INTRODUÇÃO
O desenvolvimento do palato ocorre entre a quinta e décima segunda semana de vida
embrionária, com o período mais crítico ocorrendo entre a sexta e a nona semana. A
fissura labiopalatina (FLP) ocorre pela não fusão dos processos maxilares e nasomedial
durante o período embrionário1.
Dentre as malformações craniofaciais, as FLP são as mais comuns. Num amplo estudo
realizado em vários países da América Latina, a prevalência dessa malformação foi
de 0,87 por mil nascimentos quando avaliado as fendas labiais com ou sem envolvimento
do palato e de 0,13 por mil nascimentos quando avaliados as fissuras exclusivamente
palatais2.
Há uma série de fatores etiológicos relacionados às FLP, incluindo fatores genéticos,
ambientais e exposição a teratogênicos. Dessa forma, são malformações essencialmente
multifatoriais e ainda não completamente definidas1. As FLP geralmente são classificadas conforme a forma e a extensão das estruturas
envolvidas. Uma das classificações mais comumente utilizadas é a classificação de
Spina, que tem como referencial base o forame incisivo3. Essa classificação subdivide em completa e incompleta, uni ou bilateral, de acordo
com o grau de acometimento.
OBJETIVO
Dessa forma, o objetivo desse estudo foi verificar a prevalência, num centro de atendimento
especializado, das diferentes variedades morfológicas de FLP baseada na classificação
de Spina, além de classificá-las com detalhes das estruturas acometidas.
MÉTODOS
É um estudo observacional, transversal, retrospectivo, baseado em revisão de prontuários
de indivíduos nascidos entre os anos de 1989 e 2014 e acompanhados em um centro médico
terciário especializado no tratamento de malformações craniofaciais e situado no sul
do Brasil. A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética institucional sob o número
1.779.572 em 2016. As variáveis analisadas foram o sexo do paciente e o tipo de fissura,
baseado no modelo proposto por Spina. As fissuras foram divididas em (com as devidas
variações de lateralidade, direita, esquerda ou mediana): fissura pré- forame unilateral
incompleta, fissura pré-forame bilateral incompleta, fissura pré-forame unilateral
completa, fissura pré-forame bilateral completa, fissura transforame unilateral, fissura
transforame bilateral, fissura pós-forame incompleta, fissura pós-forame completa
e as fissuras raras. Além disso, detalhes sobre o acometimento do lábio, arcada dentária,
filtro nasal, palato mole e/ou palato duro e úvula também foram coletados. As informações
levantadas foram tabuladas em planilhas Excel e submetidas à análise estatística. Os testes qui-quadrado de Pearson e exato de
Fisher foram empregados na avaliação de possíveis correlações entre variáveis. A análise
estatística foi feita usando o programa Statistical Package for Social Science (SPSS). O nível de significância considerado foi de 0,05.
RESULTADOS
Foram encontrados 1.151 casos cadastrados entre os anos de 1989 e 2014 no centro médico.
Os prontuários de indivíduos com outros tipos de malformações faciais foram excluídos,
bem como os com informações incompletas ou ausentes, num total de 73. Assim, a amostra
final foi de 1.078 indivíduos.
Em relação ao sexo dos casos registrados, são mais comuns pacientes masculinos (585
- 54,3%) do que femininos (493 - 45,7%) (p=0,005). A fissura mais presente no sexo feminino foi a do tipo pós- forame com 180
casos (16,7%), diferentemente do sexo masculino, que teve maior número de pacientes
com fenda transforame com 272 casos (25,2%) (Tabela 1).
Tabela 1 - Frequência absoluta (N) e a proporção, em porcentagem, da localização das fissuras
de lábio e/ou palato encontradas em relação ao sexo.
Tipo de fissura |
Feminino |
Masculino |
Total |
N |
% |
N |
% |
N |
% |
Pós-forame |
180 |
16,7 |
132 |
12,2 |
312 |
28,9 |
Pré-forame |
146 |
13,5 |
181 |
16,8 |
327 |
30,3 |
Transforame |
167 |
15,5 |
272 |
25,2 |
439 |
40,7 |
Total |
493 |
45,7 |
585 |
54,3 |
1078 |
100 |
Tabela 1 - Frequência absoluta (N) e a proporção, em porcentagem, da localização das fissuras
de lábio e/ou palato encontradas em relação ao sexo.
Comparando-se as fissuras quanto a sua presença uni ou bilateral, naquelas que podem
ser classificados como tal, ou seja, desconsiderando as fissuras pós-forame, observou-se
que, de um total de 766 casos, 591 (77,2%) são unilaterais e 175 (22,8%) são bilaterais,
sendo, independentemente do sexo, aproximadamente três vezes mais prevalente a unilateral
do que a bilateral.
As fissuras unilaterais podem ocorrer do lado direito ou esquerdo. A distribuição
das fendas unilaterais localizadas à esquerda foi de 368 (62,2%), maior do que à direita
com 222 (37,5%) casos. Foi identificado 1 (0,2%) paciente com fissura rara do tipo
mediana.
Na divisão em completas ou incompletas, levando em consideração que as fissuras transforame
sempre são classificadas como completas, a fissura pós-forame com maior prevalência
foi a incompleta em 257 pacientes (23,8%), já nas pré-forame a fissura do tipo completa
apareceu mais, em 139 pacientes (12,9%) (Tabela 2).
Tabela 2 - Frequência das formas completa ou incompleta comparadas entre as fissuras pré, pós
e transforame, em número (N) e porcentagem.
Tipo de fissura |
Completa |
Incompleta |
Total |
N |
% |
N |
% |
N |
% |
Pós forame |
55 |
5,1 |
257 |
23,8 |
312 |
28,9 |
Pré forame |
139 |
12,9 |
188 |
17,4 |
327 |
30,3 |
Transforame |
439 |
40,7 |
0 |
0 |
439 |
40,7 |
Total |
633 |
58,7 |
445 |
41,3 |
1078 |
100 |
Tabela 2 - Frequência das formas completa ou incompleta comparadas entre as fissuras pré, pós
e transforame, em número (N) e porcentagem.
A fissura mais prevalente na amostra geral foi a transforame unilateral com 307 indivíduos
(28,5%) seguida da pós-forame incompleta com 257 (23,8%). As fissuras raras (n=2)
incluíram a fissuras alveolar (n=1) e Epignathus (mediana, n=1) (Tabela 3).
Tabela 3 - Frequência em número (N) e porcentagem (%) dos tipos de fissura.
Tipo de fissura |
N |
% |
Transforame unilateral |
307 |
28,5 |
Pós-forame incompleta |
257 |
23,8 |
Pré-forame unilateral incompleta |
160 |
14,8 |
Transforame bilateral |
131 |
12,2 |
Pré-forame unilateral completa |
123 |
11,4 |
Pós-forame completa |
55 |
5,1 |
Pré-forame bilateral incompleta |
27 |
2,5 |
Pré-forame bilateral completa |
16 |
1,5 |
Raras |
2 |
0,2 |
Total |
1078 |
100,00 |
Tabela 3 - Frequência em número (N) e porcentagem (%) dos tipos de fissura.
Ao se considerar as estruturas anatômicas que podem estar envolvidas nos diversos
tipos de fissuras, se estabeleceu os seguintes aspectos: para caracterizar-se como
fissura completa, esta deve estar presente em todas as estruturas anatômicas que podem
estar envolvidas, ou seja, a fenda pré-forame é completa quando acomete lábio, arcada
dentária até o forame incisivo (12,9% dos pacientes da amostra) e a fissura pós-forame
completa acomete desde o forame incisivo ao fim do palato mole, além da úvula (5,1%).
Quanto à localização da malformação nas fissuras do tipo incompletas, utilizam -se
as mesmas estruturas, aparecendo de forma parcial ou isoladas, como pode ser observado
na Tabela 3. Dentre as referências anatômicas afetadas, pode-se perceber um predomínio do acometimento
exclusivamente labial em 167 pacientes que apresentavam fissura pré-forame incompleta.
Em 24 pacientes foi observada apenas uma linha avermelhada no filtro nasal juntamente
com o lábio, chamada fissura cicatricial. Essa cicatriz pode ocorrer combinada com
fissura labial (2 casos na amostra) bem como com outros tipos de fissura, como a pós-forame
incompleta (1 paciente). Quando consideradas as pós-forame houve prevalência do acometimento
isolado do palato mole (129 casos) seguido do palato duro de forma parcial associado
ao palato mole (89 casos). As fissuras submucosas apareceram em 12 pacientes com fissura
pós-forame e em 2 pacientes com fissura transforame sem associação com outras partes
moles, e em 1 paciente com fissura labial associada. Nas fendas transforame foram
observadas fissuras que acometiam todas as estruturas, desde o lábio até os limites
do palato mole, tendo sido observadas em 368 pacientes (Tabela 4).
Tabela 4 - Frequência em número quanto à localização da fissura relacionada com as estruturas
anatômicas envolvidas (nos casos de fissuras incompletas)
Localização especificada |
Pós |
Pré |
Trans |
Total |
Lábio ao palato mole |
|
|
368 |
368 |
Lábio isolado |
|
167 |
25 |
192 |
Lábio ao forame incisivo |
|
139 |
|
139 |
Palato mole isolado |
129 |
|
4 |
133 |
Palato duro parcial + palato mole |
89 |
|
8 |
97 |
Forame incisivo ao palato mole |
55 |
|
|
55 |
Palato mole parcial |
22 |
|
1 |
23 |
Plano muscular (submucosa) |
12 |
|
2 |
14 |
Fissura cicatricial |
|
16 |
8 |
24 |
Lábio + arcada dentária |
|
2 |
10 |
12 |
Úvula isolada |
3 |
|
2 |
5 |
Palato duro + palato mole |
2 |
|
2 |
4 |
Fissura cicatricial + lábio + arcada dentária |
|
1 |
1 |
2 |
Lábio + palato duro parcial + palato mole |
|
|
3 |
3 |
Epignathus |
|
|
1 |
1 |
F. cicatricial + lábio |
|
2 |
|
2 |
Lábio + palato duro + palato mole |
|
|
1 |
1 |
Lábio + palato mole |
|
|
2 |
2 |
Lábio + plano muscular |
|
|
1 |
1 |
Total |
312 |
327 |
439 |
1078 |
Tabela 4 - Frequência em número quanto à localização da fissura relacionada com as estruturas
anatômicas envolvidas (nos casos de fissuras incompletas)
DISCUSSÃO
Em nosso estudo, foi encontrado uma maior ocorrência geral de fissura de lábio e/ou
palato no sexo masculino (54,3%), o que está de acordo com a literatura que aponta
ser um problema mais comum nesse sexo2,4. No entanto, ainda em relação ao sexo, o feminino foi, em números absolutos, o mais
acometido quando se trata de fendas pós-forame. A literatura demostra que o sexo feminino
é o mais acometido quando se trata de fendas exclusivamente de palato4,5. A predominância feminina nas fendas palatais isoladas é atribuída à horizontalização
mais precoce do palato em embriões masculinos, o que ocorre após a diferenciação testicular.
Isso deixaria os embriões femininos expostos à fatores ambientais por mais tempo6.
Em relação ao tipo de fissura, encontramos como mais prevalente a fissura transforame
(n=439, 40,7%) e valores aproximados entre a pós-forame (n=312, 28,9%) e pré-forame
(n=327, 30,3%). A maior prevalência da fissura transforame está de acordo com outra
pesquisa que utilizou classificação semelhante7.
Em relação às fendas serem uni ou bilaterais, não levando em considerações as fissuras
pós- forame e raras por não terem essas classificações, observamos em nossos resultados
um predomínio unilateral em ambos os sexos (77,2%). Em relação ao lado, houve maior
prevalência do lado esquerdo (62,3%). Esse achado também está de acordo com a literatura
que demostra que os casos unilaterais são mais comuns que os bilaterais e os unilaterais
são mais comuns à esquerda4,5.
A descrição minuciosa de todas as estruturas acometidas pela fissura, além da própria
classificação tradicional, traz, no nosso ponto de vista, alguns importantes benefícios.
Detalhes sobre o acometimento do lábio, palato duro e/ou mole, arcada dentária, úvula
e filtro nasal aumentam a quantidade de informações sobre o caso, sendo úteis no registro
e principalmente no planejamento cirúrgico e na própria execução do procedimento.
Sendo a etiologia da FLP ainda não completamente elucidada, e podendo ser influenciada
por fatores como genética, exposição ambiental, dentre outros, os dados referentes
a um centro médico localizado numa determinada área geográfica também podem apresentar
um interesse específico. Até onde se estendeu a nossa pesquisa, esse é uma das poucas
publicações referentes às FLP na região sul do nosso país, uma área de quase 30 milhões
de pessoas, conforme projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em
20188. Além disso, nessa região geográfica específica, essa é a pesquisa que apresenta
a maior casuística de acometidos.
Como limitação principal desse estudo apontamos que unicamente pacientes acompanhados
no centro médico foram incluídos, portanto, não se trata de um estudo populacional
mais amplo, sendo certamente passível de casos clínicos não relatados, além de não
poder apresentar uma prevalência geral dos casos na área geográfica envolvida.
CONCLUSÃO
O tipo de fissura mais prevalente foi o transforame unilateral. No sexo feminino a
fissura pós- forame e no masculino a transforame foram as de maior ocorrência. As
fissuras unilaterais foram mais comuns do que as bilaterais e, quando unilaterais,
houve um predomínio de lesões à esquerda. Sobre o detalhamento anatômico das estruturas
envolvidas, as lesões mais comuns foram aquelas que envolveram desde o lábio até o
palato mole.
REFERÊNCIAS
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Adv Neonat Care. 2005 Abr;5(2):64-71.
2. Menegotto BG, Salzano FM. Epidemiology of oral clefts in a large South American sample.
Cleft Palate Craniofac J. 1991 Out;28(4):373-6;discussion:376-7.
3. Spina V. A proposed modification for the classification of cleft lip and cleft palate.
Cleft Palate J. 1973 Jul;10:251-2.
4. Al Omari F, Al-Omari IK. Cleft lip and palate in Jordan: birth prevalence rate. Cleft
Palate Craniofac J. 2004 Nov;41(6):609-12.
5. Vanderas AP. Incidence of cleft lip, cleft palate, and cleft lip and palate among
races: a review. Cleft Palate J. 1987 Jul;24(3):216-25.
6. Burdi AR, Silvey RG. Sexual differences in closure of the human palatal shelves. Cleft
Palate J. 1969 Jan;6:1-7.
7. Cymrot M, Sales FC, Teixeira FAA, Teixeira Junior FAA, Teixeira GSB, Cunha Filho JF,
et al. Prevalência dos tipos de fissura em pacientes com fissuras labiopalatinas atendidos
em um Hospital Pediátrico do Nordeste brasileiro. Rev Bras Cir Plást. 2010 Dez;25(4):648-51.
8. Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Projeção da população do Brasil
e das Unidades da Federação [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): IBGE; 2019; [acesso em
2019 Apr 15]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/
1. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
2. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
3. Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
Autor correspondente: José Fernando Polanski, Rua General Carneiro, 181, SAM 19, Alto da Glória, Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80060-900.
E-mail: jfpolanski@gmail.com
Artigo submetido: 15/04/2020.
Artigo aceito: 15/07/2020.
Conflitos de interesse: não há.