INTRODUÇÃO
A enxertia homóloga de pele pode representar a diferença entre a vida e a morte de
pacientes grandes queimados. Sua utilização consiste em um tratamento precioso
quando não há disponibilidade do enxerto autólogo1. O enxerto alogênico de pele tem sido utilizado desde o século
dezenove e após esse longo período, essa prática comprovou ser um procedimento
seguro e efetivo no manejo de queimaduras2.
Embora haja relatos isolados na literatura, historicamente o primeiro a descrever
os
enxertos epidérmicos em perdas cutâneas foi Reverdin, em 18693. O procedimento consistia em elevar a pele da área doadora com
uma agulha, formando pequenos picos, cujo cume era cortado horizontalmente e o
fragmento extraído era então transferido à área receptora4. Porém, a utilização de aloenxertos de pele especificamente
para tratamento de queimadura foi descrita somente em 1881, por Girdner5.
A perda da integridade da pele promove a perda de líquidos, infecções, hipotermia,
comprometimento da imunidade, hipovolemia e dor, entre outras complicações2-4. Nos pacientes com queimaduras de grande extensão corporal e escassez
de área doadora, o cirurgião pode optar pelo transplante de pele alógena2-4, esta por sua vez diminui a perda de fluídos e proteínas pelas áreas
lesionadas, age como barreira física contra germes, modula o leito da ferida para
estimular o processo fisiológico de cicatrização e promove analgesia6, reduzindo a morbimortalidade2.
Apesar das vantagens do uso dos enxertos alógenos, o transplante de tecidos não é
isento de riscos, sendo o principal deles o de transmissão de doenças
infectocontagiosas. Os bancos de tecidos foram criados para realizar o processamento
e armazenamento da pele alógena. Esses bancos atuam por meio de normatizações
que
garantem a segurança e qualidade do tecido, desde a sua captação até a distribuição
do material. Este rigor é fundamental para garantir que o transplante de pele
seja
realizado com segurança.
Em 1997, por meio da Lei nº 9.4347, o
transplante de órgãos e tecidos humanos foi regulamentado no Brasil. A lei
estabelece que a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano
post-mortem somente pode ser realizada após diagnóstico de
morte encefálica, confirmada por dois médicos não participantes da equipe de remoção
e transplante, baseado em critérios clínicos e tecnológicos pré-definidos6. Desde 2001, após a Lei nº 10.2118, existe a necessidade de um termo de
consentimento informado, com consulta familiar para autorização da doação.
A Lei nº 9.175, de 20179, estabeleceu que tanto
a captação quanto os transplantes de órgãos e tecidos só podem ser realizados
por
equipes e instituições médico-hospitalares especializadas e cadastradas nas
secretarias de saúde estaduais e no Sistema Nacional de Transplantes (SNT)8.
O banco de pele do Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM) foi inaugurado
em junho de 2013, contando com instalações próprias de acordo com as normas do
SNT
e, desde então, realiza captação e armazenamento de pele em glicerol 90%6.
Os doadores de pele dividem-se basicamente em duas categorias: doadores em morte
encefálica, que são os doadores de múltiplos órgãos e compreendem a quase totalidade
de doadores do banco de pele, e doadores em parada cardiorrespiratória10.
Em 2019, segundo estatísticas da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos
(ABTO), a taxa de doadores de órgãos e tecidos efetivos cresceu 6,5%. Destacaram-se
com taxas de notificação de potenciais doadores, o Distrito Federal e o Paraná,
com
taxa de efetivação de doação superior a 50% e com taxa de autorização familiar
superior a 70%. Esses valores representam bons parâmetros de doação e têm sido
usados de modelo por outros estados9.
Em relação aos transplantes de células e tecidos registrados em 2019, houveram 10.418
doadores de ossos, 14.943 de córnea, 3.805 de medula óssea e somente 130 doadores
de
pele. Porém, em comparação com o ano de 2018, quando foram registrados 62 doadores
de pele, houve um aumento superior a 100% nos doadores efetivos11.
OBJETIVO
Analisar o perfil epidemiológico de doadores e receptores de pele do banco de pele
do
Hospital Universitário Evangélico Mackenzie (HUEM) e a sua produtividade, desde
a
inauguração em 2013 até 2019.
MÉTODOS
Para análise epidemiológica do banco de pele do HUEM, realizou-se consulta aos
relatórios anuais do período de sete anos (2013 a 2019), cujo preenchimento faz
parte da rotina do banco. Nesses relatórios constam informações sobre doadores,
sexo, data da doação, área de pele captada (cm2), área de pele
disponibilizada (cm2 e lâminas), área de pele doada (cm2),
além de dados sobre a distribuição de tecidos.
O presente estudo obteve aprovação pelo comitê de ética em pesquisa do Instituto
Presbiteriano Mackenzie, sob o parecer número: 32582620.6.0000.0103/2020.
RESULTADOS
Entre 2013 e 2019, foram realizadas captações de pele de 187 doadores, dos quais 114
(61%) eram do sexo masculino e 73 (39%) do sexo feminino (Figura 1). A idade média destes pacientes foi de 41,07 anos,
sendo a idade mínima registrada de 16 anos e a máxima 60 anos.
Figura 1 - Sexo dos doadores.
Figura 1 - Sexo dos doadores.
O número de doadores atingiu a média de 21,3 por ano. Em 2015, registrou-se o pico
máximo de 29 doações de pele e, em 2019, o menor número registrado, somente 10
doadores (Tabela 1). Do total de captações,
os tecidos de 149 (79,7%) doadores foram empregados em transplantes e de 38 (20,3%)
foram descartados por várias causas, como contaminações bacterianas.
Tabela 1 - Quantidade de doadores por ano.
Ano |
2013 |
2014 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
2019 |
n |
14 |
31 |
29 |
27 |
26 |
12 |
10 |
Tabela 1 - Quantidade de doadores por ano.
Durante 7 anos de funcionamento do banco de pele do HUEM, foram coletados
201.000cm2 de tecido viável, que resultaram na produção de 3.770
lâminas de pele. Em média, 1.350,02cm2 de tecido foram retirados de cada
doador, correspondendo a aproximadamente, 25,3 lâminas de tecido. A menor área
obtida de um paciente foi 407,9cm2 de pele, enquanto a maior área
correspondeu a 2.720cm2. Mais de 90% das
coletas realizadas incluíram as regiões do dorso, tronco e partes anterior e
posterior de membros inferiores.
As amostras de tecidos coletadas de um único doador puderam ser utilizadas por cerca
de 2,6 receptores em média, com um aproveitamento máximo de 8 receptores por doador.
Em média, cada receptor utilizou 19,43 lâminas de pele e passou por cerca de 1,68
procedimentos de enxertia, realizados principalmente em pacientes queimados. O
ano
em que mais se realizou procedimentos foi o de 2016, com 71 operações em 38
receptores. O ano menos movimentado foi o de 2013, com 18 procedimentos em 13
receptores. A média anual de procedimentos foi de 46,43 (Figura 2).
Figura 2 - Quantidade de procedimentos de enxertia e quantidade de receptores
por ano.
Figura 2 - Quantidade de procedimentos de enxertia e quantidade de receptores
por ano.
Desde 2013, foram realizados no HUEM, 325 enxertos alógenos que beneficiaram 194
pessoas. Destes receptores, 124 (63,9%) eram do sexo masculino e 70 (36,1%) do
feminino. A idade média dos pacientes que receberam a pele foi de 34,67 anos,
sendo
a idade mínima de 1 ano e a máxima de 63 anos.
As captações de tecidos foram realizadas, principalmente, no próprio HUEM,
contabilizando 74 coletas. Também ocorreram captações em outros locais, Hospital
Universitário Cajuru (HUC) com 61 coletas, Hospital do Trabalhador (HT) com 24
coletas, Hospital Nossa Senhora do Rocio (HNSR) com 24 captações, Hospital da
Cruz
Vermelha (HCV) e Hospital Angelina Caron (HAC) com 13 captações cada um, além
do
Hospital São Vicente (HSV) com 10 coletas (Figura 3).
Figura 3 - Hospitais de captação de tecido.
Figura 3 - Hospitais de captação de tecido.
A maior parte da pele captada, processada e armazenada pelo banco do HUEM (cerca 91%)
foi utilizada em enxertias realizadas na própria instituição, no setor de cirurgia
plástica e queimados. Outros hospitais do Paraná realizaram 7% das operações.
Apenas
2% desses procedimentos foram realizados fora do estado.
DISCUSSÃO
Comparativamente com um estudo prévio realizado na mesma instituição, em 2013, o HUEM
continua sendo o principal hospital para captação de tecido na cidade de Curitiba
e
região metropolitana, apesar de sua participação percentual ter sido reduzida
de
44%6 para 28%, pelo aumento da
contribuição de outros serviços. A média de idade dos pacientes doadores aumentou
de
3612 para 41 anos, sendo que a idade
mínima (16) e a máxima (60) se mantiveram as mesmas6-12. A quantidade
mínima de tecido retirada de um único doador permaneceu semelhante (422,2 para
407,9cm2). Entretanto, a quantidade máxima
de tecido retirado aumentou de 1.252 (em 2013) para 2.720 cm2,6-12 dentre os anos desta pesquisa.
Em 2019, a quantidade média de pele coletada foi de 1.350,02cm2 por
doador, superando dados de 2013, quando foram registrados 1.252,59cm2. Os números do HUEM são semelhantes aos do
banco de pele de Porto Alegre, que obteve uma média de 1.364,46cm2 entre
2008 e 201013. Essa quantia ainda é menor que
a registrada em bancos internacionais, como o de Helsinki, que capta
3.062cm2 de pele por doador, sendo a menor quantidade de um único doador
1.655 cm2,14.
Com relação aos receptores, os homens continuam em maior prevalência (63,9%), assim
como demonstrado em estudo de 20136, quando
correspondiam a 66,7%. Ainda segundo ao estudo feito anteriormente no mesmo serviço,
a média de transplantes realizados por paciente foi de 1,736-12 em 2013.
Esse dado é semelhante ao obtido nesta pesquisa (2013 a 2019), que apontou a média
de 1,68 transplantes por paciente.
Durante esses 7 anos de funcionamento, o banco de pele do HUEM beneficiou 194
pacientes. O HUEM continua sendo a instituição primordial na realização do
transplante de tecidos no Paraná. Em 2013, ainda sob o nome Hospital Universitário
Evangélico de Curitiba (HUEC), abrangeu 88,5% dos transplantes de pele
realizados6-12 e, atualmente, é responsável por 91% destes
procedimentos.
O banco de pele do HUEM realiza em média 21,3 captações por ano. Esse número é
semelhante ao encontrado no banco de tecidos do Hospital de Clínicas de São Paulo,
que registrou média de 25,3 captações por ano, entre 2001 e 200610. Entre 2001 e 2008, o centro de captação de
pele de Helsinki realizou a coleta do tecido de 7 a 20 doadores, com média anual
de
14,414.
CONCLUSÃO
O banco de pele do HUEM disponibilizou aloenxertos que beneficiaram 194 pessoas em
7
anos de funcionamento. Em sua maioria, os doadores e receptores eram do sexo
masculino e tinham, aproximadamente, 40 anos de idade. O número de captações
realizadas por este banco de pele foi compatível com o de outras instituições
do
Brasil.
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4
fev 1997: Seção 1: 1; [acesso em 2021 Mar 02]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm
8. Lei no 10.211, de 23 de março de 2001 (BR). Altera dispositivos da
Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que "dispõe sobre a remoção de órgãos,
tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento". Diário
Oficial da União, Brasília (DF), 23 mar 2001: Seção 1: 1; [acesso em 2020 Jul
06]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10211.htm
9. Lei n°9.175, de 18 de outubro de 2017 (BR). Regulamenta a Lei nº
9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos,
células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Diário
Oficial da União, Brasília (DF), 18 out 2017: Seção 1: 1; [acesso em 2021 Mar
02]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9175.htm
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1. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná,
Medicina, Curitiba, PR, Brasil.
2. Hospital Universitário Evangélico Mackenzie,
Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados, Curitiba, PR, Brasil.
Autor correspondente:
Giovana Landal de Almeida Lobo Rua Padre Anchieta, 1846, Conjunto
103, Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80730-000 E-mail:
giovana.landau@gmail.com
Artigo submetido: 08/05/2020.
Artigo aceito: 10/01/2021.
Conflitos de interesse: não há.