INTRODUÇÃO
O hemangioendotelioma kaposiforme (HEK) é um tumor vascular, raro, que compreende
variado grupo de lesões superficiais ou infiltrativas com risco de vida. Tem
prevalência de 0,91 casos por 100.000 crianças, mais comum nas extremidades. Quando
surge no idoso tem maior chance de malignidade, podendo desenvolver o angiossarcoma
ou hemangiossarcoma, quando ocorre na criança é benigno1-3. Os outros
diagnósticos diferenciais histológicos de HEK incluem hemangioma infantil,
hemangioma congênito, hemangioma fusocelular, malformação verrucosa/hemangioma e
sarcoma de Kaposi1.
No exame de microscopia caracteriza-se por nódulos confluentes de células endoteliais
fusiformes neoplásicas envolvendo múltiplos planos de tecido que são positivos para
marcadores endoteliais, linfáticos e musculares lisos2. A abordagem de tratamento para esses tumores é variável,
principalmente porque os casos são raros, podem ser infiltrativos e localizados em
área de difícil ressecção cirúrgica e, ainda, podem estar relacionados ao fenômeno
de Kasabach-Merritt, caracterizado por associação de hemangioma capilar e
trombocitopenia, que pode ocasionar sangramentos, petéquias, equimoses e hematomas
espontâneos4,5. A involução espontânea do tumor é rara, a
melhor opção de tratamento é a exérese total, entretanto, algumas vezes é mutilante
ou inviável, e outras opções de tratamentos, uso de corticoides, vincristina,
interferon, quimioterapia, embolização, propanolol, escleroterapia e radioterapia
foram descritos2.
O objetivo deste artigo é descrever a correlação radiológica com uso de ressonância,
cirúrgica e anatomopatológica de um caso raro criança com hemangioendotelioma
kaposiforme.
RELATO DE CASO
Menino admitido aos cinco anos de idade no Serviço de Ortopedia do Hospital Sarah
apresentando história de surgimento, aos seis meses de vida, de tumoração na região
plantar direita, indolor, de aspecto vinhoso e sem sinais inflamatórios. Submeteu-se
a dois procedimentos cirúrgicos para exérese em outro serviço médico, aos dois anos
de idade, com recidiva após três meses, e aos quatro anos, com recidiva a seguir,
tendo recebido o diagnóstico de fibromatose plantar. Quando foi admitido neste
hospital apresentava recidiva tumoral na região plantar e dificuldade para realizar
o apoio plantar à direita, devido à dor local, e para o uso de calçados. No exame
físico apresentava tumoração endurecida de aspecto cicatricial, não dolorosa à
palpação, com extensão de mais ou menos cinco cm no seu maior diâmetro, localizada
na região plantar direita (Figura 1).
Realizou-se radiografia plantar em AP e perfil, e ressonância magnética nuclear que
mostraram lesão na região plantar posterior medindo no sentido látero- lateral, 3cm
de comprimento x 2cm de espessura, respeitando a fáscia plantar e direcionada à
pele. Apresentava hemograma, contagem de plaquetas e coagulograma normais, não se
evidenciando fenômeno de Kasabach-Merritt. Indicou-se biópsia, cujo laudo evidenciou
hemangioendotelioma cutâneo kaposiforme. Realizou-se a exérese tumoral marginal
mantendo a fáscia e sutura primária de lesão medindo 3x2cm; apresentou recidiva após
seis meses de pós-operatório. Optou-se por ampliar a margem cirúrgica lateral e em
profundidade em 2cm, realizou-se a ressecção elíptica incluindo pele, subcutâneo,
fáscia muscular até o calcâneo, medindo 5x3x2cm.
Figura 1 - (À esquerda) Lesão cutânea na região plantar direita na admissão e
após a recidiva; (À direita) Exame de RMN realizado após recidiva,
evidenciando tecido amorfo, heterogêneo, iso/hipointenso em T1, T2 e
STIR, estendendo-se profundamente até o plano da fáscia plantar
espessada com tênue intervalo medindo cerca de 5,7mm em seu maior eixo
anteroposterior, com o tecido amorfo supracitado interpondo-se.
Destaca-se no subcutâneo mais superficial, imediatamente anterior à
cicatriz cirúrgica, área ovalada de contornos lobulados, isointenso em
T1 e discretamente hiperintenso em T2/STIR que exibia realce
pós-contraste. Medindo cerca de 12,6mm em seu maior eixo
anteroposterior, 3,46mm em seu eixo maior eixo látero-lateral e 6,5mm
sem seu maior eixo craniocaudal, o que sugeriu a possibilidade de
recidiva.
Figura 1 - (À esquerda) Lesão cutânea na região plantar direita na admissão e
após a recidiva; (À direita) Exame de RMN realizado após recidiva,
evidenciando tecido amorfo, heterogêneo, iso/hipointenso em T1, T2 e
STIR, estendendo-se profundamente até o plano da fáscia plantar
espessada com tênue intervalo medindo cerca de 5,7mm em seu maior eixo
anteroposterior, com o tecido amorfo supracitado interpondo-se.
Destaca-se no subcutâneo mais superficial, imediatamente anterior à
cicatriz cirúrgica, área ovalada de contornos lobulados, isointenso em
T1 e discretamente hiperintenso em T2/STIR que exibia realce
pós-contraste. Medindo cerca de 12,6mm em seu maior eixo
anteroposterior, 3,46mm em seu eixo maior eixo látero-lateral e 6,5mm
sem seu maior eixo craniocaudal, o que sugeriu a possibilidade de
recidiva.
O exame de congelação transoperatória mostrou tecido fibrótico, porém sem evidência
de tumor na margem profunda, sendo feita a exérese da fáscia plantar, do periósteo
do calcâneo e realizada a reconstrução com rotação de retalho do cavo plantar de
pedículo medial medindo 6x4cm e enxertia de pele parcial na região doadora no
médio-pé, sutura com monocryl 4-0 e curativo de Brown na área enxertada. O enxerto
foi retirado com faca de Blair da porção medial da coxa homolateral; o curativo foi
mantido por uma semana, quando se observou integração total do enxerto de pele.
Orientou-se repouso com o membro elevado sem carga até a integração completa do
retalho e enxerto de pele, por 2 semanas; observou-se evolução satisfatória do
retalho com remissão do quadro de dor, sem recidiva tumoral no seguimento de 15 anos
(Figura 2).
Figura 2 - A. Transoperatório: ressecção tumoral com margens amplas
laterais e profundidade, dimensões de 5x3x3cm, até o calcâneo. Marcação
e dissecção de retalho do cavo plantar de vascularização medial;
B. Rotação do retalho medindo 6cm para cobertura do
calcâneo; Retirada de enxerto de pele parcial da face medial da coxa
homolateral e distribuição com enxerto de pele e sutura com monocryl
4-0; C. Curativo atado na área enxertada; D.
Resultado pós-operatório após 12 anos de seguimento.
Figura 2 - A. Transoperatório: ressecção tumoral com margens amplas
laterais e profundidade, dimensões de 5x3x3cm, até o calcâneo. Marcação
e dissecção de retalho do cavo plantar de vascularização medial;
B. Rotação do retalho medindo 6cm para cobertura do
calcâneo; Retirada de enxerto de pele parcial da face medial da coxa
homolateral e distribuição com enxerto de pele e sutura com monocryl
4-0; C. Curativo atado na área enxertada; D.
Resultado pós-operatório após 12 anos de seguimento.
O exame anatomopatológico revelou neoplasia vascular com lobos infiltrativos,
separados por septos fibrosos, contando áreas fusocelulares compactas, por vezes
frouxas, em permeio capilar, fendas e vasos de tamanhos variados, revestidos por
endotélio com aspecto glomerulóide, escassas figuras de mitose e margens cirúrgicas
livres. Cariótipo do tumor (45,XY,-10(3)/46,XY(21) com monossomia do cromossomo 10
(3 células), clone normal (21 células) tempo de cultivo 8 dias.
DISCUSSÃO
A história natural do hemangioendotelioma kaposiforme, o diagnóstico diferencial e
o
regime de tratamento dessas lesões permanecem obscuros e são desafios aos cirurgiões
plásticos. Os autores descrevem o relato de um caso raro de hemangioendotelioma
kaposiforme com difícil diagnóstico, que já havia sido operado anteriormente e
recidivado três vezes. No exame físico apresentava aspecto fibromatoso, levando-se
a
suspeita clínica de fibromatose plantar, não confirmada pelos exames de imagem e
biópsia. Na biópsia, os achados histopatológicos, corroborando com a literatura, foi
de nódulos confluentes de células endoteliais fusiformes neoplásicas envolvendo
múltiplos planos de tecido que foram positivos para marcadores endoteliais,
linfáticos e musculares lisos, isso foi importante para a definição do
diagnóstico.
Na primeira cirurgia para exérese respeitou-se os critérios oncológicos,
preservando-se a fáscia, em acordo com o exame de RMN, que apresentava
comprometimento na derme profunda, tecidos profundos, subcutâneo e muscular, porém,
estes parâmetros não foram suficientes para a remissão do tumor. Após seis meses de
pós-operatório houve recidiva e foi realizada nova abordagem cirúrgica ampliando-se
as margens laterais e profundas, com a exérese da fáscia e do periósteo, conseguindo
a remissão durante 15 anos de seguimento sem sequelas funcionais importantes.
O tumor hemangioendotelioma kaposiforme é um tumor de origem vascular em acordo com
a
classificação da International Society for the Study of Vascular Anomalies
(ISSVA), que abrange todas as malformações e tumores vasculares em um
quadro de nomenclatura internacionalmente consistente, é um dos dois sistemas de
classificação mais utilizados. Baseia- se na classificação inicial publicada por
Mulliken e Glowacki, em 19826, e desde então
tem sido atualizada com o reconhecimento de mutações genéticas causais; esta
classificação foi revisada em maio de 2018. A exérese com margem cirúrgica livre de
tumor deve ser o tratamento definitivo para HEK, embora seja inatingível, em alguns
casos, devido à localização, extensão da lesão ou associação com coagulopatia.
Quando associado à coagulopatia pode ter taxa de mortalidade em torno de 20%. Assim,
outras opções de tratamentos são descritas, como o uso de corticoides, as
quimioterapias únicas ou combinadas, o laser e a radioterapia5-8.
O Sirolimus®, também chamado de rapamicina, é um fármaco utilizado como
imunossupressor, é uma lactona macrocíclica produzida por organismos da espécie
Streptomyces hygroscopicus, inibidor de mTOR macrolídeo com
efeito antiangiogênico, foi relatado como um agente de sucesso no tratamento de
casos refratários e complicados de HEK, com redução do tumor, da dor e dos fenômenos
de coagulopatia, embora não haja um protocolo único definido e seu uso em crianças
com anomalias vasculares é limitado, normalmente foi indicado quando outras
alternativas falharam.
A reconstrução da região plantar, corroborando com outros autores9-12 e como apresentado no relato de caso, foi um desafio, devido à
necessidade de ter o retalho com dimensões suficientes para a cobertura do defeito
e
proteção do calcâneo, ter pele semelhante à região, pouco volume e ter sensibilidade
suficiente para prevenir lesões, suportar carga, evitar a dor ao deambular e
possibilitar o uso de calçados. Entre as opções disponíveis estão os retalhos locais
do cavo plantar de rotação, o retalho plantar medial, o sural reverso, os retalhos
a
distância e os retalhos livres9-12. Não foi possível
realizar enxerto de pele devido à exposição óssea. Neste relato de caso foi possível
a cobertura de defeito de 5cm no maior eixo localizado na região do calcâneo,
utilizando o retalho do cavo plantar e enxertia de pele parcial na área doadora. O
retalho e o enxerto de pele apresentaram boa integração, o que permitiu a
recuperação funcional do pé.
CONCLUSÃO
Neste relato do caso de criança com hemangioendotelioma kaposiforme, um tumor
vascular raro, não foi possível fazer o diagnóstico clínico na admissão, foi
necessária biópsia e exame histopatológico. No exame de RMN identificou-se realce
heterogêneo difuso após contraste de lesão envolvendo a pele, do subcutâneo até a
fáscia. Estes limites foram utilizados para ressecção até a fáscia, mas não foram
suficientes para controle tumoral e houve recidiva após seis mês.
Foi necessária reabordagem para a ressecção da fáscia e do periósteo para controlar
o
crescimento da lesão vascular, que embora benigna, tenha crescimento endotelial com
invasão da pele, músculo, fáscia até o periósteo. Realizou-se a exérese nas margens
laterais e na profundidade, até o periósteo, e a reconstrução ampla com retalho do
cavo plantar e enxertia de pele parcial na região doadora, sem sinais de recidiva
no
seguimento de 15 anos. Ressaltamos a importância do cirurgião ir além das margens
delimitadas pela RMN para o controle da doença.
REFERÊNCIAS
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2018; [acesso em 2019 Jun 27]. Disponível em:
http://www.issva.org/UserFiles/file/ISSVA-Classification-2018.pdf
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Membro titular da SBCP, Brasília, DF, Brasil.
2. Rede Sarah de Hospitais, Enfermagem, Brasília,
DF, Brasil.
3. UNICEUB, Graduanda Medicina, Brasília, DF,
Brasil.
4. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da
Saúde Escola Superior de Ciências da Saúde, Enfermagem, Brasília, DF,
Brasil.
Autor correspondente: Maria Ireni Zapalowski
Galvão, SMHS Quadra 501, Bloco A, Asa Sul, DF, Brasil. CEP: 70335-970.
E-mail: 201995@sarah.br
Artigo submetido: 06/08/2019.
Artigo aceito: 10/01/2021.
Conflitos de interesse: não há.