Volume36 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2021RBCP0127

RESUMO

Introdução: A pandemia da COVID-19 foi responsável pelo aumento dos índices de isolamento social, resultando na diminuição de acidentes de trânsito. Traumas em geral estão entre os problemas de saúde pública mais importantes em todo o mundo. O objetivo deste trabalho é avaliar o impacto do isolamento social na cidade de São Paulo durante a pandemia da COVID-19 nos atendimentos de pacientes com ferimentos descolantes.
Métodos: Estudo observacional, retrospectivo e descritivo. Foram revisados todos os prontuários de pacientes atendidos no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), pelo Grupo de Feridas Complexas do Serviço de Cirurgia Plástica, admitidos por ferimentos descolantes e submetidos a procedimento cirúrgico, no período de abril a junho dos anos de 2019 e 2020.
Resultados: Foram incluídos 20 pacientes com ferimentos descolantes em membros inferiores. Em 2019, foram atendidos 14 pacientes, com idade média de 47 anos, sendo 7 vítimas de acidente de trânsito, 5 de atropelamento, 1 de esmagamento e 1 de queda da própria altura. Em 2020, durante a pandemia, foram atendidos 6 pacientes com ferimento descolante, com idade média de 36,16 anos, sendo que 5 foram vítimas de acidentes com motocicletas e 1 de atropelamento. Nenhum paciente apresentou COVID-19.
Conclusão: Durante o isolamento social houve redução numérica nos atendimentos de traumas descolantes no período de quarentena.

Palavras-chave: Infecções por coronavírus; Extremidade inferior; Autoenxertos; Cirurgia plástica; Acidentes de trânsito.

ABSTRACT

Introduction: The COVID-19 pandemic was responsible for increasing social isolation rates, resulting in a reduction in traffic accidents. Trauma, in general, is among the most important public health problems worldwide. This study aims to evaluate the impact of social isolation in the city of São Paulo during the COVID-19 pandemic on the care of patients with detaching wounds.
Methods: Observational, retrospective and descriptive study. All medical records of patients treated at the Emergency Room of the Hospital das Clínicas of the Faculty of Medicine of the University of São Paulo (HCFMUSP), by the Complex Wounds Group of the Plastic Surgery Service, admitted for detaching wounds and undergoing surgical procedures, were reviewed, from April to June of the years 2019 and 2020.
Results: Twenty patients with detaching injuries on the lower limbs were included. In 2019, 14 patients were seen, with a mean age of 47 years, 7 of which were victims of traffic accidents, 5 of being run over, 1 of crushing and 1 of falling from standing height. In 2020, 6 patients were treated with detaching wounds during the pandemic, with a mean age of 36.16 years, 5 of which were victims of motorcycle accidents and 1 of being run over. No patient had COVID-19.
Conclusion: During social isolation, there was a numerical reduction in care for detaching trauma during the quarantine period.

Keywords: Coronavirus infections; Lower limb; Autografts; Plastic surgery; Traffic-accidents.


INTRODUÇÃO

A doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19), tem causado impacto mundial, principalmente na área da saúde. Identificado pela primeira vez na China em 31 de dezembro de 20191, devido à sua alta taxa de transmissibilidade associada às características do mundo globalizado, apresentou aumento exponencial no número de pessoas e países afetados. Em 11 de março de 2020, com mais de 118.000 casos reportados em 114 países e 4291 óbitos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a COVID-19 como pandemia2.

O primeiro caso da COVID-19 no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo/SP3. A partir de então, devido ao acelerado crescimento das taxas no estado e em todo o país, após 27 dias do caso índice, o governo do estado de São Paulo decretou período de quarentena em todos os 645 municípios. Neste cenário, apenas os serviços essenciais nas áreas de saúde pública, alimentação, abastecimento, segurança e limpeza permaneceram funcionando, resguardando os devidos cuidados e medidas de proteção4.

A partir de 24 de março, os índices de isolamento social na cidade e no estado de São Paulo mantiveram-se elevados (variando entre 46-59%), quando comparados aos níveis anteriores ao decreto de pandemia (25-28%)5. Estes índices comprovaram relação direta com a diminuição do número de acidentes de trânsito, conforme levantamento do programa Respeito à Vida, do Governo do Estado de São Paulo6.

Os acidentes de trânsito são responsáveis por cerca de um em cada quatro vítimas de trauma. Traumas em geral estão entre os problemas de saúde pública mais importantes em todo o mundo, sendo a principal causa de morte entre crianças e adultos jovens. Além disso, podem ocasionar lesões não fatais, incapacitantes e com perda de capacidade laboral7. Nesse contexto, as feridas traumáticas têm significativa relevância em atendimentos de emergência. Podem variar de pequenas abrasões a extensos ferimentos com perda de tecido, podendo ou não estar associadas a lesões em estruturas subjacentes, como ossos ou órgãos8.

No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), o Grupo de Feridas Complexas, ligado ao Serviço de Cirurgia Plástica, é responsável pelo atendimento conjunto com a cirurgia do trauma de feridas traumáticas no pronto-socorro. São atendidos, principalmente pacientes vítimas de feridas complexas, com perda de cobertura cutânea, incluindo ferimentos descolantes. Estes são geralmente caracterizados como lesões graves, resultantes de uma força tangencial contra a superfície cutânea, que levam à separação da pele e do tecido celular subcutâneo dos tecidos profundos, como fáscia e músculo. A circulação vascular geralmente está comprometida, visto que a pele e tecido celular subcutâneo estão conectados de forma tênue9. Esses pacientes demandam desde procedimentos simples, como desbridamentos e enxertos de pele, até mais complexos, como retalhos locais e microcirúrgicos10.

OBJETIVO

O objetivo deste estudo é avaliar o impacto do isolamento social na cidade de São Paulo durante a pandemia de COVID-19 nos atendimentos de pacientes com ferimentos descolantes de membros inferiores tratados cirurgicamente pelo grupo de feridas complexas da disciplina de cirurgia plástica do HC-FMUSP, no período inicial de quarentena em 2020, e comparar com os atendimentos no mesmo período do ano anterior.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo observacional, retrospectivo e descritivo. Foram revisados todos os prontuários de pacientes atendidos no pronto-socorro do HC- FMUSP, pelo grupo de feridas complexas do serviço de cirurgia plástica, que foram admitidos por ferimentos descolantes e submetidos a procedimento cirúrgico, no período de abril a junho dos anos de 2019 e 2020.

As seguintes variáveis foram analisadas: dados epidemiológicos, diagnóstico, antecedentes pessoais, etiologia do trauma, ferimento, localização, área da ferida, índice MESS (mangled extremity severity score), tratamento, tempo de hospitalização e complicações. Os dados foram analisados através de estatística descritiva.

As áreas dos ferimentos foram estimadas com base em registros fotográficos com escala, utilizando o software ImageJ11. O índice MESS foi utilizado para estratificar a gravidade das lesões de extremidades12.

O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob o número de protocolo 35085020.8.0000.0068.

RESULTADOS

Foram incluídos 14 pacientes vítimas de ferimentos descolantes em extremidades inferiores, atendidos no período de abril a junho de 2019, e 6 pacientes no mesmo período de 2020, representados no Figura 1. Os resultados estão sumarizados na Tabela 1.

Em relação ao período de 2019, foram atendidos 8 pacientes do sexo masculino e 6 pacientes do sexo feminino, com idade média de 47 anos (mínima 21, máxima de 88 anos). Em relação ao mecanismo do trauma, 7 foram vítimas de acidente de trânsito, 5 de atropelamento, 1 esmagamento e 1 queda da própria altura, sendo que 4 pacientes apresentaram trauma exclusivo do membro acometido e 9 com traumas associados (politraumatismo). A localização do trauma foi a de membros inferiores na totalidade da amostra. Os ferimentos apresentaram área média de 260,756 cm2 (25,335-514,531cm2). O índice MESS médio foi 5,36. Sobre o atendimento destes pacientes, em todos os casos foi utilizada terapia por pressão negativa, seguida de enxertia. Cobertura complementar com retalhos foi necessária em 42,86%. O número médio de cirurgias para resolução da ferida foi de 3,4 por paciente. No seguimento, 9 pacientes não apresentaram complicações relacionadas ao ferimento, 1 apresentou perda parcial do enxerto, 1 perda total do enxerto, 1 hematoma e 2 deiscência de ferida operatória. Não houve registro de infecção de ferida operatória. O período médio de internação hospitalar foi de 30,86 dias (mínimo de 5 e máximo de 98 dias). Quatro pacientes evoluíram para óbito por intercorrências clínicas (2 por acidente vascular cerebral isquêmico, 1 por broncoaspiração maciça e 1 por choque séptico de corrente sanguínea).

Figura 1 - Número de atendimentos de pacientes com ferimentos descolantes nos meses de abril a junho, em 2019 e 2020.

Em 2020, durante a pandemia, foram atendidos 6 pacientes com ferimento descolante. A idade média foi de 36,16 anos (mínima de 23 e máxima de 60), sendo 4 pacientes do sexo masculino e 2 do sexo feminino. Sobre o mecanismo do trauma, 5 foram vítimas de acidentes com motocicleta e 1 de atropelamento. Politraumatismos estavam presentes em 2 pacientes. Membros inferiores foram acometidos em todos os casos. Os ferimentos apresentaram área média de 428,493cm2 (54,070-1.005,174cm2). O índice MESS médio foi 5,8. Em relação ao tratamento, 5 utilizaram a terapia por pressão negativa, 5 foram submetidos à enxertia de pele. Retalho foi necessário em um caso. No seguimento, nenhum apresentou complicações relacionadas à ferida operatória. O tempo médio de internação foi de 18,33 dias (mínimo 3 e máximo 33 dias), e nenhum paciente foi a óbito. Nenhum paciente apresentou manifestação clínica da COVID-19, sendo que 5 coletaram swab (PCR) para coronavírus, todos negativos.

DISCUSSÃO

O Brasil é um dos países mais acometidos pela pandemia de COVID-19, e a cidade de São Paulo é o centro com maior número de casos no país3. Diante da nova demanda de tratamento a pacientes com síndrome respiratória aguda, é esperado que procedimentos cirúrgicos oncológicos e de urgência sejam priorizados.

Durante a primeira onda de COVID-19, o HC-FMUSP foi adaptado para receber a alta demanda de pacientes com síndrome respiratória aguda. Desse modo, foram reduzidas as atividades ambulatoriais e procedimentos cirúrgicos eletivos. O serviço de cirurgia plástica passou a atuar majoritariamente em casos de urgência e emergência, como no atendimento a trauma complexo de partes moles.

Os ferimentos descolantes apresentam alta prevalência dentre as feridas traumáticas complexas atendidas em pronto-socorro. Em um trabalho publicado anteriormente por nosso serviço, de um total de 178 pacientes atendidos entre janeiro de 2010 e dezembro de 2011, 83 (46,6%) apresentaram ferimentos descolantes. Esse tipo de lesão representa um desafio para manejo inicial e tratamento, visto que geralmente são de grandes dimensões, com extensos defeitos de cobertura cutânea, apresentam exposição de estruturas profundas e estão frequentemente associados a traumas em outros órgãos13.

O protocolo de atendimento dos ferimentos descolantes utilizado em nosso serviço divide os pacientes inicialmente em dois grupos: instáveis e estáveis. São incluídos no primeiro grupo pacientes com traumas graves, múltiplos, que necessitaram transfusões múltiplas, ou apresentam hipotermia e instabilidade hemodinâmica. Neste grupo, o tratamento consiste em ressecção do tecido descolado e realização de curativo oclusivo na extremidade (incluindo terapia por pressão negativa), para que a equipe do trauma possa realizar os procedimentos necessários. Paralelamente, é realizado, em mesa auxiliar, o preparo da peça ressecada para adelgaçamento do tecido e armazenamento em banco de tecidos na forma de enxerto de pele. Após estabilidade clínica (24-72 horas), realiza-se a enxertia de pele autógena conservada no banco de tecidos por até 14 dias. Em pacientes estáveis, avalia-se inicialmente o retalho avulsionado. Se viável, após cuidados de limpeza com soro fisiológico sob pressão e desbridamento do leito da ferida e dos bordos do retalho, é reposicionado e suturado. Se inviável, após limpeza, o tecido é ressecado e submetido à retirada do enxerto, que será posicionado sobre o leito e aplicado a terapia por pressão negativa14.

Tabela 1 - Resultados.
2019 2020
Sexo Número de pacientes Porcentagem (%) Número de pacientes Porcentagem (%)
Masculino
Feminino
8
6
57,14
42,86
4
2
66,67
33,33
Idade
<20 anos
20 - 30 anos
30 - 40 anos
40 - 50 anos
40 - 50 anos
>60 anos
0
4
2
2
2
4
-
28,56
14,29
14,29
14,29
28,56
0
3
1
1
1
0
-
50,00
16,67
16,67
16,67
-
Idade média 47,2 anos Idade média 36,2 anos
Antecedentes pessoais
Sem comorbidades
1 comorbidade
2 comorbidades
3 ou mais comorbidades
Desconhecido
7
1
2
2
2
50,00
7,14
14,28
14,28
14,28
5
1
-
-
-
83,33
16,67
-
-
-
Etiologia
Acidente automobilístico 12 85,72 6 100
Moto x anteparo
Moto x automóvel
Moto x caminhão
Atropelamento
Queda de moto
Automóvel x caminhão
Esmagamento
Queda da própria altura
-
3
2
6
-
1
1
1
-
21,43
14,29
42,86
-
7,14
7,14
7,14
-
1
3
1
1
-
-
-
-
16,67
50,00
16,67
16,67
-
-
-
Politraumatismo
Sim
Não
9
5
64,29
35,71
2
4
33,33
66,67
Localização
Membros inferiores 14 100 6 100
Detalhes das cirurgias
VAC
Enxerto
Retalho
13
14
6
92,86
100
42,86
4
4
1
100,00
100,00
25,00
Complicações
Sim
Perda parcial do enxerto
Perda total do enxerto
Deiscência
Hematoma
Outras
Não
Óbitos
5
1
1
1
2
0
9
4
35,71
7,14
7,14
7,14
14,29
0
64,29
28,67
1
0
0
0
0
1
3
0
16,67
0
0
0
0
16,67
83,34
0
COVID
Positivo
Negativo
-
-
-
-
0
6
0
100
Outras informações Mínima / Máxima Média Mínima / Máxima Média
Número de cirurgias
Tempo de internação (dias)
2 / 6
5 / 98
3,14
30,86
2 / 2
3 / 33
2
16,5
Área (em cm2) 25,335 / 514,531* 260,756* 54,070 / 1.005,174 428,493
Índice MESS 2 / 9 5,36 2 / 6 5,8

* Área calculada com base na disponibilidade de registros fotográficos com escala (9/14 pacientes).

Tabela 1 - Resultados.

O grupo de feridas complexas do serviço de cirurgia plástica do HC-FMUSP possui considerável experiência com o atendimento de lesões descolantes. Como citado anteriormente, foram atendidos mais de 80 casos nos anos de 2010 e 2011 em nosso serviço13. Acidentes automobilísticos e atropelamentos são os principais mecanismos desse tipo de ferimento. Devido à restrição na circulação de pessoas imposta pelo Governo do Estado de São Paulo durante a quarentena, com consequente redução no tráfego de veículos, espera-se redução na incidência dos traumas complexos de partes moles.

Comparando os períodos analisados, observou-se uma redução numérica dos atendimentos durante a pandemia. Conforme dados do “Infosiga SP”, sistema de dados do Governo do Estado de São Paulo gerenciado pelo programa “Respeito à Vida”, o Estado apresentou forte redução nos índices de acidentes e fatalidade de trânsito. Em maio de 2020, foram registrados 387 óbitos, contra 487 em 2019 - redução de 20,5%15. Um levantamento do programa comprovou a relação direta entre índices de isolamento social e o número de acidentes de trânsito (Figura 2). As estatísticas de 104 cidades entre os dias 24 de março de 2020, início da quarentena, e 30 de abril de 2020, acompanhadas pelo “Sistema de Monitoramento Inteligente”, apresentaram redução de 41% nas ocorrências em vias urbanas e rodovias. Isso representou 6,8 mil acidentes a menos com vítimas feridas ou fatais. Essa redução ajudou a aumentar a capacidade de atendimento na rede de saúde à COVID-19, visto que acidentes de trânsito demandam atendimentos de emergência e leitos hospitalares, tão necessários na época de pandemia16.

Observou-se redução na idade média dos pacientes atendidos no período da quarentena, quando comparados aos dados pré-pandemia (47 anos versus 36,1 anos). Em abril de 2020, os dados do “Infosiga SP” chamaram atenção para a redução de vítimas fatais no trânsito com mais de 60 anos e crianças e adolescentes com até 17 anos de idade. Houve queda de 46,5% na fatalidade entre idosos (49 casos neste ano, contra 97 em 2019) e de 90% entre jovens (10 versus 19 vítimas)6. É provável que esta mudança esteja relacionada à maior reclusão social entre indivíduos idosos, visto que essa população está mais suscetível às complicações da doença. Houve ainda discreta redução na incidência de lesões complexas em membros em mulheres, comparativamente aos homens (4 homens: 3 mulheres pré-pandemia; 4 homens: 2 mulheres pós-pandemia).

Não houve mudança na localização das lesões. Todos os traumas ocorreram em membros inferiores, com elevada gravidade, quando se analisa a área média dos ferimentos (>250 cm2) e o índice MESS (5,36 em 2019 x 5,8 em 2020). Em 2019, 14,28% dos traumas não foram associados a acidentes automobilísticos (1 lesão por esmagamento; 1 queda da própria altura). Em 2020, por outro lado, todos os casos foram resultantes de acidentes de trânsito. Ainda sobre a etiologia, em 2019, 42,85% dos traumas envolveram motociclistas. Comparativamente, em 2020, esse número foi de 83,33%. Conforme a análise do programa já citado, em maio de 2020 houve queda nas fatalidades em todos as categorias de meio de transporte quando comparadas ao mesmo período do ano anterior (Figura 3), com exceção dos motociclistas. Foram 179 acidentes fatais em 2020 em comparação a 167 em 2019 (aumento de 7,2%)15. Devido ao fechamento de estabelecimentos físicos e interrupção do atendimento presencial, observou-se um aumento significativo na demanda de serviços de entrega. Outro fator associado foi a maior circulação de motociclistas inexperientes, recém-contratados para os serviços de entrega.

Os tratamentos dos ferimentos descolantes foram semelhantes em ambos os períodos, conforme protocolo institucional. Em 100% dos pacientes atendidos em 2020, e 92,86%, em 2019, a terapia por pressão negativa foi utilizada. A totalidade dos pacientes também foi submetida à enxertia cutânea no tratamento da ferida (isolada ou associada a outras técnicas). Retalho foi necessário em 6 casos (42,86%) em 2019 e em 1 (25,0%) em 2020.

Diante do cenário de pandemia, recomendações para atendimentos de pacientes cirúrgicos foram instituídas. Procedimentos eletivos foram suspensos durante o período para priorizar os cuidados de pacientes com a COVID-19. Entretanto, abordagens de emergência não podem ser postergadas. Para adequado atendimento, protocolos de segurança devem ser adotados. À admissão, recomenda-se máscaras faciais para todos os pacientes. Equipamentos de proteção individual para transmissão respiratória e por contato (gorro, óculos de proteção, máscara N95 ou similar, “face shield”, avental impermeável e luvas descartáveis) devem ser utilizados por todos os profissionais17.

No bloco cirúrgico, precauções semelhantes devem ser mantidas, considerando todo paciente como potencial infectado pelo coronavírus. A equipe deve ser reduzida, mantendo em sala apenas os colaboradores essenciais, assim como os materiais indispensáveis para o procedimento. A abordagem deve ser a mais breve possível, minimizando o tempo de exposição dos profissionais ao possível contato17. O ato anestésico também deve adotar novas medidas de segurança18. Em nossa casuística, o atendimento de todos os pacientes seguiu o protocolo institucional, ainda que nenhum caso de COVID-19 tenha sido confirmado durante o período de internação hospitalar.

Figura 2 - Índice de isolamento social e número de acidentes de trânsito no Estado de São Paulo em março e abril de 2020. (Fonte: Programa Respeito à Vida, Governo do Estado de São Paulo, 26 de maio de 2020).
Gráfico 3 - Acidentes de trânsito no Estado de São Paulo em março e abril de 2019 e 2020. (Fonte: Programa Respeito à Vida, Governo do Estado de São Paulo, 26 de maio de 2020).

Observou-se taxa global de complicações relacionadas ao ato operatório de 35,71% em 2019 e 25% em 2020. No ano anterior, houve perda parcial de enxerto em 1 paciente, perda total de enxerto em 1, deiscência da ferida operatória em 1 e hematoma em 2. Em 2020, registrou-se 1 obstrução de enxerto vascular, resultando na inviabilidade e amputação do membro acometido. Em nenhum dos períodos analisados houve registro de infecção de ferida operatória. Os desfechos dos atendimentos de 2019 foram 4 (28,57%) óbitos e 10 (71,43%) altas hospitalares, com a média de tempo de internação de 30,84 dias. Já em 2020, 4 pacientes receberam alta após uma média de 16,5 dias de internação. Apesar da mobilização do HC-FMUSP para o tratamento preferencial de COVID-19 durante a pandemia, traumas graves continuaram sendo referenciados ao serviço para assistência especializada, sem prejuízo ao atendimento de ferimentos descolantes.

CONCLUSÃO

Durante o isolamento social, decretado em consequência à pandemia da COVID- 19, observou-se diminuição dos acidentes mobilísticos e redução numérica na incidência de ferimentos descolantes. Ainda assim, o atendimento de urgência e emergência por grupo especializado no tratamento de feridas complexas segue relevante, sempre com a adoção das medidas de segurança recomendadas no cenário atual.

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1. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

COLABORAÇÕES

GMC Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.

DAM Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Supervisão.

DNB Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Conceitualização, Redação - Preparação do original.

RDAR Análise e/ou interpretação dos dados, Redação - Preparação do original.

LA Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto.

GGRM Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto.

RG Aprovação final do manuscrito, Gerenciamento do Projeto.

Autor correspondente: Gustavo Moreira Clivatti, Rua Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, nº 255, 8° andar, Cerqueira César, São Paulo, SP Brasil, CEP 05403-000, E-mail: clivatti@gmail.com

Artigo submetido: 26/02/2021.
Artigo aceito: 18/05/2021.

Conflitos de interesse: não há.

Instituição: Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

 

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