INTRODUÇÃO
A presença de defeitos extensos em couro cabeludo apresenta-se como um grande desafio
reconstrutor para o cirurgião plástico1,2. Estes defeitos têm vasta etiologia como: traumática, queimaduras térmicas ou elétricas,
ressecções tumorais benignas e malignas ou congênitas, sequelas de tratamentos radioterápicos
e infecções. As deformidades podem variar de pequenos defeitos, que podem ser fechados
primariamente, a defeitos extensos, que requerem a expansão tecidual ou até a transferência
de retalho livre para o seu fechamento.
O escalpelamento é o trauma causado por avulsão parcial ou total do couro cabeludo,
decorrente de mordeduras caninas, acidentes com maquinário industrial e motores de
barco3,4.
O acidente impõe sequelas físicas e vivência de intenso sofrimento psíquico e social
durante todo o tratamento e no decorrer da vida dos pacientes, já que acarreta danos
significativos à autoestima, à identidade, à percepção corporal, ao humor, à sociabilidade
e às relações afetivas globais, além de contribuir para alterar a dinâmica e a economia
familiar5.
As lesões mais graves são causadas pela queimadura elétrica5,6. A tábua óssea frequentemente fica prejudicada nestas lesões, podendo levar à necrose
de uma ou de ambas tábuas da calvária7-10. O escalpelamento causado pela mordedura canina ou por algum tipo de maquinário industrial
costuma preservar a tábua óssea externa, porém, na maioria dos casos, compromete o
periósteo11. Defeitos extensos e complexos envolvendo estruturas vitais expostas não são passíveis
de reparo por técnicas locais ou regionais. Nesses casos difíceis, a transferência
tecidual livre constitui a melhor solução para a cobertura. Já foram descritas taxas
de sobrevida dos retalhos acima de 95% com baixas taxas de complicações1.
O objetivo deste trabalho é relatar um caso de reconstrução microcirúrgica com retalho
livre de músculo grande dorsal devido ao escalpelamento total por mordida de cachorro
em paciente do sexo feminino de 69 anos.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, branca, 69 anos de idade, hipertensa, vítima de escalpelamento
por mordida de cachorro, em 03/12/2018, em que o tecido do couro cabeludo foi totalmente
desvitalizado com perda da anatomia tecidual. Encaminhada para a Santa Casa de Limeira,
quando foi realizado o desbridamento de tecidos desvitalizados sob anestesia geral
e posteriormente transferida para o hospital da PUC-Campinas para avaliação e conduta
da cirurgia plástica.
Ao exame físico a paciente apresentava lesão por escalpelamento extensa de couro cabeludo
com área de 550cm² (frontooccipital: 25cm e biparietal: 22cm), com exposição de calota
craniana com 50% da área do periósteo comprometido em região parietal central (Figura 1). No dia 11/12/2018 foi então realizado o transplante de retalho musculocutâneo do
grande dorsal direito com anastomose microvascular término-terminal entre a artéria
temporal superficial direita e a artéria toracodorsal e, posteriormente, foi então
realizado a microanastomose término-terminal entre a veia temporal superficial direita
e a veia toracodorsal com boa perfusão tecidual do retalho. Antes da microanastomose
vascular tanto os vasos do pedículo quanto os vasos receptores foram lavados com 20ml
de solução de soro fisiológico 0,9% (250ml) com heparina não fracionada (2,5ml). Ambas
as anastomoses vasculares foram do tipo término-terminal e confeccionadas com pontos
simples de fio de nylon 10.0 (Ethicon W.2850). A veia temporal ofereceu maior dificuldade
técnica, pois estava mais curta devido ao trauma. No período pós-operatório a paciente
usou clexane 20mg subcutâneo uma vez ao dia por três dias e ácido acetilsalicílico
200mg via oral uma vez ao dia por 30 dias.
Figura 1 - Pré-operatório: Escalpelamento extenso com área de 550cm² e lesão de periósteo
Figura 1 - Pré-operatório: Escalpelamento extenso com área de 550cm² e lesão de periósteo
Concomitante à fixação da porção muscular do retalho grande dorsal nas bordas do couro
cabeludo residual foi obtido enxerto de pele parcial da coxa esquerda com faca de
Blair para enxertia no leito muscular do retalho, junto ao fechamento simultâneo da
área doadora do retalho grande dorsal direito, que ocorreu com vários pontos de adesão
de Vicryl 2.0 e dreno tubular de sucção número 4.8. A cirurgia teve tempo total de
duração de 6 horas e 35 minutos. Paciente evoluiu bem no pós-operatório e sem complicações,
ficando internada na UTI por 2 dias, para monitorização hemodinâmica rigorosa, e mais
3 dias na enfermaria. Após 1 mês de cirurgia foram documentadas as primeiras fotos
(Figura 2).
Figura 2 - Pós-operatório 1 mês
Figura 2 - Pós-operatório 1 mês
Após o período de 6 meses a paciente foi submetida a uma nova cirurgia sob anestesia
geral para o emagrecimento do retalho, proporcionando então melhor contorno estético
do retalho no couro cabeludo (Figuras 3 e 4).
Figura 3 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho
Figura 3 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho
Figura 4 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho
Figura 4 - Pós-operatório de 6 meses após emagrecimento do retalho
A metodologia vigente foi a análise retrospectiva de prontuário da paciente em questão.
O presente trabalho segue os padrões de declaração de Helsinque e a aprovação do comitê
de ética e pesquisa sob o número 2486.
DISCUSSÃO
Neste relato de caso em questão, a paciente apresentou perda extensa de couro cabeludo
(550cm²) com lesão parcial do periósteo na porção parietal central, impossibilitando
desta maneira a confecção de enxertia sobre calota craniana e retalhos locais. A calota
craniana exposta sem periósteo, mesmo com curativos diários, é fonte comum de osteomielite
crônica e erosão da tábua externa, fazendo-se necessária a cobertura da ferida com
retalho muscular para levar perfusão a esta área previamente desvitalizada. O retalho
muscular leva a vantagem em relação ao retalho cutâneo devido a sua maior densidade
capilar. E o músculo com pedículo paralelo ao seu eixo é preferível em relação ao
retalho perfurante devido ao melhor acomodamento de seus vasos contra a calota craniana1-13.
Como neste caso, grandes avulsões e avulsões totais do couro cabeludo, sem dúvida
os melhores resultados são alcançados através do reimplante microcirúrgico imediato.
Para os reimplantes há a necessidade de preservação de, no mínimo, um pedículo vascular
principal12. Porém, no presente caso, o couro cabeludo avulsionado da paciente foi totalmente
inviabilizado pela mordida do cachorro impossibilitando assim está técnica.
Beasley et al., em 200413, propõem um sistema de estadiamento para a seleção do tipo de retalho a ser utilizado
para reconstrução, baseado na etiologia e tamanho do defeito, tratamento prévio e
planejamento de tratamento futuro. Para defeitos do couro cabeludo sugerem: os menores
que 200cm² podem ser fechados primariamente ou com retalhos locais; para os menores
que 200cm² associados a trauma grave, osteomielite ou osteorradionecrose, radiação
prévia, retalho local prévio e plano de radioterapia pós-operatória recomendam retalhos
musculares livres de reto abdominal ou latíssimo do dorso com enxerto cutâneo; nos
de tamanho entre 200-600cm², empregam-se retalhos musculares livres de latíssimo do
dorso com enxerto cutâneo; nos maiores de 600cm², deve-se utilizar a associação de
dois retalhos musculares livres de latíssimo do dorso com enxerto de pele1-13 .
O músculo latíssimo do dorso associado ao enxerto de pele é atualmente o retalho de
escolha para reconstrução do couro cabeludo, cujo reimplante for inviável12. O pedículo vascular toracodorsal mede aproximadamente 8,5cm e o diâmetro arterial
mede aproximadamente 2,5mm, perfunde o músculo com dimensões aproximadas de 25x35cm
e pode ser dissecado com ilha cutânea de 10x22cm, perfundida por vasos perfurantes,
permitindo o fechamento primário da área doadora. Para feridas em couro cabeludo,
o comprimento do pedículo toracodorsal permite anastomose tanto nos vasos temporais
superficiais como nos vasos cervicais.
O suprimento sanguíneo intermuscular do latíssimo do dorso possibilita que o músculo
seja dividido em retalhos musculares distintos para a cobertura de defeitos tridimensionais
complexos. Caso seja necessária uma quantidade maior de tecido, o músculo serrátil
e o retalho escapular podem ser adicionados ao pedículo vascular1-13. Neste caso, foi utilizado um retalho musculocutâneo, em que a porção cutânea do
paciente teve a função de cobertura e monitorização perfusional do retalho e a porção
muscular como um excelente leito receptor vascularizado para enxertia parcial.
A região da cabeça e do pescoço tem uma rede vascular bilateral extensa, que está
facilmente acessível para a transferência tecidual livre. O vaso receptor preferencial
no terço superior da face é a artéria e veia temporal superficial. Caso esse vaso
não esteja disponível, podem ser usados ramos mais inferiores do sistema da carótida
externa (facial, tireóideo superior e cervical transverso)1,12.
Entre as complicações mais frequentes deste tipo de procedimento estão necrose total
ou parcial do retalho, não integração do enxerto cutâneo e seromas na área doadora
(músculo grande dorsal). Na série de Ioannides et al., em 199911, em que foram relatados 31 pacientes com defeitos de couro cabeludo tratados com
retalhos livres, houve perda de apenas um (3,2%) retalho livre de músculo grande dorsal,
devido à congestão venosa, estando dentro dos limites aceitáveis de 6,6% para esta
área do corpo relatados por Kroll et al., em 199614. No presente caso houve apenas pequena perda parcial do enxerto de pele, sem complicações
maiores.
Foram descritos múltiplos métodos para refinar a reconstrução do couro cabeludo, incluindo
a excisão seriada, a transposição de retalhos locais, a expansão tecidual e a realização
de microenxertos foliculares em retalhos musculares com enxertos de pele12.
A reconstrução do couro cabeludo com retalho livre de músculo grande dorsal é capaz
de reestabelecer a cobertura da calota craniana com perfusão suficiente para nutrir
a tábua externa e evitar ou tratar eventual infecção subclínica. A forma também é
restituída de maneira satisfatória. A limitação fica por conta da área de alopecia,
que pode ser contornada por meio de prótese capilar (“perucas”) ou adornos como lenços.
Neste caso o transplante de unidades folículo-pilosas ou expansão tecidual não seriam
boas opções visto que a área residual com cabelo é muito escassa e a maior parte do
retalho ficou composta por músculo com enxerto de pele e áreas de cicatriz.
Como a paciente encontra-se satisfeita, usando lenços e prótese capilar, não foi proposto
mais nenhum complemento cirúrgico no momento. A paciente que é cabelereira de profissão,
passou pelo trauma da avulsão do couro cabeludo e refere ter reencontrado sua autoestima
após a cirurgia plástica reconstrutiva.
CONCLUSÃO
O retalho livre de músculo grande dorsal mostrou-se eficaz neste caso de reconstrução
de lesão extensa do couro cabeludo com 550cm² e lesão parcial de periósteo devido
ao escalpelamento. O retalho recuperou a forma do crânio e a função de proteção da
calota craniana.
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1. Serviço de Cirurgia Plástica Prof. Dr. Ricardo Baroudi, Cirurgia Plástica, Campinas,
SP, Brasil.
2 . Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), Campinas, SP, Brasil.
Autor correspondente:
Daniel Nowicki Kaam Avenida Benjamin Constant, 1971, Apt 1603, Cambuí, Campinas, SP, Brasil. CEP: 13025-005
E-mail: danielnkaam@gmail.com
Artigo submetido: 03/07/2020.
Artigo aceito: 23/07/2020.
Conflitos de interesse: não há.