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Case Report - Year2021 - Volume36 - Issue 3

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2021RBCP0025

RESUMO

Introdução: O escalpelamento é caracterizado pelo trauma em região do couro cabeludo, que pode ser classificado como parcial ou total. O trauma por escalpelamento é extremamente mutilante e estigmatizante, principalmente quando expõe o osso sem periósteo, que pode levar a quadro de osteomielite crônica e erosão de tábua externa. Quando há lesões extensas de couro cabeludo acima de 200cm² e com lesão de periósteo é necessária grande quantidade de tecido com retalho microcirúrgico, que não está disponível em todos os centros. O objetivo deste trabalho é relatar caso de paciente de 69 anos, feminina, que sofreu trauma por avulsão total de couro cabeludo de grande extensão de 550cm² com exposição de calota craniana sem periósteo e inviabilização total do escalpe após mordida de cachorro. Devido à inviabilização total do escalpe avulsionado, optou-se pelo transplante de retalho livre de músculo grande dorsal com anastomose microvascular do pedículo toracodorsal com os vasos temporais superficiais. O retalho evoluiu com boa perfusão e na área cruenta foi realizado enxertia parcial.
Métodos: Análise retrospectiva de prontuário da paciente em questão. O presente trabalho segue os padrões de declaração de Helsinque e aprovação do comitê de ética e pesquisa.
Conclusão: O retalho livre de músculo grande dorsal mostrou-se eficaz neste caso de reconstrução de lesão extensa do couro cabeludo (550cm²) com lesão parcial de periósteo devido ao escalpelamento. O retalho recuperou a forma do crânio e a função de proteção da calota craniana.

Palavras-chave: Cirurgia plástica; Microcirurgia; Couro cabeludo; Retalho miocutâneo; Ferimentos e lesões

ABSTRACT

Introduction: Scalping is characterized by trauma in the scalp region, which can be classified as partial or total. Scalping trauma is extremely mutilating and stigmatizing, especially when exposing the bone without periosteum, leading to chronic osteomyelitis and external table erosion. When there are extensive scalp lesions above 200cm2, and with periosteum, the lesion is required a large amount of tissue with microsurgical flap, which is not available in all centers. This work aims to report a case of a 69-year-old female patient who suffered trauma due to total avulsion of a big scalp of 550cm2 with exposure of a skull cap without periosteum and total unviability of the scalp after a dog bite. Due to the total unviability of the avulsed scalp, we opted to transplant a large dorsal muscle free flap with microvascular anastomosis of the thoracodorsal pedicle with the superficial temporal vessels. The flap evolved with good perfusion, and partial grafting was performed in the bloody area.
Methods: Retrospective analysis of the medical records of the patient in question. This paper follows the Declaration of Helsinki's standards and the approval of the Ethics and Research Committee.
Conclusion: The free flap of the large dorsal muscle proved effective in this case of reconstruction of the scalp's extensive lesion (550cm2) with partial periosteum lesion due to scalping. The flap recovered the shape of the skull and the protective function of the skull cap.

Keywords: Plastic surgery; Microsurgery; Scalp; Myocutaneous flap; Injuries and injuries.


INTRODUÇÃO

A presença de defeitos extensos em couro cabeludo apresenta-se como um grande desafio reconstrutor para o cirurgião plástico1,2. Estes defeitos têm vasta etiologia como: traumática, queimaduras térmicas ou elétricas, ressecções tumorais benignas e malignas ou congênitas, sequelas de tratamentos radioterápicos e infecções. As deformidades podem variar de pequenos defeitos, que podem ser fechados primariamente, a defeitos extensos, que requerem a expansão tecidual ou até a transferência de retalho livre para o seu fechamento.

O escalpelamento é o trauma causado por avulsão parcial ou total do couro cabeludo, decorrente de mordeduras caninas, acidentes com maquinário industrial e motores de barco3,4.

O acidente impõe sequelas físicas e vivência de intenso sofrimento psíquico e social durante todo o tratamento e no decorrer da vida dos pacientes, já que acarreta danos significativos à autoestima, à identidade, à percepção corporal, ao humor, à sociabilidade e às relações afetivas globais, além de contribuir para alterar a dinâmica e a economia familiar5.

As lesões mais graves são causadas pela queimadura elétrica5,6. A tábua óssea frequentemente fica prejudicada nestas lesões, podendo levar à necrose de uma ou de ambas tábuas da calvária7-10. O escalpelamento causado pela mordedura canina ou por algum tipo de maquinário industrial costuma preservar a tábua óssea externa, porém, na maioria dos casos, compromete o periósteo11. Defeitos extensos e complexos envolvendo estruturas vitais expostas não são passíveis de reparo por técnicas locais ou regionais. Nesses casos difíceis, a transferência tecidual livre constitui a melhor solução para a cobertura. Já foram descritas taxas de sobrevida dos retalhos acima de 95% com baixas taxas de complicações1.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de reconstrução microcirúrgica com retalho livre de músculo grande dorsal devido ao escalpelamento total por mordida de cachorro em paciente do sexo feminino de 69 anos.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, branca, 69 anos de idade, hipertensa, vítima de escalpelamento por mordida de cachorro, em 03/12/2018, em que o tecido do couro cabeludo foi totalmente desvitalizado com perda da anatomia tecidual. Encaminhada para a Santa Casa de Limeira, quando foi realizado o desbridamento de tecidos desvitalizados sob anestesia geral e posteriormente transferida para o hospital da PUC-Campinas para avaliação e conduta da cirurgia plástica.

Ao exame físico a paciente apresentava lesão por escalpelamento extensa de couro cabeludo com área de 550cm² (frontooccipital: 25cm e biparietal: 22cm), com exposição de calota craniana com 50% da área do periósteo comprometido em região parietal central (Figura 1). No dia 11/12/2018 foi então realizado o transplante de retalho musculocutâneo do grande dorsal direito com anastomose microvascular término-terminal entre a artéria temporal superficial direita e a artéria toracodorsal e, posteriormente, foi então realizado a microanastomose término-terminal entre a veia temporal superficial direita e a veia toracodorsal com boa perfusão tecidual do retalho. Antes da microanastomose vascular tanto os vasos do pedículo quanto os vasos receptores foram lavados com 20ml de solução de soro fisiológico 0,9% (250ml) com heparina não fracionada (2,5ml). Ambas as anastomoses vasculares foram do tipo término-terminal e confeccionadas com pontos simples de fio de nylon 10.0 (Ethicon W.2850). A veia temporal ofereceu maior dificuldade técnica, pois estava mais curta devido ao trauma. No período pós-operatório a paciente usou clexane 20mg subcutâneo uma vez ao dia por três dias e ácido acetilsalicílico 200mg via oral uma vez ao dia por 30 dias.

Figura 1 - Pré-operatório: Escalpelamento extenso com área de 550cm² e lesão de periósteo

Concomitante à fixação da porção muscular do retalho grande dorsal nas bordas do couro cabeludo residual foi obtido enxerto de pele parcial da coxa esquerda com faca de Blair para enxertia no leito muscular do retalho, junto ao fechamento simultâneo da área doadora do retalho grande dorsal direito, que ocorreu com vários pontos de adesão de Vicryl 2.0 e dreno tubular de sucção número 4.8. A cirurgia teve tempo total de duração de 6 horas e 35 minutos. Paciente evoluiu bem no pós-operatório e sem complicações, ficando internada na UTI por 2 dias, para monitorização hemodinâmica rigorosa, e mais 3 dias na enfermaria. Após 1 mês de cirurgia foram documentadas as primeiras fotos (Figura 2).

Figura 2 - Pós-operatório 1 mês

Após o período de 6 meses a paciente foi submetida a uma nova cirurgia sob anestesia geral para o emagrecimento do retalho, proporcionando então melhor contorno estético do retalho no couro cabeludo (Figuras 3 e 4).

Figura 3 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho

Figura 4 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho

A metodologia vigente foi a análise retrospectiva de prontuário da paciente em questão. O presente trabalho segue os padrões de declaração de Helsinque e a aprovação do comitê de ética e pesquisa sob o número 2486.

DISCUSSÃO

Neste relato de caso em questão, a paciente apresentou perda extensa de couro cabeludo (550cm²) com lesão parcial do periósteo na porção parietal central, impossibilitando desta maneira a confecção de enxertia sobre calota craniana e retalhos locais. A calota craniana exposta sem periósteo, mesmo com curativos diários, é fonte comum de osteomielite crônica e erosão da tábua externa, fazendo-se necessária a cobertura da ferida com retalho muscular para levar perfusão a esta área previamente desvitalizada. O retalho muscular leva a vantagem em relação ao retalho cutâneo devido a sua maior densidade capilar. E o músculo com pedículo paralelo ao seu eixo é preferível em relação ao retalho perfurante devido ao melhor acomodamento de seus vasos contra a calota craniana1-13.

Como neste caso, grandes avulsões e avulsões totais do couro cabeludo, sem dúvida os melhores resultados são alcançados através do reimplante microcirúrgico imediato. Para os reimplantes há a necessidade de preservação de, no mínimo, um pedículo vascular principal12. Porém, no presente caso, o couro cabeludo avulsionado da paciente foi totalmente inviabilizado pela mordida do cachorro impossibilitando assim está técnica.

Beasley et al., em 200413, propõem um sistema de estadiamento para a seleção do tipo de retalho a ser utilizado para reconstrução, baseado na etiologia e tamanho do defeito, tratamento prévio e planejamento de tratamento futuro. Para defeitos do couro cabeludo sugerem: os menores que 200cm² podem ser fechados primariamente ou com retalhos locais; para os menores que 200cm² associados a trauma grave, osteomielite ou osteorradionecrose, radiação prévia, retalho local prévio e plano de radioterapia pós-operatória recomendam retalhos musculares livres de reto abdominal ou latíssimo do dorso com enxerto cutâneo; nos de tamanho entre 200-600cm², empregam-se retalhos musculares livres de latíssimo do dorso com enxerto cutâneo; nos maiores de 600cm², deve-se utilizar a associação de dois retalhos musculares livres de latíssimo do dorso com enxerto de pele1-13 .

O músculo latíssimo do dorso associado ao enxerto de pele é atualmente o retalho de escolha para reconstrução do couro cabeludo, cujo reimplante for inviável12. O pedículo vascular toracodorsal mede aproximadamente 8,5cm e o diâmetro arterial mede aproximadamente 2,5mm, perfunde o músculo com dimensões aproximadas de 25x35cm e pode ser dissecado com ilha cutânea de 10x22cm, perfundida por vasos perfurantes, permitindo o fechamento primário da área doadora. Para feridas em couro cabeludo, o comprimento do pedículo toracodorsal permite anastomose tanto nos vasos temporais superficiais como nos vasos cervicais.

O suprimento sanguíneo intermuscular do latíssimo do dorso possibilita que o músculo seja dividido em retalhos musculares distintos para a cobertura de defeitos tridimensionais complexos. Caso seja necessária uma quantidade maior de tecido, o músculo serrátil e o retalho escapular podem ser adicionados ao pedículo vascular1-13. Neste caso, foi utilizado um retalho musculocutâneo, em que a porção cutânea do paciente teve a função de cobertura e monitorização perfusional do retalho e a porção muscular como um excelente leito receptor vascularizado para enxertia parcial.

A região da cabeça e do pescoço tem uma rede vascular bilateral extensa, que está facilmente acessível para a transferência tecidual livre. O vaso receptor preferencial no terço superior da face é a artéria e veia temporal superficial. Caso esse vaso não esteja disponível, podem ser usados ramos mais inferiores do sistema da carótida externa (facial, tireóideo superior e cervical transverso)1,12.

Entre as complicações mais frequentes deste tipo de procedimento estão necrose total ou parcial do retalho, não integração do enxerto cutâneo e seromas na área doadora (músculo grande dorsal). Na série de Ioannides et al., em 199911, em que foram relatados 31 pacientes com defeitos de couro cabeludo tratados com retalhos livres, houve perda de apenas um (3,2%) retalho livre de músculo grande dorsal, devido à congestão venosa, estando dentro dos limites aceitáveis de 6,6% para esta área do corpo relatados por Kroll et al., em 199614. No presente caso houve apenas pequena perda parcial do enxerto de pele, sem complicações maiores.

Foram descritos múltiplos métodos para refinar a reconstrução do couro cabeludo, incluindo a excisão seriada, a transposição de retalhos locais, a expansão tecidual e a realização de microenxertos foliculares em retalhos musculares com enxertos de pele12.

A reconstrução do couro cabeludo com retalho livre de músculo grande dorsal é capaz de reestabelecer a cobertura da calota craniana com perfusão suficiente para nutrir a tábua externa e evitar ou tratar eventual infecção subclínica. A forma também é restituída de maneira satisfatória. A limitação fica por conta da área de alopecia, que pode ser contornada por meio de prótese capilar (“perucas”) ou adornos como lenços. Neste caso o transplante de unidades folículo-pilosas ou expansão tecidual não seriam boas opções visto que a área residual com cabelo é muito escassa e a maior parte do retalho ficou composta por músculo com enxerto de pele e áreas de cicatriz.

Como a paciente encontra-se satisfeita, usando lenços e prótese capilar, não foi proposto mais nenhum complemento cirúrgico no momento. A paciente que é cabelereira de profissão, passou pelo trauma da avulsão do couro cabeludo e refere ter reencontrado sua autoestima após a cirurgia plástica reconstrutiva.

CONCLUSÃO

O retalho livre de músculo grande dorsal mostrou-se eficaz neste caso de reconstrução de lesão extensa do couro cabeludo com 550cm² e lesão parcial de periósteo devido ao escalpelamento. O retalho recuperou a forma do crânio e a função de proteção da calota craniana.

REFERÊNCIAS

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1. Serviço de Cirurgia Plástica Prof. Dr. Ricardo Baroudi, Cirurgia Plástica, Campinas, SP, Brasil.
2 . Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), Campinas, SP, Brasil.

Instituição: Serviço de Cirurgia Plástica Prof. Dr. Ricardo Baroudi, Campinas, SP, Brasil.

COLABORAÇÕES

DNK Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Aprovação final do manuscrito, Aquisição de financiamento, Coleta de Dados, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Realização das operações e/ ou experimentos, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação

ACN Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Visualização

GDN Análise estatística, Conceitualização, Investigação, Metodologia

FGM Investigação, Supervisão, Visualização

JP Supervisão

JGS Supervisão

JCMF Realização das operações e/ou experimentos

RPG Investigação, Supervisão, Visualização

Autor correspondente: Daniel Nowicki Kaam Avenida Benjamin Constant, 1971, Apt 1603, Cambuí, Campinas, SP, Brasil. CEP: 13025-005 E-mail: danielnkaam@gmail.com

Artigo submetido: 03/07/2020.
Artigo aceito: 23/07/2020.

Conflitos de interesse: não há.

 

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