INTRODUÇÃO
A mandíbula ocupa a maior porção óssea do esqueleto facial1, desempenha papel chave na mastigação, deglutição, fonação,
fala e sorriso, fornece forma, contorno e altura vertical do terço inferior da
face2. É o segundo local mais comum de
fratura dos ossos da face3. A fratura de
mandíbula se não identificada ou tratada adequadamente pode levar a sequelas
graves1.
Uma reconstrução de mandíbula ideal deve ser semelhante em estrutura, geometria e
tecido da área ausente2. O retalho
osteocutâneo fibular com osteotomias para mimetizar o formato mandibular foi
descrito inicialmente em 1989. Desde então, o uso do retalho livre de fíbula,
com
anastomose microcirúrgica se tornou um grande armamento para a reconstrução
mandibular4. O uso desse retalho tem como
vantagem a reconstrução de grandes defeitos (até 30cm), pedículo vascular longo
e a
aplicação de implantes dentais osteointegrados5,6.
Com auxílio de tomografia computadorizada e a fabricação de modelos em impressoras
3D
é possível obter um melhor resultado estético e funcional do órgão reconstruído,
diminuir o tempo cirúrgico e suas complicações decorrentes7.
Nosso objetivo é descrever uma reconstrução microcirúrgica de mandíbula com retalho
osteocutâneo de fíbula, em paciente vítima de trauma, com o auxílio da impressão
3D
para planejamento pré e perioperatório.
RELATO DE CASO
Paciente, PGLO, 16 anos, tabagista, admitido no pronto socorro do Hospital Risoleta
Tolentino Neves (HRTN), após ser encontrado em via pública, vítima de agressão
com
projetil de arma de fogo e trauma contuso em face. Foi realizada traqueostomia
de
urgência devido à obstrução das vias aéreas. Apresentava fratura exposta de
mandíbula, de elementos dentários inferiores e lacerações diversas em face. A
tomografia computadorizada de face evidenciou fratura cominutiva de corpos e ramos
mandibulares, maxila à esquerda com obstrução de rinofaringe e orofaringe por
edema
de partes mole (Figura 1).
Figura 1 - Tomografia de admissão evidenciando fratura cominutiva da
mandíbula.
Figura 1 - Tomografia de admissão evidenciando fratura cominutiva da
mandíbula.
O paciente foi submetido ao debridamento de tecidos desvitalizados e realizado reparo
das lacerações. Realizou-se novo debridamento no 20º dia pós-operatório (DPO),
com
fixação das fraturas com placa reta de 4 furos à esquerda e placa de reconstrução
trans-gap com três parafusos de cada lado, do sistema 2.0.
Identificou-se e preservou-se os vasos faciais. Ele recebeu alta hospitalar no
3º
DPO da segunda abordagem cirúrgica, com boa evolução e boa aceitação de dieta
líquida/pastosa via oral. Foi encaminhado ao ambulatório para programar reconstrução
mandibular.
Uma nova tomografia de face evidenciou as placas de reconstrução unindo os corpos
e
ramos mandibulares, com perda óssea com distância de estimada de 8cm entre as
partes, indicando assim, uma reconstrução com retalho osteocutâneo microcirúrgico
de
fíbula (Figura 2).
Figura 2 - Tomografia pré-operatória.
Figura 2 - Tomografia pré-operatória.
Um modelo tridimensional da mandíbula e placa foi feito em impressora de filamentos
de ácido poliláctico. Com ele a equipe cirúrgica conseguiu determinar a distância
a
ser preenchida pelo retalho, definir o lado que o pedículo deveria ser posicionado,
identificar espículas ósseas a serem retiradas, e programar o posicionamento dos
furos para fixação da placa. Também foi criado, um modelo de fíbula, para equipe
programar onde e como seriam feitas as osteotomias no dia do procedimento. Durante
o
planejamento cirúrgico foram definidas as funções de cada membro (Figura 3 e 4).
Figura 3 - Reconstrução 3D: mandíbula do paciente e modelo de fibula.
Figura 3 - Reconstrução 3D: mandíbula do paciente e modelo de fibula.
Figura 4 - Modelos após treinamento e planejamento cirúrgico.
Figura 4 - Modelos após treinamento e planejamento cirúrgico.
A reconstrução microcirúrgica de mandíbula com retalho osteocutâneo de fíbula
aconteceu cinco meses após o trauma. A ilha de pele de 10x5cm situou-se a 6cm
distal
da cabeça da fíbula e 5cm proximal do maléolo lateral. Identificando as perfurantes
no septo intermuscular lateral. Dissecado os músculos fibulares longo e curto,
fáscia intermuscular anterior, extensor dos dedos e membrana interóssea, preservando
2-3mm dessas estruturas aderidos à fíbula; não houve lesão das perfurantes cutâneas.
Dissecou-se os músculos gastrocnêmio e sóleo, mantendo a camada muscular aderida
ao
osso. Realizaram-se osteotomias proximal e distal em plano subperiosteal,
identificando e ligando os vasos fibulares distalmente. Dissecados os músculos
tibial posterior e flexor longo do hálux, identificada e ligada a artéria fibular
em
sua origem, acompanhado de duas veias fibulares. As osteotomias foram realizadas
em
plano subperiosteal usando de guia o modelo 3D da mandíbula e fíbula. Os modelos
não
entraram em contato com o paciente. Realizado fechamento da área doadora por planos
com síntese cutânea e enxertia de pele parcial em área de retirada da ilha cutânea.
Foi realizada a cervicotomia transversal, identificadas as veias jugular interna
e
carótida externa, isoladas a artéria e veia facial direita para realizar anastomose
microcirúrgica. Dissecou-se a placa de reconstrução e ela foi refixada com novos
parafusos. A fíbula foi fixada na face interna da placa de reconstrução com três
parafusos monocorticais de 2.4x8.0mm. Realizada anastomose microcirúrgica entre
vasos fibulares e vasos faciais direitos com pontos separados de prolene 8.0 com
auxílio lentes de aumento. O retalho cutâneo foi fixado na região cervical para
controle pós-operatório do retalho (Figura 5).
Figura 5 - Retalho fixado.
Figura 5 - Retalho fixado.
Os tempos cirúrgicos foram simultâneos, devido à subdivisão das equipes. A cirurgia
durou oito horas e o tempo de isquemia total do retalho foi de três horas.
Manteve-se o paciente em intubação orotraqueal (IOT) por 48 horas, no CTI. A pressão
arterial média foi mantida acima de 70mmHg, sem uso de aminas-vasoativas. Omeprazol
20mg, ondasentrona 8mg fixos de 8/8 horas por três dias. Profilaxia antitrombótica
com enoxaparina 40mg, com introdução de AAS 100mg via oral após o 3º DPO.
Antibioticoterapia com amoxicilina com clavulanato 500mg + 125mg durante dez dias.
A
dieta foi iniciada por SNE no POI e progressão para via oral (liquida/pastosa)
após
extubação. Deambulação com muletas iniciada no 9º DPO e sem restrição após o 14º
DPO. A perfusão do retalho foi avaliada com exame clínico seriado da ilha cutânea
além de avaliação com Eco-doppler evidenciando bom fluxo na anastomose. O paciente
apresentou boa evolução e recebeu alta no 15º DPO.
Ele foi acompanhado ambulatoriamente, mantendo a dieta líquido/pastosa por 45 dias.
Realizou-se tomografia de controle, no 40º DPO, evidenciando retalho em bom aspecto
e sem sinais de reabsorção óssea (Figura 6 e
7).
Figura 6 - Tomografia de controle - 40º DPO.
Figura 6 - Tomografia de controle - 40º DPO.
Figura 7 - Pré e pós-operatório.
Figura 7 - Pré e pós-operatório.
O paciente permanece em acompanhamento ambulatorial, mas não realizou implantes
dentários devido à dificuldade financeira e lentidão do processo no sistema público
de saúde.
DISCUSSÃO
Atualmente a técnica de escolha para reconstrução mandibular é feita com uso de
retalhos ósseos vascularizados.
O retalho livre de fíbula caracteriza-se por ser um enxerto autógeno, segmentado e
removido da área doadora, tendo sua vascularização preservada, a fim de nutrir
esse
tecido quando no leito receptor, a partir da sua anastomose com o sistema vascular
da região receptora.
O planejamento da reconstrução com prototipagem e impressoras tridimensionais otimiza
a reconstrução microcirúrgica com autotransplante de fíbula8,9. A
associação da tecnologia 3D apresentou diversos ganhos para melhor resultado
cirúrgico e para o paciente. Observa-se um menor tempo cirúrgico, aumento da
eficiência perioperatória, melhor acurácia na reconstrução em casos de maior
dificuldade, melhor osteointegração e oclusão após implantes10.
O custo do planejamento depende do tamanho da peça, dificuldade para tratamento da
imagem, tempo de impressão e o material utilizado. Mas por ser um modelo
pré-cirúrgico (não comtempla guias ou moldes) pode ser desenvolvido com impressoras
e softwares não específicos (não médicos) e esse tipo de tecnologia é mais
acessível, como um preço variando entre R$900,00-R$1.500,00.
O material utilizado (PLA) necessita de uma temperatura de 185-205 ºC para impressão,
porém ainda não foram feitos testes se o modelo sofreria distorções durante a
esterilização.
São necessários também testes de esterilidade validados e testes de sensibilidade
para permitir o contato sem risco para o paciente. Esses estão sendo realizados
para
aprimorar o modelo e permitir maior versatilidade em seu uso.
CONCLUSÃO
O retalho osteocutâneo de fíbula continua padrão ouro para reconstrução de defeitos
complexos da mandíbula.
Em nossa experiência, percebemos a importância do modelo 3D, principalmente na
preparação cirúrgica e o tempo cirúrgico destinado a osteotomia do retalho foi
abreviado.
Acreditamos que a impressão tridimensional é uma arma importante nas cirurgias
reparadoras e deve ser utilizada em casos complexos tanto no intraoperatório,
quanto
como ferramenta de planejamento e discussão cirúrgica.
É importante a interação dos profissionais médicos e indústria para popularizar e
desenvolver esse tipo de produto a fim de trazer ganhos para os pacientes.
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1. Hospital Risoleta Tolentino Neves, Cirurgia
Plástica, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Autor correspondente: Marcelo Martins
Casagrande, Rua Herculano de Freitas, 905 , Apto 1402, Independência,
Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP: 14076-300. E-mail:
marcelocasagrande1@gmail.com
Artigo submetido: 04/07/2019.
Artigo aceito: 21/10/2019.
Conflitos de interesse: não há.