INTRODUÇÃO
Estudos iniciais versando sobre a porção inferior do músculo trapézio (MT), na década
de 1980 deram importância à irrigação pela artéria cervical transversa (ACT)1,2. Na década seguinte novos estudos consideraram possíveis variações no suprimento
sanguíneo do MT pela artéria dorsal da escápula (ADE)3. A aplicabilidade do terço inferior do MT ainda que subutilizado pela maneira convencional
para reparação em cabeça e pescoço, tem sido recomendado pelas aplicações na vizinhança
ou pela transferência livre4, variações na origem do pedículo da ADE não são importantes e não interferem nos
procedimentos em vizinhança5, ainda assim estudos advertiram sobre a importância de se preservar a ADE mesmo nos
retalhos baseados na ACT, para a segurança da extremidade inferior destes retalhos6.
A constância de ramos da ADE para o terço inferior do MT foi constatada bem como anastomoses
entre ramos arteriais de lados opostos7,8. Entretanto, considerando novos conhecimentos sobre o papel da ADE e suas perfurantes
musculocutâneas no suprimento sanguíneo para a porção descendente do MT e a descrição
de dois padrões de irrigação9, os autores sentiram a necessidade de maior segurança para as dissecções cirúrgicas
e as dimensões dos retalhos.
OBJETIVO
Obter familiaridade com a anatomia da irrigação do terço inferior do MT por dissecções
anatômicas e exame com eco-Doppler.
MÉTODOS
O protocolo de pesquisa foi submetido ao comitê de ética em pesquisa da Universidade
do Vale do Sapucaí e aprovado sob o número 169/02, em 20 de agosto de 2002, e o estudo
foi desenvolvido no período de 2002 a 2012.
Os dois lados de quatro cadáveres frescos sem ferimentos nem cicatrizes no dorso foram
estudados. Uma incisão em forma de “U” interessando da pele até a fáscia muscular
do músculo grande dorsal foi executada de uma linha axilar posterior até o lado oposto
contornando o dorso ao nível da terceira vértebra lombar.
Este grande retalho de pele foi elevado juntamente com o MT dos dois lados. Em cada
lado a origem do músculo foi cuidadosamente separada das vértebras e dos músculos
subjacentes, a ADE foi identificada e preservada. Os vasos que corriam pela fáscia
na superfície profunda do retalho, fora dos limites do MT e aqueles que emergiam da
ADE foram identificados e preservados. A elevação do retalho foi conduzida até o nível
da espinha da escápula (Figura 1).
Figura 1 - Retalho do dorso elevado com os MT e as variações da ADE.
Figura 1 - Retalho do dorso elevado com os MT e as variações da ADE.
Alternadamente, em cada cadáver, uma das ADE foi cateterizada e pelo cateter injetado
20ml de corante vital (Patent Blue V, Guerbet) para fins de melhor registro e documentação
dos vasos.
Simultaneamente, após examinar quatro voluntários por eco-Doppler em busca da ADE
a título de estudo piloto, trinta voluntários adultos foram examinados bilateralmente
e a ADE foi estudada por examinador colaborador especialista em imaginologia. O equipamento
utilizado foi o modelo Envisor (Phillips, Bothell, WA, Estados Unidos) com transductor
linear multifrequencial (3-12MHz) ajustado para visibilização de vasos periféricos
superficiais.
Os voluntários foram posicionados em decúbito ventral com o braço do lado examinado
ao longo do tronco e com a face palmar da mão orientada dorsalmente. O braço oposto
foi posicionado com a mão ao nível da cabeça e a cabeça foi mantida com a face voltada
para o lado oposto. O transductor foi posicionado logo abaixo da espinha da escápula
e direcionado medialmente para a pesquisa da artéria.
RESULTADOS
Sobre o estudo anatômico
A ADE estava presente em todos os oito lados dos cadáveres estudados.
Foi constatado variação no curso da artéria sendo que sua emergência do plano profundo
aos músculos romboides (MR) ocorreu em duas localizações: em 4 lados no trígono da
ausculta (espaço triangular delimitado pela margem lateral do MT, margem medial inferior
da escápula e a margem medial do Músculo grande dorsal MGD), com curso cefalocaudal
e dimensão que variou de 3,5 a 4cm da emergência até a penetração no MT, emitindo
ramos diretos para a pele suprajacente, sempre a mais de 5cm caudalmente ao ângulo
inferior da escápula (Figura 2). Em outros 4 lados, na porção superior do MR, perfurando-o na altura da espinha
da escápula e correndo caudalmente ao longo da face profunda do MT, até o terço inferior
do músculo. Nesta conformação não foram observados ramos diretos para a pele (Figura 3).
Figura 2 - Emergência no trígono da ausculta com ramos diretos para a pele.
Figura 2 - Emergência no trígono da ausculta com ramos diretos para a pele.
Figura 3 - Emergência ao nível da espinha da escápula perfurando o MR.
Figura 3 - Emergência ao nível da espinha da escápula perfurando o MR.
Sobre o estudo de imagem
O exame piloto de 8 lados de 4 voluntários foi suficiente para familiarizar o examinador
com os achados e a duração média dos exames foi de 20 minutos.
Em 56 lados a ADE foi encontrada e bem descrita. Em dois lados (de voluntários diferentes)
a artéria foi visualizada somente de um lado. Em um voluntário a artéria não foi visualizada
em nenhum lado.
Em todas as visualizações, estava presente ao nível da espinha da escápula, distando
medialmente de 0,3 a 2cm com uma média de 1,1cm, variando em profundidade, sempre
acompanhada de veia, num curso caudal em topografia do MT (Figura 4).
Figura 4 - Imagem da ADE perfurando o MT ao nível da espinha da escápula.
Figura 4 - Imagem da ADE perfurando o MT ao nível da espinha da escápula.
DISCUSSÃO
Sobre o estudo anatômico
A ADE irriga a porção média e inferior do MT. Para alguns autores sua aplicabilidade
como pedículo para retalhos da porção inferior do MT fica improvável pela inconstância
relatada e algumas publicações não asseguram sua utilização ou limitam as dimensões
do seu território cutâneo1,2,8.
Outros autores descrevem a ADE como dominante para o terço inferior do MT em um terço
dos lados com trajeto constante de ramos que perfuram o MR e entram na superfície
profunda do MT, suprindo suas porções média e inferior9. Em outro estudo com 15 cadáveres, por meio de classificação baseada no tamanho,
a ADE foi o vaso dominante em metade dos lados5. Igualmente foi o vaso dominante em 15 de 30 dissecções3. Conforme outra publicação há ramos da ADE constantes para o MT suprindo a pele até
mais de 10cm inferiormente à margem inferior do músculo7. Em publicação mais recente, assegurados por estudo prévio com eco-Doppler portátil,
os autores trataram 10 pacientes com retalho baseado em perfurantes da ADE e preservação
do MT, sendo 6 retalhos pediculados e 4 livres4.
O presente estudo identificou a presença da ADE nos oito lados estudados, com variações
que permitem o planejamento de retalhos do terço inferior do MT. A variação da emergência
no trígono da ausculta ofereceu evidência da existência de ramos para a pele que parece
assegurar um território cutâneo que ultrapassa os limites do MT. A variação da emergência
pela perfuração do MR faz intimidade com a superfície profunda do MT em curso caudal
e emite ramos para o músculo que também irrigam a pele. A injeção de corante utilizada
permitiu a identificação dos vasos e seu trajeto, mas não permitiu a determinação
do território cutâneo. Ambas as variações irrigam o terço inferior do MT.
Sobre o estudo de imagem
O exame de imagem por eco-Doppler é inócuo, tem baixo custo, agilidade e alta sensibilidade
para a detecção de vasos arteriais4,10. O exame da ADE exigiu rápida familiarização com as características do trajeto.
O trajeto foi constante a partir do plano axial da espinha da escápula, variando o
curso em profundidade, o que faz coerência com os achados anatômicos, podendo atingir
o músculo por emergência em meio ao MR e seguir pela face profunda do MT ou cursar
profundo ao MR e emergir no trígono da ausculta.
Conforme o estudo, existe a possibilidade de não ser identificada em alguns lados.
Nestes lados não houve como estabelecer a real ausência do vaso, mas considerando
publicações que sugerem sua inconstância, fica recomendável o exame pré-operatório
por eco-Doppler no planejamento de retalho baseado na ADE1,2,8,9.
CONCLUSÃO
A ADE foi constante nos oito lados estudados em dissecções em cadáver e apresentou
duas variações de curso na irrigação da porção inferior do músculo trapézio, por penetração
ao nível da espinha da escápula em 4 lados e ao nível do trígono da ausculta em 4
lados. A variação pode ocorrer no mesmo indivíduo.
O exame por eco-Doppler mostrou-se exequível e recomendável para descrever a presença
e o trajeto da ADE. A visualização foi possível em 56 dos 60 lados estudados.
AGRADECIMENTOS
As então acadêmicas Danielle M. Moura e Natali A. Rodrigues e ao imaginologista Prof.
Sizenildo Silva Figueirêdo do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondônia,
pela dedicação ao estudo.
REFERÊNCIAS
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3. Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Arch Otolaryngol Head Neck Surg.
1991 Jan;117(1):73-6.
4. Sadigh PL, Chang LR, Hsieh CH, Feng WJ, Jeng SF. The trapezius perforator flap: an
underused but versatile option in the reconstruction of local and distant soft- tissue
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York: Churchill Livingstone; 1997.
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1998 Jul;41(1):52-7.
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method and preliminary results. Radiology. 1994 Ago;192(2):447-50.
1. Universidade Federal de Rondônia, Laboratório de Técnica Operatória, Departamento
de Medicina, Porto Velho, RO, Brasil.
2. Hospital de Clínicas, Programa de Reabilitação e Assistência ao Fissurado da Face,
Rio Branco, AC, Brasil.
3. Clínica Paiva & Rocha, Cirurgia, Pouso Alegre, MG, Brasil.
Autor correspondente: João Lorenzo Bidart Sampaio Rocha, Avenida Alberto de Barros Cobra, 717, Nova Pouso Alegre, Pouso Alegre, MG, Brasil.
CEP: 37553-459 E-mail: joaolorenzorocha@gmail.com
Artigo submetido: 10/08/2020.
Artigo aceito: 23/04/2021.
Conflitos de interesse: não há.
COLABORAÇÕES
JLBSR Concepção e desenho do estudo, Investigação, Metodologia, Realização das operações
e/ou experimentos, Redação - Preparação do original
GRP Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados, Investigação, Realização das
operações e/ou experimentos, Redação - Revisão e Edição
LCSR Análise e/ou interpretação dos dados, Investigação, Redação - Revisão e Edição