INTRODUÇÃO
A injeção clandestina de silicone líquido industrial para modificação do contorno
corporal tornou-se popular há cerca de 70 anos, quando o silicone de grau industrial
foi desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial para fins militares1-3.
Desde a publicação de Andrews et al., em 19894, mostrando pela primeira vez as complicações locais e sistêmicas do silicone líquido
em humanos, esse tipo de material teve seu uso contraindicado pela Food and Drug Administration (FDA) e pela antiga Divisão de Medicamentos (DIMED) no Brasil4,5.
Atualmente, a maioria das vítimas são mulheres e transexuais provenientes de países
da Ásia e América do Sul. Por falta de recursos para a realização de cirurgias plásticas,
acabam recorrendo a profissionais não habilitados1-3.
Apesar das proibições, o uso do silicone industrial para fins estéticos continua sendo
feito isoladamente ou em associação com outros produtos, levando a complicações graves
e potencialmente fatais1,6.
OBJETIVO
Relatar um caso de óbito após injeção de silicone industrial em glúteos e coxas em
paciente transexual.
RELATO DO CASO
Neste estudo, relata-se o caso de uma paciente transexual feminina, 24 anos, hígida,
apresentando injeção de 3000ml de silicone líquido industrial em glúteos e na face
anterolateral das coxas. Tal procedimento foi realizado em ambiente domiciliar, por
profissional não habilitado.
Após 5 dias iniciou quadro de sinais flogísticos e epidermólise no local das infiltrações,
sendo submetida a um desbridamento superficial em serviço médico próximo à sua residência.
Devido a uma piora do estado geral, procurou então o pronto-socorro do Hospital das
Clínicas da Universidade de São Paulo.
Na admissão, já apresentava necrose extensa nos glúteos e região lateral do quadril
associada a sinais de choque séptico, sendo necessária intubação orotraqueal e uso
de droga vasoativa. Os exames de imagem evidenciaram densificação difusa com lâminas
líquidas de permeio, mais acentuadas nas regiões lombar, sacral, glúteos e raízes
das coxas (Figura 1). A paciente foi submetida a um total de seis procedimentos cirúrgicos sequenciais
para desbridamento amplo de tecidos desvitalizados, com identificação de coleções
purulentas e substância viscosa, compatível com silicone (Figuras 2, 3 e 4). Inicialmente, foi utilizada a terapia por pressão negativa. Após o segundo desbridamento,
esta foi substituída por curativo simples com sulfadiazina de prata 1% e nitrato de
cério. A antibioticoterapia foi guiada por culturas.
Figura 1 - Tomografia computadorizada de pelve e membros inferiores evidenciando densificação
local difusa com lâminas líquidas de permeio, mais acentuadas nas regiões lombar,
sacral, glúteas e raízes das coxas.
Figura 1 - Tomografia computadorizada de pelve e membros inferiores evidenciando densificação
local difusa com lâminas líquidas de permeio, mais acentuadas nas regiões lombar,
sacral, glúteas e raízes das coxas.
Figura 2 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. 6 dias de evolução; B. Após primeiro desbridamento; C. Após segundo desbridamento, com extensão da área de necrose para região dorsal e
face lateral e anterior das coxas.
Figura 2 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. 6 dias de evolução; B. Após primeiro desbridamento; C. Após segundo desbridamento, com extensão da área de necrose para região dorsal e
face lateral e anterior das coxas.
Figura 3 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. Após quarto desbridamento, exposição do músculo glúteo máximo bilateral; B. Após quinto desbridamento, em uso de curativo com sulfadiazina de prata 1% + nitrato
de cério.
Figura 3 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. Após quarto desbridamento, exposição do músculo glúteo máximo bilateral; B. Após quinto desbridamento, em uso de curativo com sulfadiazina de prata 1% + nitrato
de cério.
Figura 4 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. Após quarto desbridamento, com extensão para face lateral e anterior das coxas; B. Após quinto desbridamento, em uso de curativo com sulfadiazina de prata 1% + nitrato
de cério.
Figura 4 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados; A. Após quarto desbridamento, com extensão para face lateral e anterior das coxas; B. Após quinto desbridamento, em uso de curativo com sulfadiazina de prata 1% + nitrato
de cério.
Com um quadro de insuficiência renal aguda dialítica atribuída à sepse e ao uso de
drogas nefrotóxicas, a paciente permaneceu em leito de UTI.
No trigésimo segundo dia de internação, tendo em vista um aparente controle local
e sistêmico da infecção, foi realizada enxertia de pele parcial alógena, em malha
(3:1), sobre as áreas cruentas com a finalidade de reduzir o grau de espoliação (Figura 5).
Figura 5 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados e enxertia de pele alógena; A. Após sexto desbridamento e enxertia de pele homógena em malha 3:1; B. Abertura de curativo, 5 dias após enxertia, com integração de aproximadamente 60%
da pele enxertada.
Figura 5 - Evolução da ferida após desbridamentos seriados e enxertia de pele alógena; A. Após sexto desbridamento e enxertia de pele homógena em malha 3:1; B. Abertura de curativo, 5 dias após enxertia, com integração de aproximadamente 60%
da pele enxertada.
No entanto, cinco dias após a enxertia, a paciente apresentou nova piora clínica com
instabilidade hemodinâmica, evoluindo a óbito. O laudo da necropsia definiu a causa
da morte como choque séptico de foco pulmonar e cutâneo.
DISCUSSÃO
O polidimetilsiloxano (silicone) é um composto formado pela conjugação do silício
com oxigênio e metano. Na sua fabricação é inerentemente contaminado com impurezas,
metais pesados e polímeros voláteis. Além disso, ao endurecer acaba liberando ácido
acético, que pode ser responsável pelo dano tecidual inicial após a injeção. Essa
combinação de fatores contribui para as graves complicações frequentemente observadas6.
Além do seu uso isolado, o silicone também é intencionalmente associado a outros agentes
com a finalidade de aumentar a inflamação e a fibroplasia nos locais de injeção, evitando
a sua migração pela ação gravitacional. A fórmula de Sakurai é um exemplo conhecido
da sua associação com azeite. Outros agentes esclerosantes utilizados são óleo de
cróton, veneno de cobra e óleo de amendoim7.
O termo siliconoma foi criado por Winer et al., em 19642, para descrever a reação de corpo estranho semelhante às já descritas após a injeção
de óleo e parafina. Estas substâncias promovem um tipo equivalente de reação tecidual
anatomopatológica, chamada de lipogranulomatose esclerosante1,5,8,9.
Numa tentativa de eliminação, através da atividade fagocitária de macrófagos tissulares
e de células sanguíneas circulantes, o silicone pode ser transportado por via linfática
para órgãos à distância, levando a quadros de embolia. Além disso, a sua própria injeção
intravascular pode resultar também em embolia imediata4,10,11.
Neste contexto, em decorrência da natureza ilegal da prática, existem poucos relatos
de reações agudas. Esses pacientes relutam em procurar atendimento médico, exceto
em circunstâncias de risco de vida. As manifestações sistêmicas mais graves incluem
comprometimento pulmonar, neurológico, cardíaco, hepático, gastrointestinal e sepse12.
Do ponto de vista local, as complicações variam desde alterações da cor e consistência
da pele até um processo inflamatório intenso com nódulos, ulcerações, necrose, abscessos
e fístulas. São observadas também retrações e deformidades cicatriciais. O período
de latência para o aparecimento dessas sequelas é variável, podendo chegar a até 30
anos. Portanto, a identificação e a punição dos responsáveis é frequentemente difícil5,10.
Segunda a literatura, a eliminação completa dos depósitos de silicone é inviável,
já que o silicone na forma líquida se difunde pelos tecidos profundos, formando ilhas
de fibrose entre tecidos saudáveis. Dessa forma, a sua erradicação culminaria em ressecções
muito ampliadas levando a sequelas ainda mais graves3,5,9.
O desbridamento dos tecidos desvitalizados e a irrigação precoces podem minimizar
o dano causado pela reação inicial de endurecimento do silicone e diluir os contaminantes.
Além da intervenção cirúrgica, o uso de curativos antimicrobianos, antibióticos endovenosos
e esteroides sistêmicos também é recomendado5,9.
A enxertia de pele alógena, como curativo biológico, é uma opção até que o leito das
feridas esteja devidamente preparado para receber os autoenxertos ou outra cobertura
definitiva. Retalhos locais ou regionais devem ser usados para reconstruir áreas com
exposição de estruturas profundas.
Apesar dos relatos de terapias adjuvantes como oxigênio hiperbárico, o uso de corticosteroides
intralesionais e imunomoduladores tópicos, ainda não existem estudos suficientes validando
a sua eficácia. Já a lipoaspiração não parece ser eficaz na remoção de tecidos impregnados
com óleo fibrosado. A intensa fibrose local, por si só dificulta a aspiração com cânulas,
bem como aumenta o risco de lesões de estruturas adjacentes3,5.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe o uso de silicone líquido
de grau industrial em procedimentos estéticos, sendo sua aplicação considerada crime
contra a saúde pública previsto no Código Penal. Para finalidades estéticas, o polidimetilsiloxano
(silicone) é matéria-prima para inúmeros tipos de próteses e implantes, devendo ser
manipulados por pessoas habilitadas e em ambiente hospitalar13.
O uso exclusivo do produto médico que contém óleo de silicone autorizado pela Anvisa
é para o tratamento de doenças da retina com a finalidade de promover tamponamento
intraocular9,14. Portanto, além de restrito ao médico especialista em oftalmologia, é vedada a sua
utilização para preenchimentos faciais ou no tratamento do contorno corporal15.
CONCLUSÃO
A injeção de silicone líquido industrial com finalidade estética para alteração do
contorno corporal, além de fortemente contraindicada, é considerada crime contra a
saúde pública previsto no Código Penal. Sua utilização indevida produz complicações
graves, de tratamento difícil e potencialmente fatais, como descritas neste relato
de caso.
REFERÊNCIAS
1. Behar TA, Anderson EE, Barwick WJ, Mohler JL. Sclerosing lipogranulomatosis: a case
report of scrotal injection of automobile transmission fluid and literature review
of subcutaneous injection of oils. Plast Reconstr Surg. 1993 Fev;91(2):352-61.
2. Winer LH, Sternberg TH, Lehman R, Ashley FL. Tissue reactions to injected silicone
liquids. A report of three cases. Arch Dermatol. 1964 Dez;90:588-93.
3. Hage JJ, Kanhai RC, Oen AL, van Diest PJ, Karim RB. The devastating outcome of massive
subcutaneous injection of highly viscous fluids in male-to-female transsexuals. Plast
Reconstr Surg. 2001 Mar;107(3):734-41.
4. Andrews JM, Haddad CM, Ramos RR, Martins DMFS, Ferreira LM. Morbidade e mortalidade
após injeção de silicone líquido em seres humanos. A Folha Médica. 1989 Ago;99(2).
5. Freitas RJ, Cammarosano MA, Rossi RHP, Bozola AR. Injeção ilícita de silicone líquido:
revisão de literatura a propósito de dois casos de necrose de mamas. Rev Bras Cir
Plást. 2008;23(1):53-7.
6. Chasan PE. The history of injectable silicone fluids for soft-tissue augmentation.
Plast Reconstr Surg. 2007;120(7):2034-40;discussion:2041-3.
7. Balkin SW. DPM injectable silicone and the foot: a 41-year clinical and histologic
history. Dermatol Surg. 2005;31:1557.
8. Narins RS, Beer K. Liquid injectable silicone: a review of its history, immunology,
technical considerations, complications, and potential. Plast Reconstr Surg. 2006
Set;118(3 Suppl):77S-84S.
9. Rohrich RJ, Potter JK. Liquid injectable silicone: is there a role as a cosmetic soft-tissue
filler?. Plast Reconstr Surg. 2004 Abr;113(4):1239-41.
10. Gemperli R, Alonso N, Lodovici O, Pigossi N. Estudo clínico das reações sistêmicas
e locais ao uso indevido do silicone líquido e/ou óleo mineral. Rev Hosp Fac Med
S Paulo. 1984;39(4):158-62.
11. Schmid A, Tzur A, Leshko L, Krieger BP. Silicone embolism syndrome: a case report,
review of the literature, and comparison with fat embolism syndrome. Chest. 2005 Jun;127(6):2276-81.
12. Bartsich S, Wu JK. Silicone embolism syndrome: a sequela of clandestine liquid silicone
injections. A case report and review of the literature. J Plast Reconstr Aesthet Surg.
2010;63(1):e1-3.
13. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Portal ANVISA [Internet]. Brasília
(DF): ANVISA; 2020; [acesso em 2020 Mar 10]. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/
14. Siqueira RC, Gil ADC, Jorge R. Cirurgia de descolamento de retina com injeção de óleo
de silicone no sistema de vitrectomia transconjuntival sem sutura de 23-gauge. Arq
Bras Oftalmol. 2007;70(6):905-9.
15. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Consultas [Internet]. Brasília
(DF): ANVISA; 2020; [acesso em 2020 Fev 10]. Disponível em: https://consultas.anvisa.gov.br/#/saude/253510028760211/
1. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo,
SP, Brasil.
Autor correspondente: Gustavo Gomes Ribeiro Monteiro, Rua Enéas de Carvalho Aguiar, 255, Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP: 14020-130. E-mail:
monteiroggr@hotmail.com
Artigo submetido: 14/04/2019.
Artigo aceito: 12/06/2020.
Conflitos de interesse: não há.