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Case Report - Year2020 - Volume35 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2020RBCP0084

RESUMO

O câncer de lábio corresponde a 25-30% de todos os cânceres de boca, sendo mais frequente o de lábio inferior. O carcinoma de células escamosas (CCE) é o subtipo mais incidente, estando o tabagismo como um dos principais fatores de risco. O relato demonstra técnica simples e efetiva para tratamento cirúrgico de CCE no lábio inferior de paciente tabagista. A realização de retalho unilateral de Bernard-Burow, mesmo em defeito maior que 50% do diâmetro inicial do lábio, mostrou-se factível. A adição de "cutback" na mucosa e dissecção parcimoniosa por planos pode ter propiciado uma boa evolução estética e funcional, já que determinou alívio na tensão sobre as suturas. A menor complexidade de execução desta reconstrução, se comparada a outras técnicas, pode garantir uma boa alternativa na tentativa de diminuir a morbidade pós-operatória neste tipo de cirurgia.

Palavras-chave: Face; Neoplasias labiais; Carcinoma de células escamosas; Tabagismo; Cirurgia plástica; Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos

ABSTRACT

Lip cancer corresponds to 25-30% of all oral cancers, with the lower lip being more frequent. Squamous cell carcinoma (SCC) is the most common subtype, with smoking as one of the main risk factors. The report demonstrates a simple and effective technique for SCC's surgical treatment on a smoking patient's lower lip. Even in a defect larger than 50% of the initial lip diameter, the unilateral Bernard-Burow flap proved feasible. The addition of "cutback" in the mucosa and parsimonious dissection by planes may have provided a good aesthetic and functional evolution since it determined tension relief on the sutures. The less complex execution of this reconstruction, compared to other techniques, can guarantee a good alternative to decrease postoperative morbidity in this type of surgery.

Keywords: Face; Lip neoplasms; Squamous cell carcinoma; Smoking; Plastic surgery; Reconstructive surgical procedures


INTRODUÇÃO

Os cânceres de lábio são as mais frequentes neoplasias malignas a acometer a cavidade oral1. Até 90% dos casos acometem o lábio inferior, sendo carcinoma espinocelular (CEC) o tipo histológico mais prevalente2. Em contraste, o lábio superior, quando acometido, tem o carcinoma basocelular (CBC) como o tipo histológico mais frequente. Dentre os fatores etiológicos mais relacionados, estão o tabagismo, exposição à radiação ultravioleta e ao arsênico. A queilite crônica actínica é a lesão precursora do CEC3.

A reconstrução do lábio após retirada dessas lesões é complexa devido à presença de estruturas móveis que precisam de funcionamento mecânico e estético diferenciados, tanto quando estáticos, quanto quando em movimento4. Apesar de defeitos menores que 30% do tamanho do lábio inferior poderem ser reparados primariamente, a necessidade de margens cirúrgicas apropriadas no caso de lesões malignas geralmente suscita a realização de retalhos, devido ao tamanho do defeito final, em geral, ser maior que um terço ou, em casos extremos, dois terços das dimensões do lábio original5. Este relato objetiva mostrar uma solução simplificada, de boa evolução clínica e com baixo índice de sequelas para a retirada de extensa quantidade de lábio inferior em paciente portador de CCE e alta carga tabágica.

RELATO DE CASO

Paciente masculino, proveniente da zona rural de Minas Gerais, com tumor de lábio inferior, foi atendido no ambulatório de cirurgia plástica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Relata que a lesão começou como placa esbranquiçada friável e dolorosa, tendo sido seu crescimento negligenciado por dois anos. Procurou atendimento devido ao surgimento de estomatite angular e sangramento constante pela lesão, o que lhe impedia de fumar (Figura 1). Tabagista de 42 anos anos-maço (cigarro- de-palha e cachimbo). Etilista moderado de derivados de cevada e destilados. Sem outras comorbidades diagnosticadas no momento da consulta. Negava uso de quaisquer medicamentos ou drogas ilícitas. Negava alergias conhecidas. Usuário de próteses dentárias superior e inferior.

Figura 1 - Pré-operatório.

No exame clínico, paciente apresentava ectrópio a esquerda, ceratose actínica multifocal e cicatrizes de crioterapia, secundárias a outra cirurgia para retirada de tumores de pele. Não apresentava linfonodomegalias cervicais palpáveis, nem sinais ou sintomas em outros sistemas.

Ao exame tomográfico, apresentava lesão hiperdensa em lábio inferior, ocupando 39% da sua extensão, sem infiltração óssea. Não apresentava linfonodomegalias cervicais ou occipitais no exame.

Foi submetido à excisão da lesão em ambiente hospitalar, sob regime de hospital-dia. Para reconstrução, foi marcado com caneta dermográfica a lesão com margens radiais de 1cm, além de retalho de Bernard-Burow bilateralmente (Figura 2).

Figura 2 - Marcação cirúrgica.

O procedimento foi feito sob monitorização contínua, com infiltração de solução anestésica adrenalizada 1:80.000 (bupivacaína 0,5% 20ml + lidocaína 2% 20ml + soro fisiológico 40ml) localmente, além de bloqueio bilateral dos nervos mentonianos e infraorbitários.

A incisão (em plano total) começou na margem marcada, passando pela rima bucal direita, com preservação do modíolo, e margeando a subunidade mentoniana. O defeito final ocupou, aproximadamente, 60% da extensão total do lábio inferior (Figura 3).

Figura 3 - Defeito após excisão da lesão com margens.

Trocados os materiais cirúrgicos, a fim de se resguardar os princípios oncocirúrgicos, procedeu-se à realização de incisão mucosa na face bucal, desde o primeiro molar inferior direito até o primeiro molar inferior esquerdo (46-36), com realização de extensão jugal, cranial e oblíqua, em direção ao segundo molar superior direito. Realizou-se o descolamento subperiosteal do retalho gengivolabial até a região do gnátio, com preservação dos feixes mentonianos (Figura 4).

Figura 4 - Desenho esquemático da área de descolamento mucoperiosteal. Os limites laterais da incisão em "cutback", diferentemente de uma incisão reta, facilitarão o avanço dos retalhos.

Anteriormente, foram excisados os triângulos nasogeniano e mentoniano direitos, com descolamento parcimonioso do plano supra-SMAS (sistema músculo-aponeurótico superficial), além de avanço da mucosa jugal para liberação da região do modíolo, visando facilitar o fechamento labial.

Após confirmação do fechamento sem tensão do defeito, foram realizadas, sucessivamente, as suturas da mucosa gengivolabial e dos retalhos da camada labial posterior com fios de poliglactina 4-0 (pontos simples). A camada muscular foi suturada com pontos em “xis”, também com poliglactina 4-0. A sutura dérmica foi feita por avanço dos retalhos anteriores, sendo a pele suturada com fios de nylon 5-0 e o lábio com poliglactina 5-0, em pontos simples.

O procedimento teve duração de setenta minutos e a peça foi enviada para exame anatomopatológico, o qual evidenciou carcinoma de células escamosas bem diferenciado, invasor e ulcerado, com margens livres.

Orientou-se a realização de bochechos com cetilpiridínio a cada 12 horas no pós-operatório, além de prescrição analgésica.

O paciente retornou para a retirada dos pontos em sete dias, apresentando fala e alimentação preservadas, continência oral, mímica simétrica e a possibilidade de retirada de suas próteses para higienização, sem prejuízos à cicatrização (Figura 5).

Figura 5 - 7º dia de pós-operatório.

Mantinha boa evolução no 50º dia de pós-operatório, quando retornou para o recebimento do laudo anatomopatológico (Figuras 6 e 7). Seguiu em uso de antimicótico e corticoterapia local para tratamento da estomatite angular.

Figura 6 - Vista estática no pós-operatório tardio.

Figura 7 - Vista dinâmica no pós-operatório tardio.

DISCUSSÃO

O paciente apresentava vários fatores de risco condizentes com o relatado na literatura3, incluindo agravantes para a cicatrização operatória, como o tabagismo, que não foi interrompido, mesmo após as devidas orientações.

Os objetivos básicos da reconstrução de lábio (preservação da função, reconstituição muscular e da competência esfincteriana oral, fechamento em três planos e alinhamento acurado do vermelhão)3-5 foram conseguidos, através de técnica simples e de fácil reprodução, com bom resultado estético final.

Outras opções disponíveis para o caso, como o retalho de Karapandzic ou de Fujimori, possuem um grau maior de complexidade4,6 e foram deixados como alternativa de resgate em caso de recidiva ou excisão de margens insuficiente.

A reconstrução deve contemplar o plano cutâneo, muscular e mucoso, na profundidade do sulco vestibular inferior. Muita ênfase existe na solução para o fechamento cutâneo e, sempre que possível, com fechamento de músculo inervado (funcional)4,7. Contudo, poucos são os relatos de tratamento do plano mucoso na região vestibular e parede posterior do lábio inferior. Uma das manobras simples e eficientes para a reconstrução dessa porção anatômica é o descolamento mucoperiosteal com incisões aliviadoras (“cutback”) posteriores, de maneira a permitir o avanço de todas as estruturas no sentido do fechamento labial em todas as camadas. Isso reduz a tensão no fechamento muscular e cutâneo, além de manter a profundidade vestibular e orientar a sobra de mucosa no sentido do vermelhão, utilizando-a caso seja necessário.

A realização do “cutback” na mucosa jugal aliviou a tensão sob a sutura mucosa, geralmente friável e exposta às deiscências, o que, associada à dissecção por planos (diferente do proposto inicialmente por Bernard e Burow)8, pode ter influenciado positivamente na evolução pós-operatória, culminando no bom resultado oncológico, funcional e estético, além de garantir um bom nível de satisfação do paciente.

CONCLUSÃO

Conclui-se que a sugestão técnica apresentada pode ajudar outros cirurgiões a solucionarem casos de difícil fechamento, proporcionando a reserva de retalhos mais complexos para defeitos que excedam dois terços do tamanho do lábio, além de formalizar uma descrição objetiva sobre o tratamento do plano mucoso, negligenciado nas literaturas atuais.

REFERÊNCIAS

1. Ozdogan F, Ozcan M, Selcuk A, Dere H. Bernard-Von Burrow flap and unilateral Webster modification for reconstruction of upper lip. J Clin Anal Med. 2017;8(Suppl 1):14-6.

2. Mahmoud WH. Surgical outcome of lower lip reconstruction using the Webster flap. Merit Res J Med Med Sci. 2016;4(8):399-405.

3. Goldman A, Wollina U, França K, Lotti T, Tchernev G. Lip repair after mohs surgery for squamous cell carcinoma by bilateral tissue expanding vermillion myocutaneous flap (Goldstein technique modified by Sawada). Open Access Maced J Med Sci. 2018 Jan;6(1):93-5.

4. Denadai R, Raposo-Amaral CE, Buzzo CL, Raposo-Amaral CA. Functional lower lip reconstruction with the modified Bernard-Webster flap. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2015 Nov;68(11):1522-8.

5. Ebrahimi A, Motamedi MHK, Ebrahimi A, Kazemi M, Shams A, Hashemzadeh H. Lip reconstruction after tumor ablation. World J Plast Surg. 2016 Jan;5(1):15-25.

6. Kerawala C, Roques T, Jeannon JP, Bisase B. Oral cavity and lip cancer: United Kingdom national multidisciplinary guidelines. J Laryngol Otol. 2016 May;130(Supl 2):S83-S9.

7. Sane VD, Rathi P, Narla B, Khandelwal S, Pathan W. Karapandzic flap: a useful option for reconstruction of lower lip. J Craniofac Surg. 2018 Dec;30(1):e32-e4.

8. Neligan PC, Gottlieb LJ. Lip reconstruction. 12. In: Neligan PC, Gottlieb LJ, eds. Plastic surgery. 4a ed. London: Elsevier; 2018. v. 3. p. 306-28











1. Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais, Serviço de Cirurgia Plástica, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Instituição: Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

COLABORAÇÕES

SASRF Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Preparação do original

MMC Realização das operações e/ou experimentos

TES Realização das operações e/ou experimentos

GMCS Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Revisão e Edição, Supervisão

ACJ Aprovação final do manuscrito, Supervisão

Autor correspondente: Sergio Antonio Saldanha Rodrigues Filho, Avenida Professor Alfredo Balena, 110, 7º andar, Centro, Belo Horizonte, MG, Brasil. CEP: 30130-100. E-mail: drsergiorodrigues@gmail.com

Artigo submetido: 07/01/2019.
Artigo aceito: 15/07/2020.

Conflitos de interesse: não há.

 

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