INTRODUÇÃO
Os cânceres de lábio são as mais frequentes neoplasias malignas a acometer a cavidade
oral1. Até 90% dos casos acometem o lábio inferior, sendo carcinoma espinocelular (CEC)
o tipo histológico mais prevalente2. Em contraste, o lábio superior, quando acometido, tem o carcinoma basocelular (CBC)
como o tipo histológico mais frequente. Dentre os fatores etiológicos mais relacionados,
estão o tabagismo, exposição à radiação ultravioleta e ao arsênico. A queilite crônica
actínica é a lesão precursora do CEC3.
A reconstrução do lábio após retirada dessas lesões é complexa devido à presença de
estruturas móveis que precisam de funcionamento mecânico e estético diferenciados,
tanto quando estáticos, quanto quando em movimento4. Apesar de defeitos menores que 30% do tamanho do lábio inferior poderem ser reparados
primariamente, a necessidade de margens cirúrgicas apropriadas no caso de lesões malignas
geralmente suscita a realização de retalhos, devido ao tamanho do defeito final, em
geral, ser maior que um terço ou, em casos extremos, dois terços das dimensões do
lábio original5. Este relato objetiva mostrar uma solução simplificada, de boa evolução clínica e
com baixo índice de sequelas para a retirada de extensa quantidade de lábio inferior
em paciente portador de CCE e alta carga tabágica.
RELATO DE CASO
Paciente masculino, proveniente da zona rural de Minas Gerais, com tumor de lábio
inferior, foi atendido no ambulatório de cirurgia plástica do Hospital das Clínicas
da Universidade Federal de Minas Gerais. Relata que a lesão começou como placa esbranquiçada
friável e dolorosa, tendo sido seu crescimento negligenciado por dois anos. Procurou
atendimento devido ao surgimento de estomatite angular e sangramento constante pela
lesão, o que lhe impedia de fumar (Figura 1). Tabagista de 42 anos anos-maço (cigarro- de-palha e cachimbo). Etilista moderado
de derivados de cevada e destilados. Sem outras comorbidades diagnosticadas no momento
da consulta. Negava uso de quaisquer medicamentos ou drogas ilícitas. Negava alergias
conhecidas. Usuário de próteses dentárias superior e inferior.
Figura 1 - Pré-operatório.
Figura 1 - Pré-operatório.
No exame clínico, paciente apresentava ectrópio a esquerda, ceratose actínica multifocal
e cicatrizes de crioterapia, secundárias a outra cirurgia para retirada de tumores
de pele. Não apresentava linfonodomegalias cervicais palpáveis, nem sinais ou sintomas
em outros sistemas.
Ao exame tomográfico, apresentava lesão hiperdensa em lábio inferior, ocupando 39%
da sua extensão, sem infiltração óssea. Não apresentava linfonodomegalias cervicais
ou occipitais no exame.
Foi submetido à excisão da lesão em ambiente hospitalar, sob regime de hospital-dia.
Para reconstrução, foi marcado com caneta dermográfica a lesão com margens radiais
de 1cm, além de retalho de Bernard-Burow bilateralmente (Figura 2).
Figura 2 - Marcação cirúrgica.
Figura 2 - Marcação cirúrgica.
O procedimento foi feito sob monitorização contínua, com infiltração de solução anestésica
adrenalizada 1:80.000 (bupivacaína 0,5% 20ml + lidocaína 2% 20ml + soro fisiológico
40ml) localmente, além de bloqueio bilateral dos nervos mentonianos e infraorbitários.
A incisão (em plano total) começou na margem marcada, passando pela rima bucal direita,
com preservação do modíolo, e margeando a subunidade mentoniana. O defeito final ocupou,
aproximadamente, 60% da extensão total do lábio inferior (Figura 3).
Figura 3 - Defeito após excisão da lesão com margens.
Figura 3 - Defeito após excisão da lesão com margens.
Trocados os materiais cirúrgicos, a fim de se resguardar os princípios oncocirúrgicos,
procedeu-se à realização de incisão mucosa na face bucal, desde o primeiro molar inferior
direito até o primeiro molar inferior esquerdo (46-36), com realização de extensão
jugal, cranial e oblíqua, em direção ao segundo molar superior direito. Realizou-se
o descolamento subperiosteal do retalho gengivolabial até a região do gnátio, com
preservação dos feixes mentonianos (Figura 4).
Figura 4 - Desenho esquemático da área de descolamento mucoperiosteal. Os limites laterais da
incisão em "cutback", diferentemente de uma incisão reta, facilitarão o avanço dos
retalhos.
Figura 4 - Desenho esquemático da área de descolamento mucoperiosteal. Os limites laterais da
incisão em "cutback", diferentemente de uma incisão reta, facilitarão o avanço dos
retalhos.
Anteriormente, foram excisados os triângulos nasogeniano e mentoniano direitos, com
descolamento parcimonioso do plano supra-SMAS (sistema músculo-aponeurótico superficial),
além de avanço da mucosa jugal para liberação da região do modíolo, visando facilitar
o fechamento labial.
Após confirmação do fechamento sem tensão do defeito, foram realizadas, sucessivamente,
as suturas da mucosa gengivolabial e dos retalhos da camada labial posterior com fios
de poliglactina 4-0 (pontos simples). A camada muscular foi suturada com pontos em
“xis”, também com poliglactina 4-0. A sutura dérmica foi feita por avanço dos retalhos
anteriores, sendo a pele suturada com fios de nylon 5-0 e o lábio com poliglactina
5-0, em pontos simples.
O procedimento teve duração de setenta minutos e a peça foi enviada para exame anatomopatológico,
o qual evidenciou carcinoma de células escamosas bem diferenciado, invasor e ulcerado,
com margens livres.
Orientou-se a realização de bochechos com cetilpiridínio a cada 12 horas no pós-operatório,
além de prescrição analgésica.
O paciente retornou para a retirada dos pontos em sete dias, apresentando fala e alimentação
preservadas, continência oral, mímica simétrica e a possibilidade de retirada de suas
próteses para higienização, sem prejuízos à cicatrização (Figura 5).
Figura 5 - 7º dia de pós-operatório.
Figura 5 - 7º dia de pós-operatório.
Mantinha boa evolução no 50º dia de pós-operatório, quando retornou para o recebimento
do laudo anatomopatológico (Figuras 6 e 7). Seguiu em uso de antimicótico e corticoterapia local para tratamento da estomatite
angular.
Figura 6 - Vista estática no pós-operatório tardio.
Figura 6 - Vista estática no pós-operatório tardio.
Figura 7 - Vista dinâmica no pós-operatório tardio.
Figura 7 - Vista dinâmica no pós-operatório tardio.
DISCUSSÃO
O paciente apresentava vários fatores de risco condizentes com o relatado na literatura3, incluindo agravantes para a cicatrização operatória, como o tabagismo, que não foi
interrompido, mesmo após as devidas orientações.
Os objetivos básicos da reconstrução de lábio (preservação da função, reconstituição
muscular e da competência esfincteriana oral, fechamento em três planos e alinhamento
acurado do vermelhão)3-5 foram conseguidos, através de técnica simples e de fácil reprodução, com bom resultado
estético final.
Outras opções disponíveis para o caso, como o retalho de Karapandzic ou de Fujimori,
possuem um grau maior de complexidade4,6 e foram deixados como alternativa de resgate em caso de recidiva ou excisão de margens
insuficiente.
A reconstrução deve contemplar o plano cutâneo, muscular e mucoso, na profundidade
do sulco vestibular inferior. Muita ênfase existe na solução para o fechamento cutâneo
e, sempre que possível, com fechamento de músculo inervado (funcional)4,7. Contudo, poucos são os relatos de tratamento do plano mucoso na região vestibular
e parede posterior do lábio inferior. Uma das manobras simples e eficientes para a
reconstrução dessa porção anatômica é o descolamento mucoperiosteal com incisões aliviadoras
(“cutback”) posteriores, de maneira a permitir o avanço de todas as estruturas no sentido do
fechamento labial em todas as camadas. Isso reduz a tensão no fechamento muscular
e cutâneo, além de manter a profundidade vestibular e orientar a sobra de mucosa no
sentido do vermelhão, utilizando-a caso seja necessário.
A realização do “cutback” na mucosa jugal aliviou a tensão sob a sutura mucosa, geralmente friável e exposta
às deiscências, o que, associada à dissecção por planos (diferente do proposto inicialmente
por Bernard e Burow)8, pode ter influenciado positivamente na evolução pós-operatória, culminando no bom
resultado oncológico, funcional e estético, além de garantir um bom nível de satisfação
do paciente.
CONCLUSÃO
Conclui-se que a sugestão técnica apresentada pode ajudar outros cirurgiões a solucionarem
casos de difícil fechamento, proporcionando a reserva de retalhos mais complexos para
defeitos que excedam dois terços do tamanho do lábio, além de formalizar uma descrição
objetiva sobre o tratamento do plano mucoso, negligenciado nas literaturas atuais.
REFERÊNCIAS
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modification for reconstruction of upper lip. J Clin Anal Med. 2017;8(Suppl 1):14-6.
2. Mahmoud WH. Surgical outcome of lower lip reconstruction using the Webster flap. Merit
Res J Med Med Sci. 2016;4(8):399-405.
3. Goldman A, Wollina U, França K, Lotti T, Tchernev G. Lip repair after mohs surgery
for squamous cell carcinoma by bilateral tissue expanding vermillion myocutaneous
flap (Goldstein technique modified by Sawada). Open Access Maced J Med Sci. 2018 Jan;6(1):93-5.
4. Denadai R, Raposo-Amaral CE, Buzzo CL, Raposo-Amaral CA. Functional lower lip reconstruction
with the modified Bernard-Webster flap. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2015 Nov;68(11):1522-8.
5. Ebrahimi A, Motamedi MHK, Ebrahimi A, Kazemi M, Shams A, Hashemzadeh H. Lip reconstruction
after tumor ablation. World J Plast Surg. 2016 Jan;5(1):15-25.
6. Kerawala C, Roques T, Jeannon JP, Bisase B. Oral cavity and lip cancer: United Kingdom
national multidisciplinary guidelines. J Laryngol Otol. 2016 May;130(Supl 2):S83-S9.
7. Sane VD, Rathi P, Narla B, Khandelwal S, Pathan W. Karapandzic flap: a useful option
for reconstruction of lower lip. J Craniofac Surg. 2018 Dec;30(1):e32-e4.
8. Neligan PC, Gottlieb LJ. Lip reconstruction. 12. In: Neligan PC, Gottlieb LJ, eds.
Plastic surgery. 4a ed. London: Elsevier; 2018. v. 3. p. 306-28
1. Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais, Serviço de Cirurgia
Plástica, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Autor correspondente: Sergio Antonio Saldanha Rodrigues Filho, Avenida Professor Alfredo Balena, 110, 7º andar, Centro, Belo Horizonte, MG, Brasil.
CEP: 30130-100. E-mail: drsergiorodrigues@gmail.com
Artigo submetido: 07/01/2019.
Artigo aceito: 15/07/2020.
Conflitos de interesse: não há.