INTRODUÇÃO
A pandemia decorrente da nova síndrome respiratória denominada Covid- 19 modificou
de forma significativa a rotina e o trabalho de todas especialidades médicas pelo
mundo1-4. Dentre elas, a cirurgia plástica também foi atingida, de modo que as autoridades
sanitárias brasileiras recomendaram o adiamento de cirurgias eletivas, mantendo o
tratamento de casos de urgência ou emergência, como: queimaduras, feridas complexas,
tumores de pele, entre outros. Mesmo com essa restrição, é evidente que todos os pacientes
abordados se expõem à possibilidade de contrair o novo coronavírus Sars-CoV-2 durante
sua estadia na unidade de saúde, seja em regime de internação hospitalar ou ambulatorial5-8.
Neste artigo, relatamos o caso de um paciente tratado pela equipe de Cirurgia Plástica
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo (HCFMRP-USP), que contraiu o vírus Sars- CoV-2 durante a internação,
discutindo o desfecho e as consequências dessa nova experiência.
RELATO DE CASO
Homem de 66 anos, procedente de Orlândia (SP), admitido pela equipe de cirurgia vascular
do HCFMRP-USP no dia 25/03/2020 devido à ferida complexa em tornozelo posterior esquerdo,
de etiologia arterial, com 3 meses de evolução (Figura 1A). Como comorbidades, apresentava diabetes mellitus tipo 2 e tabagismo (40 anos-maço).
Ao exame físico, apresentava pulso femoral presente e pulsos distais ausentes à esquerda,
apesar de boa perfusão. Durante a arteriografia, foi diagnosticado obstrução de tronco
tíbio-fibular esquerdo, sendo indicado tratamento com bypass femoro-tibial posterior, realizado no dia 30/03/2020. No dia seguinte, a equipe de
cirurgia plástica foi chamada para auxílio no manejo da ferida. Logo após a discussão
do caso, no mesmo dia, realizamos desbridamento cirúrgico (Figura 1B) seguido de terapia por pressão negativa (TPN) para acelerar o preparo do leito
da ferida (Figura 1C).
Figura 1 - A. Ferida no tornozelo esquerdo posterior; B. Leito da ferida após desbridamento cirúrgico; C. Preparo do leito da ferida com terapia por pressão negativa; D. Pós-operatório de 5 dias de enxertia de pele para cobertura da ferida com integração
satisfatória do enxerto e áreas de epidermólise.
Figura 1 - A. Ferida no tornozelo esquerdo posterior; B. Leito da ferida após desbridamento cirúrgico; C. Preparo do leito da ferida com terapia por pressão negativa; D. Pós-operatório de 5 dias de enxertia de pele para cobertura da ferida com integração
satisfatória do enxerto e áreas de epidermólise.
O paciente apresentou boa evolução, sendo necessário apenas uma troca da TPN. No dia
06/04/2020, foi submetido à cobertura cutânea da ferida com enxerto de pele parcial
em lâmina, com área doadora de coxa esquerda e curativo de Brown. Devido à ausência
de casos confirmados de Sars-CoV-2 na enfermaria de cirurgia vascular, até então os
cuidados da equipe de saúde se restringiam ao uso máscara facial e luvas de procedimento.
No pós-operatório imediato, o paciente iniciou quadro de tosse seca, sendo que nesse
mesmo dia foi confirmado o diagnóstico pelo vírus Sars-CoV-2 por outro paciente que
estava no mesmo quarto do paciente em questão. Diante disso, realizamos a notificação
de caso suspeito, procedemos com o isolamento de paciente em leito específico e adoção
de medidas de proteção individual, com o uso de “face shield”, avental cirúrgico, uso de óculos de proteção, além da máscara facial. Simultaneamente,
solicitamos radiografia de tórax, testagem para Sars-CoV-2 e hemograma completo.
No dia 08/04/2020, o teste RT-PCR resultou positivo para presença de Sars-CoV-2, a
radiografia de tórax apresentava velamento bilateral em base e o hemograma não evidenciou
alterações. O paciente evoluiu bem, sem febre e sem outras queixas respiratórias.
No 5º dia de pós-operatório, retiramos o curativo de Brown e verificamos boa integração
do enxerto de pele, apesar da presença de áreas de epidermólise (Figura 1D). Ao paciente foi dada alta hospitalar no mesmo dia com orientações de curativos
locais diários domiciliares, realizado pelos familiares do paciente (mediante orientação
por nossa equipe quanto ao uso de proteção) e retorno após o período de isolamento
preconizado (14 dias).
DISCUSSÃO
O manejo de pacientes que necessitam de procedimentos cirúrgicos em meio a uma pandemia
viral deve considerar a adoção de medidas preventivas que reduzam a possibilidade
de transmissão do vírus7-8. Como exemplo, citamos:
• Minimizar o tempo de internação hospitalar;
• Uso de terapias que aceleram o processo terapêutico;
• Isolamento do paciente em casos confirmados;
• Uso de equipamentos de proteção individual (paciente e equipe de saúde).
Neste relato, destacamos que a equipe de cirurgia plástica procurou agir de maneira
precoce em todas as fases do processo, reduzindo a exposição do paciente decorrente
da própria internação em si e reduzindo a possibilidade de transmissão após o diagnóstico.
Logo que foi solicitada, realizamos o atendimento no mesmo dia e já iniciamos o tratamento
com desbridamento cirúrgico e TPN. Optamos pelo uso da TPN para acelerar o preparo
do leito da ferida até o tratamento definitivo (enxertia de pele)9-10. Além disso, foi possível dar alta hospitalar no mesmo dia da retirada do curativo
e verificação da integração do enxerto de pele.
Devido à possibilidade de infecção pelo novo coronavírus no ambiente hospitalar, devemos
seguir as orientações das autoridades e somente realizar cirurgias de urgência ou
emergência durante a pandemia de Covid-19.
CONCLUSÃO
Apesar da infecção deste paciente pelo Sars-CoV-2, enfatizamos que a equipe de cirurgia
plástica deve atuar de maneira precoce durante o processo de tratamento. Optamos por
usar uma tecnologia para acelerar o preparo do leito da ferida (TPN), isolamos o paciente
após confirmação diagnóstica, realizamos os cuidados de proteção individual e diminuímos
o período de internação hospitalar com uso da TPN, enxertia e alta precoce. Como consequência,
acreditamos que tais ações reduziram a possibilidade de disseminação do novo coronavírus
para outros pacientes e para equipe de saúde.
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1. Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto,
SP, Brasil.
Autor correspondente: Pedro Soler Coltro, Avenida Bandeirantes, 3900, Câmpus Universitário, Monte Alegre, Ribeirão Preto,
SP, Brasil. CEP: 14048-900. E-mail: psc@usp.br
Artigo submetido: 21/04/2020.
Artigo aceito: 04/06/2020.
Conflitos de interesse: não há.