INTRODUÇÃO
Um dos eventos adversos mais frequentes da irradiação são as reações cutâneas, ocorrendo
em até 95% dos pacientes. Sua evolução depende tanto de características relativas
ao tratamento em si quanto de fatores de risco intrínsecos ao paciente1.
A patogênese da radiodermatite envolve lesão direta por radiação e resposta inflamatória
subsequente, afetando elementos celulares na pele. A energia da radiação ionizante
produz danos imediatos nos tecidos através da produção de elétrons secundários e espécies
reativas de oxigênio. Cada fração subsequente de radiação gera maior recrutamento
de células inflamatórias, e o dano à derme interrompe o processo normal de regeneração
cutânea2,3. Dessa forma a pele danificada por radiação tem baixo poder curativo.
Comparados com outras intervenções guiadas fluoroscopicamente, os procedimentos de
cardiologia intervencionista são associados a altas doses de radiação direcionadas
à pele, gerando, portanto, superdosagens em fluoroscopias prolongadas4.
Os efeitos da radiação na pele podem ser classificados em agudos, nos primeiros 6
meses, e tardios, após esse período. Os efeitos agudos ocorrem predominantemente em
tecidos com alto nível de atividade mitótica, e normalmente desaparecem em até 4 semanas.
Já os efeitos tardios são secundários ao comprometimento vascular induzido por radiação
e fibrose estromal. Pode ocorrer hiper/hipopigmentação da pele, fibrose, telangiectasias
e disfunção das glândulas sebáceas e sudoríparas5.
No presente artigo, relatamos um caso atípico de radiodermatite, visando discutir
a abordagem de áreas irradiadas e suas dificuldades de restauração por consequência
da radiação.
RELATO DE CASO
Paciente caucasiano, do sexo masculino, 61 anos, hipertenso, dislipidêmico, obeso,
diabético, portador de hipotireoidismo e tabagista. Histórico de hérnia discal, dois
IAM (infarto agudo do miocárdio) prévios. Atualmente em uso de AAS, clopidogrel, enalapril,
selozok, levotiroxina e atorvastatina. Foi admitido no serviço de cirurgia plástica
do Hospital Monte Sinai de Juiz de Fora/MG para reconstrução torácica devido à lesão
extensa em dorso torácico à direita por radiação fluoroscópica.
Submetido à angioplastia em junho de 2018, colocados quatro stents. Em agosto, notou surgimento de rubor e calor em dorso à direita, topografia coincidente
à ocupada pelo fluoroscópio dos procedimentos hemodinâmicos (Figura 1).
Figura 1 - Lesão cutânea inicial em dorso 2 meses após angioplastia.
Figura 1 - Lesão cutânea inicial em dorso 2 meses após angioplastia.
Em setembro, progrediu para lesão ulcerada de coloração amarelo- esverdeada, medindo
12x8cm, localizada na área da placa de radioscopia para cateterismo (Figura 2). Houve aumento progressivo em tamanho, atingindo planos profundos.
Figura 2 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 3 meses após angioplastia.
Figura 2 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 3 meses após angioplastia.
Ainda em setembro foi realizada biópsia, que evidenciou fibroesclerose dérmica com
fibroblastos reativos, esteatonecrose, necrose tecidual com formação de abcesso e
ausência de malignidade nos planos de corte examinados: alterações compatíveis com
efeito de radioterapia.
Neste momento, foi realizado desbridamento, com fechamento primário da lesão, porém
sem sucesso. Ao final do mês de setembro de 2018 (Figura 3) apresentava necrose extensa e deiscência da cicatriz. A lesão foi deixada aberta,
sendo orientado curativos diários e cicatrização por segunda intenção.
Figura 3 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 4 meses após angioplastia.
Figura 3 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 4 meses após angioplastia.
Em 26 de fevereiro de 2019, apresentando melhora importante da ferida, foi submetido
à exérese de lesões actínicas remanescentes e nova biópsia, sem intercorrências. O
laudo histopatológico evidenciou ulceração, epiderme hiperplásica com corpos apoptóticos,
derme com bandas de colágeno espessas, fibroblastos reativos, reatividade intensa
do epitélio glandular, ausência de malignidade, alterações compatíveis com efeito
da radioterapia, ultrapassando as margens de ressecção (necrose por radiodermatite).
Novamente, foi orientado cicatrização por segunda intenção.
Devido à demora na cicatrização da ferida, em 22 de outubro de 2019 foi submetido
à cirurgia reparadora com descolamento de retalho dermogorduroso para cobrir a lesão
(Figura 4). Evoluiu de forma satisfatória, recebendo alta no terceiro dia de pós-operatório
(DPO) para acompanhamento ambulatorial, após integração total da ferida operatória.
Figura 4 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 1 ano e 5 meses após angioplastia.
Figura 4 - Lesão cutânea e subcutânea em dorso 1 ano e 5 meses após angioplastia.
Entretanto, apresentou pequena deiscência com 1 mês de pós-operatório, evidenciando
seu alto déficit de cicatrização. Foi optado pelo fechamento por segunda intenção
desde o dia 25 de novembro de 2019 (Figura 5). A ferida apresentou grande dificuldade em seu processo cicatricial, sendo detectada
a completa epitelização da ferida operatória somente no dia 07 de abril de 2020 (Figura 6).
Figura 5 - Deiscência de ferida operatória em dorso após avanço de retalho dermogorduroso randomizado.
Figura 5 - Deiscência de ferida operatória em dorso após avanço de retalho dermogorduroso randomizado.
Figura 6 - Ferida operatória em processo de epitelização com ausência de sinais flogísticos.
Figura 6 - Ferida operatória em processo de epitelização com ausência de sinais flogísticos.
DISCUSSÃO
As RCIR são efeitos dependentes da dose da radiação ionizante e geralmente ocorrem
quando são excedidos os limites da dose da radiação6.
Estudos prévios indicam que tempos de procedimentos prolongados, procedimentos múltiplos
cumulativos, oclusão total da artéria coronária direita, obesidade, hipotireoidismo
e diabetes são fatores de risco para a RCIR7. Além disso, a dose de radiação real necessária para causar lesão cutânea determinística
é específica para cada paciente e pode variar amplamente com base na variação biológica
individual, na sensibilidade à radiação e na presença ou ausência de certas condições
coexistentes8,9.
Até o momento, não há fortes evidências para apoiar a superioridade de qualquer intervenção
preventiva ou terapêutica específica no tratamento da RCIR. Portanto, uma avaliação
cuidadosa dos fatores de risco relacionados ao desenvolvimento de toxicidade cutânea
permanece uma prioridade10.
É importante ressaltar a grande fragilidade do tecido irradiado, que permanece mesmo
após a aparente epitelização da ferida advinda da RCIR. Em nosso caso, o paciente
foi submetido à pequena biópsia em ferida bem epitelizada, porém tal estímulo traumático
foi suficiente para agravar novamente uma área crítica. Dessa forma, o tecido irradiado
pode permanecer intacto até por décadas, porém, qualquer forma de estresse ou lesão
tecidual pode gerar uma ferida crônica, com exposição de estruturas nobres. O tratamento
dessas feridas geralmente requer amplo desbridamento da pele necrótica, tecidos moles
e ossos afetados, resultando em uma ferida complexa, geralmente com exposição de planos
profundos.
Em vista da grande demora no processo de reparação por segunda intenção, optamos pela
cobertura com retalho dermogorduroso, o que vai de acordo com o preconizado na literatura.
Retalhos musculares e dermogordurosos provenientes de regiões não afetadas pela radiação
podem ser úteis para sua cobertura e reconstrução11. Consideramos que a confecção do retalho foi essencial para o adequado tratamento
desse paciente, inclusive para seu conforto psicológico, visto que o mesmo já se encontrava
em tratamento com curativos diários por tempo prolongado.
No caso apresentado, a persistência na evolução da necrose de tecidos do dorso se
deu por longo período, mesmo após desbridamentos cirúrgicos, tendo as comorbidades
apresentadas pelo paciente prejudicado a cicatrização da ferida. Devido à persistência
da agressão tecidual pela radiação, nosso paciente evoluiu para uma perda tecidual
maciça, que poderia acometer toda a espessura da parede torácica e até haver comprometimento
pulmonar ou mesmo o óbito.
Dessa forma, a intervenção da cirurgia plástica reparadora foi essencial para a melhora
da qualidade cicatricial da ferida, através de desbridamentos e confecção do retalho.
O acompanhamento contínuo do paciente associado ao controle clínico de suas comorbidades
foram medidas fundamentais para a delimitação e controle da progressão da necrose
tecidual, que evoluiu para uma boa cicatrização.
CONCLUSÃO
As lesões cutâneas provenientes de exposição à radiação ionizante estão associadas
a múltiplos fatores. No caso demonstrado, está relacionada ao tipo de procedimento
realizado, a fluoroscopia, e as comorbidades (obesidade, diabetes e tireoideopatias).
Mesmo tendo sido tomados todos os cuidados para restauração da integridade do tórax
do paciente, evidenciamos a perpetuação da lesão por radiação, fato incomum de ser
observado mesmo após sucessivas abordagens cirúrgicas.
REFERÊNCIAS
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sentinel events in neuroendovascular procedures: how to screen, prevent, and address
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Actas Dermosifiliogr. 2017 Abr;108(3):209-20.
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of late sequelae after radiotherapy for head and neck cancer. Cancer Treat Rev. 2017
Sep;59:79-92.
1. Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus, Juiz de Fora, MG, Brasil.
2. Hospital Monte Sinai, Juiz de Fora, MG, Brasil.
3. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, Faculdade de Medicina,
Juiz de Fora, MG, Brasil.
Autor correspondente:
Iarley Peron Faria Rua Aníbal Maurício de Oliveira , nº 50, Centro, São João do Oriente, MG, Brasil
CEP 35146-000 E-mail: iarleyperon@gmail.com / casalithais@hotmail.com
Artigo submetido: 22/05/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.