INTRODUÇÃO
A úlcera de Marjolin (carcinoma epidermoide) é uma complicação rara e bem descrita
de uma lesão cutânea crônica precursora. Usualmente ocorre em cicatrizes de queimaduras,
úlceras por insuficiência venosa, fístulas crônicas em osteomielites e com menor frequência
em cicatrizes de úlceras por pressão1.
A úlcera por pressão é um problema comum que afeta às pessoas idosas e com incapacidades
físicas. A pressão contínua, o cisalhamento ou a fricção leve podem provocar oclusão
microvascular, isquemia e necrose2. O carcinoma epidermoide se diagnostica mediante uma biópsia da lesão. O curso clínico
costuma ser rápido e a taxa de mortalidade é alta3.
A cirurgia é o tratamento de eleição. A radioterapia tem sido utilizada como tratamento
paliativo4. Apresentamos um caso de carcinoma epidermoide após dez anos de cirurgia de enxerto
por úlceras por pressão no glúteo, e a aparição de uma nova úlcera negligenciada pela
paciente, que conduziu ao desenvolvimento de um carcinoma epidermoide extenso. Além
disso, discutimos os aspectos que levaram à suspeita desta condição e as opções terapêuticas.
RELATO DE CASO
Uma mulher de 36 anos nasceu com mielomeningocele. Três meses depois do nascimento,
a paciente foi submetida a cirurgia corretiva. Porém, ficou paraplégica. Progrediu
com úlceras por pressão em ambos glúteos que foram tratadas de forma conservadora.
Após a aparição de uma úlcera por pressão na região glútea direita faz 11 anos, se
realizou um desbridamento operatório com posterior enxerto de pele para corrigir o
defeito. O mesmo media ao redor de 10 cm no seu diâmetro maior. Nove anos e seis meses
depois, emergiu uma lesão ulcerada na sua região glútea esquerda, mostrando um crescimento
rápido e progressivo. Porém, a paciente não procurou atenção médica.
Ao exame físico, a paciente apresentava uma extensa úlcera (30x30cm2) no glúteo esquerdo e na região posterior do quadril direito que se estendia até
a zona perianal. A úlcera tinha um odor fétido, secreção purulenta, base necrótica
e bordas elevadas. A paciente tinha anemia, estado de saúde geral fraco e recebeu
duas unidades de concentrado de glóbulos vermelhos e cefepima. Não se encontraram
gânglios linfáticos suspeitos na região inguinal e a radiografia de tórax foi normal.
A biópsia da lesão confirmou um carcinoma epidermoide moderadamente diferenciado.
Depois de manejar a infecção e a anemia, o paciente se submeteu a uma amplia ressecção
da lesão. A análise histopatológica final confirmou um carcinoma epidermoide G2 com
margens laterais e profundas livres. No pós-operatório, a paciente adquiriu uma infecção
por E. coli sensível à cefepima. Após granulação da ferida cirúrgica e controle de
infecções, foi dada de alta do hospital e se programou um enxerto total de pele.
Dois meses depois do tratamento cirúrgico, a paciente se submeteu a um enxerto de
pele livre no glúteo esquerdo com integração completa do enxerto. Dois meses depois
do tratamento, a paciente conseguiu uma boa recuperação e não mostrou evidência de
carcinoma recorrente (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). A paciente assinou um termo de consentimento informado para a publicação do relato
atual. O comité de ética aprovou o caso com o número 2.402.686.
Figura 1 - Carcinoma espinocelular em região glútea direita e parte posterior da perna. Onze
anos após correção cirúrgica de úlcera por pressão.
Figura 1 - Carcinoma espinocelular em região glútea direita e parte posterior da perna. Onze
anos após correção cirúrgica de úlcera por pressão.
Figura 2 - Massa removida em região glútea direita e parte da região posterior do quadril. Formado
por carcinoma espinocelular originado de cicatriz dolorida por pressão.
Figura 2 - Massa removida em região glútea direita e parte da região posterior do quadril. Formado
por carcinoma espinocelular originado de cicatriz dolorida por pressão.
Figura 3 - Resultado pós-operatório após excisão cirúrgica radical.
Figura 3 - Resultado pós-operatório após excisão cirúrgica radical.
Figura 4 - Resultado com tecido de granulação pronto para enxerto de pele.
Figura 4 - Resultado com tecido de granulação pronto para enxerto de pele.
Figura 5 - Resultado após enxerto.
Figura 5 - Resultado após enxerto.
DISCUSSÃO
A úlcera de Marjolin é o epônimo da degeneração maligna das feridas crônicas que não
prosseguiram com o processo de cura normal o se curaram por segunda intenção. As úlceras
de Marjolin têm sido descritas comumente em vários tipos de lesões como úlceras por
pressão, úlceras por insuficiência venosa, tecidos irradiados, úlceras diabéticas,
osteomielites e outras lesões menos comuns, como hidradenite, cistos pilonidais, fístulas
urinarias, cicatrizes de vacinação, cicatrizes de herpes zoster, e inclusive cicatrizes
de enxertos. Porém, se descreve com maior frequência como uma transformação maligna
das cicatrizes de queimaduras5. Este estudo é um raro relato de úlcera de Majorlin que surge em cicatrizes de úlceras
por pressão.
Os mecanismos patogénicos por trás do desenvolvimento da transformação maligna nas
cicatrizes de queimaduras ou feridas expostas a traumatismos repetitivos, significativamente
aquelas que curam por segunda intenção, ainda não foram esclarecidos completamente.
Porém, alguns autores sugeriram que o entorno imunológico destas lesões é desfavorável
para a imunossupressão devido à baixa vascularização do tecido cicatricial6. Tem-se sugerido que a expressão elevada de proto-oncogenes é um mecanismo de degeneração
maligna7. Outros investigadores têm sugerido que o tecido cicatricial avascular em feridas
crônicas pode interferir na motilidade dos linfocitos8.
A úlcera de Marjolin se confunde comumente com uma ulceração infectada que se produz
no tecido cicatricial. As mudanças como a aparição de úlceras que não cicatrizam e
o aumento da circunferência óssea com bordas elevadas, odor fétido, dor e drenagem
com sangue indicam uma transformação maligna. Em fases mais avançadas, pode ocorrer
invasão e destruição óssea subjacente. Recomenda-se uma biópsia cirúrgica realizada
em múltiplas localizações para confirmação do diagnóstico9.
Neste relato, a paciente desenvolveu uma neoplasia maligna após a aparição de uma
nova úlcera por pressão que cresceu rapidamente nove anos e seis meses depois do tratamento
de uma úlcera por pressão previa no glúteo ipsilateral, mostrando a natureza agressiva
do tumor. A biópsia das úlceras por pressão que aumentam rapidamente e que sugerem
uma transformação maligna é essencial para melhorar o prognóstico do paciente3. Na literatura, encontramos sete casos publicados de carcinoma epidermoide que ocorrem
em úlceras por pressão. A idade dos pacientes variou de 30 a 85 anos e a progressão
da doença foi de 14 anos em média (Tabela 1).
Tabela 1 - Casos de carcinoma epidermoide reportados em úlceras por pressão.
Autores |
Idade no diagnóstico |
Região |
Duração do curso clínico |
Tratamento do carcinoma epidermoide |
Tamanho do carcinoma |
Knudsen e Biering-Srensen 200811 |
57 anos |
Região sacra esquerda |
10 anos |
Cirurgia e radioterapia (paciente faleceu) |
Não mencionado |
Fairbairn e Hamilton 20112 |
41 anos |
Região sacra, glúteos e períneo |
10 anos |
Excisão cirúrgica |
Não mencionado |
Cocchetto et al. 20131 |
30 anos |
Região sacra |
3 anos |
O paciente faleceu antes de iniciar qualquer tratamento da lesão |
15x12cm |
Eltorai et al. 20024 |
56 anos |
Região sacrococcígea |
25 anos |
Excisão cirúrgica, radioterapia e quimioterapia (o paciente faleceu) |
4 cm de diâmetro e 5 cm de profundidade no tecido subcutâneo |
Khan et al. 201612 |
85 anos |
Região dorsal inferior |
10 anos |
Excisão cirúrgica |
3,5 × 4 cm com crescimento superposto de 1,5x2 cm na região superior |
Berkwits L et al. 198613 |
42 anos |
Região sacra |
14 anos |
Excisão cirúrgica |
Não mencionado |
Dumurgier et al. 199114 |
Média de 55anos |
Três pacientes na zona sacra, um no trocânter e outro no calcâneo |
Intervalo médio de 30 anos |
Excisão cirúrgica, radioterapia e quimioterapia (os pacientes faleceram) |
Mencionado num só caso: 2x3cm na região sacra |
Tabela 1 - Casos de carcinoma epidermoide reportados em úlceras por pressão.
Segundo Pekarek et al., em 201110, as lesões bem diferenciadas são menos agressivas; portanto, os pacientes com estas
lesões têm melhor prognóstico. A taxa de supervivência global a 3 anos é do 65% ao
75%, enquanto a taxa de supervivência a 10 anos é do 34%. Porém, as metástases nos
gânglios linfáticos inguinais dão como resultado uma taxa de supervivência a três
anos do 35% ao 50%. No caso atual, os gânglios linfáticos inguinais eram normais
nos exames clínicos e ecográficos. No acompanhamento da paciente, a atenção deve focar-se
no exame dos gânglios linfáticos inguinais, já que podem produzir-se metástases ganglionares
depois de tratar a lesão primaria. Deve haver uma identificação rápida das metástases
ganglionares e a instituição do tratamento cirúrgico com linfadenectomia inguinal.
A cirurgia é o tratamento de eleição para a úlcera de Marjolin e se recomenda uma
excisão ampla com margens (2 a 3 cm). Este enfoque se adotou no caso atual. A radioterapia
tem sido o tratamento paliativo utilizado. A resposta à quimioterapia sistémica costuma
ser deficiente4.
REFERENCIAS
1. Cocchetto V, Magrin P, Paula RA, Aidé M, Razo LM, Pantaleão L. Squamous cell carcinoma
in chronic wound: Marjolin ulcer. Dermatol Online J [Internet]. 2013; 19(2). Available
from: https://escholarship.org/uc/item/7zf8466k
2. Fairbairn NG, Hamilton SA. Management of Marjolin's ulcer in a chronic pressure sore
secondary to paraplegia: a radical surgical solution. Int Wound J. 2011 Aug;8(5):533-6.
3. Mustoe T, Upton J, Marcellino V, Tun CJ, Rossier AB, Hachend HJ. Carcinoma in chronic
pressure sores: a fulminant disease process. Plast Reconstr Surg. 1986;77:116-21.
4. Eltorai IM, Montroy RE, Kobayashi M, Jakowatz J, Guttierez P. Marjolin's ulcer in
patients with spinal cord injury. J Spinal Cord Med. 2002;25(3):191-6.
5. Vieira RRBT, Batista ALE, Batista ABE, Rosa JVS, Diniz ACO, Leite GF, et al. Marjolin's
ulcer: revisão de literatura e relato de caso. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(3):179-84.
6. Bostwick J, Pendergrast Junior WJ, Vasconez LO. Marjolin's ulcer: an immunologically
privileged tumor?. Plast Reconstr Surg. 1976;57(1):66-9.
7. Smith J, Mello LF, Nogueira Neto NC, Meohas W, Pinto LW, Campos VA, et al. Malignancy
in chronic ulcers and scars of the leg (Marjolin's ulcer): a study of 21 patients.
Skeletal Radiol. 2001 Jun;30(6):331-7.
8. Novick M, Gard DA, Hardy SB, Spira M. Burn scar carcinoma: a review and analysis of
46 cases. J Trauma. 1977;17(10):809-17.
9. Ochenduszkiewicz U, Matkowski R, Szynglarewicz B, Kornafel J. Marjolin's ulcer: malignant
neoplasm arising in scars. Rep Pract Oncol Radiother. 2006;11(3):135-8.
10. Pekarek B, Buck S, Osher L. A comprehensive review on Marjolin's ulcers: diagnosis
and treatment. J Am Col Certif Wound Spec. 2011 Set;3(3):60-4.
11. Knudsen MA, Biering-Srensen F. Development of Marjolin's ulcer following successful
surgical treatment of chronic sacral pressure sore. Spinal Cord. 2008;46(3):239-40.
12. Khan K, Giannone AL, Mehrabi E, Khan A, Giannone RE. Marjolin's Ulcer Complicating
a Pressure Sore: The Clock is Ticking. The American Journal of Case Reports. 2016;17:111-114.
13. Berkwits L, Yarkony GM, Lewis V. Marjolin's ulcer complicating a pressure ulcer: case
report and literature review. Arch Phys Med Rehabil. 1986;67(11):831-833
14. Dumurgier C, Pujol G, Chevalley J, Bassoulet H, Ucla E, Stchepinsky P. Pressure sore
carcinoma: a late but fulminant complication of pressure sores in spinal cord injury
patients: case reports. Paraplegia.1991;29:390-395.
1. Centro Universitário UNINOVAFAPI, Oncologia, Teresina, PI, Brasil.
2. Universidade Estadual do Piauí, Oncologia, Teresina, PI, Brasil.
3. Oncocenter, Oncologia, Teresina, PI, Brasil.
Autor correspondente: Danilo Rafael da Silva Fontinele Rua Olavo Bilac, 2335, Centro, Teresina, PI, Brasil. CEP: 64001-280 E-mail: drsilvafontinele@gmail.com
Artigo submetido: 11/01/2020.
Artigo aceito: 22/02/2020.
Conflitos de interesse: não há.
COLABORAÇÕES
AFM Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Metodologia
DRSF Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Preparação
do original
SCV Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Preparação
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