INTRODUÇÃO
Os cânceres de cabeça e pescoço, muito relacionados ao etilismo e tabagismo, têm importante
prevalência na população brasileira. Houve um aumento na incidência desse tipo de
câncer de 5,82 por 100 mil habitantes em 2000, para 11,54, em 2008, sendo o carcinoma
espinocelular o tipo histológico mais comum1. Só em 2008, foram diagnosticados 21.875 casos novos1. Um estudo mais recente apontou um total de 220.390 casos diagnosticados entre 2000
e 20142. A transposição de retalhos livres é uma das técnicas de escolha na reconstrução
oncológica de cabeça e pescoço3. A grande vascularização dessa região normalmente permitiria as anastomoses microvasculares
com vasos receptores cervicais. Contudo, muitos desses pacientes são submetidos à
radioterapia adjuvante. A radioterapia altera sobremaneira a permeabilidade vascular
da região, dificultando a utilização de vasos receptores (principalmente veias) para
o retalho microcirúrgico3.
O enxerto de veias de outras partes do corpo, como a veia safena é a escolha padrão
nessa situação relatada acima4. Entretanto, essa opção traz a necessidade de duas anastomoses na veia enxertada;
uma no vaso receptor e outra na veia do próprio retalho. Aumentando assim o risco
de trombose e o tempo cirúrgico, além de aumentar a taxa de insucesso da reconstrução4.
Uma alternativa ao enxerto de veia é a transposição de veia cefálica5. Pois a veia cefálica está situada longe da região submetida à radioterapia. E tem
curso e calibre relativamente constantes, além de um número pouco variável de tributárias.
A veia cefálica tem se mostrado extremamente útil na reconstrução de cabeça e pescoço4,5. Essa transposição venosa necessita apenas de uma anastomose cervical, no retalho,
tendo menor risco de trombose e tempo de execução.
OBJETIVO
Avaliar as características anatômicas da veia cefálica em cadáveres para transposição
cervical e o uso em retalhos microcirúrgicos.
MÉTODOS
Cadáveres
O presente estudo é primário. Foram dissecadas seis veias cefálicas de três cadáveres:
uma mulher de 71 anos e, dois homens de 50 e 62 anos, no serviço de verificação de
óbito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SVO-FMUSP), no período
de outubro a dezembro de 2019. Foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP) da Universidade Federal de São Paulo sob o número 0675/2019, após o seu registro
na Plataforma Brasil.
Técnica cirúrgica
Primeiramente, foi identificado o sulco deltopeitoral para delimitar a incisão; o
corte foi feito entre 1 e 2cm lateral em relação ao sulco, para evitar lesão direta
da veia cefálica. E progredido a incisão distal ao nível médio umeral, na superfície
lateral do braço (topografia usual de veia cefálica). Identificada a veia, suas tributárias
foram ligadas e a ligadura da veia distal, além de rotação da axila de distal para
proximal (Figuras 1 e 2 ). A veia foi transposta até o pescoço por cima da clavícula, conforme ilustrado
na Figura 3.
Figura 1 - Dissecção da veia cefálica esquerda, incisão realizada próximo ao sulco deltopeitoral
e ligadura das tributárias. Foi dissecado o pescoço apenas para fins ilustrativos
anatômicos
Figura 1 - Dissecção da veia cefálica esquerda, incisão realizada próximo ao sulco deltopeitoral
e ligadura das tributárias. Foi dissecado o pescoço apenas para fins ilustrativos
anatômicos
Figura 2 - Dissecção da veia cefálica direita, incisão realizada próximo ao sulco deltopeitoral
e ligadura das tributárias. Foi dissecado o pescoço apenas para fins ilustrativos
anatômicos.
Figura 2 - Dissecção da veia cefálica direita, incisão realizada próximo ao sulco deltopeitoral
e ligadura das tributárias. Foi dissecado o pescoço apenas para fins ilustrativos
anatômicos.
Figura 3 - Transposição da veia cefálica para região cervical. A. Observe que há a possibilidade de extensão da veia cefálica esquerda até a região
contralateral cervical, evidenciando versatilidade da veia cefálica; B. Demonstração de ambas veias cefálicas dissecadas e transpostas para a região cervical.
Figura 3 - Transposição da veia cefálica para região cervical. A. Observe que há a possibilidade de extensão da veia cefálica esquerda até a região
contralateral cervical, evidenciando versatilidade da veia cefálica; B. Demonstração de ambas veias cefálicas dissecadas e transpostas para a região cervical.
RESULTADOS
As veias apresentaram média de comprimento de 18,75±1,84cm, e número de tributárias
com variação de 7-9. O diâmetro coincidiu em ambas as veias de cada cadáver, conforme
evidenciado na Tabela 1. O parâmetro anatômico usado para identificá-las (sulco deltopeitoral) se mostrou
confiável, possibilitando uma dissecação previsível.
Tabela 1 - Peso dos pacientes e volume transfundido.
Veia Cefálica |
Lado |
Gênero |
Idade |
Altura\Peso (m\Kg) |
Nº de Tributárias |
Comprimento (cm) |
Diâmetro (mm) |
1 |
D |
Masculino |
50 |
1,60\71 |
8 |
19 |
4 |
2 |
E |
Masculino |
50 |
1,60\71 |
7 |
19,5 |
4 |
3 |
D |
Masculino |
62 |
1,63\62 |
9 |
20,3 |
3 |
4 |
E |
Masculino |
62 |
1,63\62 |
8 |
18,9 |
3 |
5 |
D |
Feminino |
71 |
1,52\55 |
7 |
17,8 |
3 |
6 |
E |
Feminino |
71 |
1,52\55 |
8 |
17 |
3 |
Tabela 1 - Peso dos pacientes e volume transfundido.
DISCUSSÃO
A reconstrução oncológica de cabeça e pescoço passou por diferentes estágios, na década
de 40, houve várias tentativas de se corrigir esses defeitos com retalhos locais e
enxertos de pele, os quais não apresentaram bons resultados a longo prazo, evoluindo
com fístulas orofaciais, deiscências, necroses e deformidades complexas resultantes
da reconstrução6. Com o tempo, surgiram outras opções, como o retalho pediculado temporofrontal7 e o retalho miocutâneo regional de peitoral maior8. Contudo, a dificuldade de rotação axial e a o fato de se ter pouco tecido disponível
adjacente à lesão fez com que os retalhos livres despontassem como uma das principais
opções para reconstrução nesses casos9. Eles são mais vantajosos que os retalhos axiais pediculados, por permitirem melhor
suprimento sanguíneo, menor tensão, maior maleabilidade, moldabilidade e maior extensão
de tecido para a reconstrução1,2.
Em pacientes que não realizaram tratamento radioterápico ou cirúrgico prévio, é possível
usar os próprios vasos receptores do pescoço e da face, como: ramos da artéria carótida
externa e tributárias da veia jugular interna, ou a veia jugular externa10. A transposição de veias da região torácicas tem sido uma opção viável para contornar
o comprometimento da vascularização no paciente submetido à radioterapia cervicofacial10,11.
Nessa técnica descrita, a veia cefálica transposta será anastomosada à veia do retalho,
fazendo uma única anastomose, diminuindo o risco de trombose e diminuindo a taxa de
insucesso da reconstrução. Há várias opções possíveis de vasos para serem transpostos,
além da veia cefálica, temos a veia toracodorsal e a veia cervical transversa11. Dentre essas opções, a veia cefálica se apresenta como uma das principais alternativas,
pois tem diâmetro adequado, dissecção previsível e está situada mais distante do local
usual de radioterapia para neoplasia de cabeça e pescoço12,13.
Nosso trabalho corroborou dados da literatura, mostrando o perfil constante da veia
em relação ao calibre e comprimento, além do número pouco variável de tributárias.
Ela permite uma excelente drenagem venosa e geralmente está livre da ablação radioterápica
devido à sua localização torácica lateral.
A literatura traz vários relatos sobre o sucesso do uso da veia cefálica11,13,14, o que confirma essa técnica como uma opção confiável na reconstrução de cabeça e
pescoço.
CONCLUSÃO
A transposição de veia cefálica se mostra como uma opção interessante para a reconstrução
oncológica de cabeça e pescoço, por ter características constantes e localização previsível,
podendo ser uma técnica relevante ao arsenal terapêutico do cirurgião plástico reconstrutor.
REFERÊNCIAS
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and irradiated neck. Microsurgery. 2009;29:1-7.
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head and neck free flap reconstruction. Plast Reconstr Surg. 2018 Out;142(4):1025-34.
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neck. Otolaryngol Head Neck Surg. 2016;155(2):367-8.
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7. McGregor IA. The temporal flap in intra-oral cancer: its use in repairing the post-excisional
defect. Br J Plast Surg. 1963 Out;16:318-35.
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in the head and neck. Plast Reconstr Surg. 1979 Jan;63(1):73- 81.
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advance in head and neck reconstruction. Acta Otolaryngol. 2002;122(7):779-84.
11. Vasilakis V, Patel HDL, Chen HC. Head and neck reconstruction using cephalic vein
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12. Kubo T, Yano K, Hosokawa K. Management of flaps with compromised venous outflow in
head and neck microsurgical reconstruction. Microsurgery. 2002;22(8):391-5.
13. Chan D, Rabbani CC, Inman JC, Ducic Y. Cephalic vein transposition in the vessel-depleted
neck. Otolaryngol Head Neck Surg. 2016;155(2):367-8.
14. Inoue T, Fujino T. An upper arm flap, pedicled on the cephalic vein with arterial
anastomosis, for head and neck reconstruction. Br J Plast Surg. 1986 Oct;39(4):451-3.
1. Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Roney Gonçalves Fechine Feitosa, Rua Borges Lagoa 1083, Sala 62, Vila Clementino, SP, Brasil. CEP: 04038-032. E-mail:
roneyfechine@gmail.com
Artigo submetido: 27/04/2020.
Artigo aceito: 19/07/2020.
Conflitos de interesse: não há.