INTRODUÇÃO
O retalho cirúrgico consiste em um tecido mobilizado de uma parte do corpo para outra
com um pedúnculo vascular, podendo ser mantido intacto ou seccionado, para realizar
a anastomose vascular e manter o suprimento sanguíneo daquele tecido. Esses podem
ser classificados de acordo com a composição do tecido encontrado nele (cutâneos,
musculocutâneos, fasciocutâneos, osteocutâneos e sensitivos), e de acordo com
o
movimento da pele em direção à área receptora (avanço, rotação, transposição e
interpolação)1,2.
Constituem uma opção de escolha para reconstruir um defeito sobre estruturas vitais,
tecidos desprovidos de membrana perivascular ou sobre implantes.
Com o intuito de aperfeiçoar as suas habilidades cirúrgicas, os estudantes de
medicina buscam expandir seus conhecimentos teóricos por meio da observação e
prática em salas de cirurgia3,4.
Entretanto, esse veículo de aprendizagem tem se tornado uma alternativa restrita
devido ao aumento da cobrança aos cirurgiões de uma maior efetividade, buscando
reduzir o tempo cirúrgico e, consequentemente, o tempo disponível para o ensino;
além de conflitos éticos que podem surgir ao permitir que o estudante as pratique
no
paciente, tendo em vista o conceito de não-maleficência3.
Perante essas dificuldades, foram elaborados modelos práticos que permitissem o seu
uso fora do centro cirúrgico e que se assemelhem ao tecido humano. Esses são
classificados em alta, intermediária e baixa fidelidade, de acordo com o material
utilizado para sua fabricação e seu objetivo. Porém muitos desses possuem custo
elevado, difícil acesso e complicações éticas, tornando-se inviáveis para a
prática5,6.
Desse modo, os modelos de baixo custo e sintético para o treino de técnicas
cirúrgicas, como o retalho cutâneo, são uma ferramenta pertinente e podem apresentar
resultados positivos no tocante à facilitação do processo de ensino e aprendizagem
de um tema complexo, como a cirurgia. Permitindo não só uma fixação mais efetiva
do
conteúdo teórico, mas aprimorando habilidades práticas, de modo que os princípios
éticos sejam preservados.
OBJETIVO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um modelo sintético, inédito e
prático para o treinamento das técnicas de retalho cutâneo.
MÉTODOS
A sua construção é realizada a partir dos seguintes componentes
(Figura 1): 1) 24cm2 de tecido
malha (96% poliéster, 4% elastano); 2) esponja para lavagem de carro (11x13x6cm);
3)
elásticos de látex; 4) pincel permanente de ponta fina; 5) bisturi (cabo nº 3,
lâmina nº 15); 6) fios de nylon 3-0; 7) instrumentos cirúrgicos de sutura
(porta-agulha, pinça dente-de-rato e tesoura).
Figura 1 - Demonstração do material necessário para a construção do
modelo.
Figura 1 - Demonstração do material necessário para a construção do
modelo.
A montagem consiste em cobrir uma das superfícies da esponja com o tecido, de modo
que este permita a simulação da pele e a esponja do subcutâneo. Ademais, com o
intuito de que o tecido fique fixo sobre a esponja, os elásticos de látex são
utilizados para essa fixação, permanecendo imóvel e levemente esticado (Figuras 2A, 2B e 2C).
Figura 2 - Demonstração das etapas de construção do modelo. A.
Bloco de esponja, elásticos e o tecido malha; B.
Posicionamento do tecido sobre a esponja; C. Fixação do
tecido à esponja com o elástico de látex; D. Modelo
devidamente pronto e com as marcações dos retalhos a serem
feitas.
Figura 2 - Demonstração das etapas de construção do modelo. A.
Bloco de esponja, elásticos e o tecido malha; B.
Posicionamento do tecido sobre a esponja; C. Fixação do
tecido à esponja com o elástico de látex; D. Modelo
devidamente pronto e com as marcações dos retalhos a serem
feitas.
Após a montagem, o pincel de ponta fina é utilizado para desenhar na superfície do
tecido o tipo de retalho a ser feito. Por fim, o modelo já pode ser usado para
treinar as diversas técnicas descritas, com o instrumental cirúrgico adequado
(Figura 2D).
Deste modo, o modelo supracitado foi confeccionado com custo máximo de 10 reais,
podendo simular de forma clara a técnica desse procedimento. É válido ressaltar
que
o tecido malha é o único componente que não pode ser reaproveitado após o uso
e que
precisa de reposição.
A confecção do modelo foi feita na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), pela liga
acadêmica de cirurgia plástica da referida universidade, durante o mês de janeiro
de
2019. Além disso, o estudo supracitado não precisou do envolvimento de seres humanos
e de animais, portanto não houve necessidade de aprovação pelo Comitê de Ética
para
a realização da confecção no que tange ao modelo de retalho cutâneo, o qual é
obtido
por meio de materiais sintéticos.
O modelo foi utilizado em atividades extracurriculares elaboradas pela liga acadêmica
de cirurgia plástica da referida universidade, as atividades ocorreram em um turno
de 4 horas sob supervisão dos acadêmicos integrantes da liga acadêmica que tiveram
orientação docente.
RESULTADOS
O modelo foi utilizado em um evento das ligas acadêmicas de cirurgia de uma
Universidade Privada de Fortaleza/CE, no qual alunos de diversos períodos letivos,
aproximadamente 50 alunos, tiveram contato com o modelo proposto (Figura 3).
Figura 3 - Prática da realização do retalho cutâneo utilizando o modelo
proposto.
Figura 3 - Prática da realização do retalho cutâneo utilizando o modelo
proposto.
Com efeito, apresentando resultados satisfatórios na simulação da técnica de retalho
cutâneo, uma vez que o tecido, embora limitado no tocante à simulação da
consistência da pele humana, demonstrou boa elasticidade e resistência à tração,
permitindo aperfeiçoamento da manipulação da instrumentação cirúrgica e o
conhecimento de princípios e prática da realização do procedimento. Além disso,
permitiu o desenvolvimento de habilidades também por parte dos alunos instrutores,
como comunicação interpessoal.
Acrescenta-se que a presença de alunos mais experientes e capacitados pelo docente,
contribuiu na elaboração de um ambiente menos hostil para a aprendizagem,
facilitando o esclarecimento de dúvidas em uma linguagem simples e acessível.
DISCUSSÃO
Durante a graduação em medicina, grande parte das práticas cirúrgicas restringem-se
às horas destinadas à cirurgia geral, sendo, muitas vezes, insuficientes aos
acadêmicos interessados no ramo cirúrgico. No tocante à cirurgia plástica,
percebe-se uma carência na abordagem de temas importantes dessa área, como o retalho
cutâneo7.
A microcirurgia é uma área de suma importância no currículo de um cirurgião plástico
e muitos modelos que permitem a prática deste retalho já foram desenvolvidos e
testados, os quais demonstraram eficácia no desenvolvimento de habilidades na
microcirurgia. De acordo com a revisão sistemática sobre modelos não biológicos,
de
Abi-Rafeh et al., em 20198, os modelos de
simulação devem desempenhar um papel ainda maior no desenvolvimento de um currículo
de treinamento em microcirurgia. O modelo desenvolvido neste artigo foi planejado
para a técnica de modelos de retalho cutâneos, infelizmente o mesmo não atende
as
especificidades e as características de um modelo que permita a prática de retalho
livre.
O modelo descrito foi apresentado para um cirurgião plástico, professor do curso de
Medicina da Universidade de Fortaleza. O docente avaliou o simulador e admitiu
a
possibilidade de aplicar tal modelo para o ensino do procedimento, uma vez que
os
desenhos e as geometrias de alguns retalhos são relativamente complexas de se
entender. Além disso, devido à sua grande relevância, sendo um dos pilares da
cirurgia cutânea, torna-se essencial ao acadêmico interessado na especialidade
o
conhecimento de sua execução mediante treinos em modelos práticos de baixo custo
e
fácil manutenção9, uma vez que, para um melhor
aprendizado, o treino repetido várias vezes, com um material de baixo custo, é
algo
que se mostra indispensável.
Além disso, o modelo permite a execução de retalhos de rotação, transposição,
interpolação e avanço simples, como demonstrado na Figura 4, podendo ser usado para o treino de variados tipos de
retalho.
Figura 4 - Demonstração das técnicas de retalho executadas no modelo.
A. Marcações dos retalhos de Limberg, Z-plastia,
bilobado, triangular e avanço simples; B. Incisões e
retirada das lesões; C. Sutura e finalização das técnicas
de retalho.
Figura 4 - Demonstração das técnicas de retalho executadas no modelo.
A. Marcações dos retalhos de Limberg, Z-plastia,
bilobado, triangular e avanço simples; B. Incisões e
retirada das lesões; C. Sutura e finalização das técnicas
de retalho.
O modelo proposto por Denadai et al., em 20125,
feito a partir de pele de galinha, mostrou-se como uma alternativa complementar
ao
arsenal de modelos de simulação existentes devido à sua similaridade, em textura
e
consistência, ao tecido humano10. Entretanto,
quando se fala do seu uso contínuo em programas de ensino, o modelo animal pode
apresentar um alto custo, uma vez que necessita de um serviço de coleta e
armazenamento para que não traga risco biológico aos alunos das instituições.
Além
disso, a sua preparação mostra-se demorada e delicada, já que é necessário
descongelar as peças antecipadamente, processo que quando não é bem feito pode
deixar o material endurecido, causando a perda de fios de agulha durante o
treinamento e aumentando ainda mais o seu custo.
O uso de um material animal também apresenta diversas complicações éticas e
burocráticas, visto que além de questionáveis, são conflitantes com os modernos
conceitos do bem-estar animal. Com isso, a atual diversidade e a complexidade
do
conhecimento médico cirúrgico, requer um novo direcionamento no ensino através
de
meios inovadores, buscando cumprir a função educacional sem causar prejuízo aos
animais.
O modelo proposto, que tem como base a utilização de tecido sintético sobrepondo uma
camada de esponja para lavagem de carros, mostrou-se bastante objetivo no tocante
à
execução da técnica, à medida em que o tecido escolhido possui boa resistência
à
sutura, diminuindo a probabilidade de deiscência, tornando a prática voltada ao
aperfeiçoamento da técnica de retalho cutâneo viável e segura. Além disso, o modelo
é de fácil preparação e armazenamento, pois não precisa ser conservado e sua
montagem é simples, prática e rápida.
O modelo proposto é de fácil execução, montado com o intuito de facilitar a
compreensão da técnica de retalho cutâneo.
CONCLUSÃO
Acredita-se que a utilização desse modelo sintético se torne pertinente no
treinamento de acadêmicos de medicina e residentes em cirurgia plástica, por
permitir a prática dessa habilidade médica, havendo conflitos éticos mínimos,
sem
necessidade de treinar em animais ou no próprio paciente.
Além disso, a simulação cirúrgica do retalho cutâneo, utilizando-se do modelo
sintético proposto, é uma sugestão para o exercício dessa técnica por apresentar
benefícios logísticos e instrutivos, como a utilização de materiais de baixo custo,
fácil armazenamento e preparação.
Contudo são necessários mais estudos sobre a eficácia do treinamento com modelos
sintéticos para alunos da graduação médica, com elaboração de questionários
avaliando a percepção dos acadêmicos e instrutores.
REFERÊNCIAS
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region. Surg Cosmet Dermatol. 2013;5(1):769.
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Rio de Janeiro: Elsevier; 2015.
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model to the human model. Am J Surg. 1999 Fev;177(2):167-70.
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Plastic surgery undergraduate training. How a single local event can inspire
and
educate medical students. Ann Plast Surg. 2014;1-5.
8. Abi-Rafeh J, Zammit D, Jaberi MM, Al-Halabi B, Thibaudeau S.
Nonbiological microsurgery simulators in plastic surgery training: a systematic
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assessment of minor surgical skills (SAMSS) for clinical clerks. Acad Med. 2002
Out;77(10 Supl 1):S39-S41.
10. Denadai R, Saad-Hossne R, Souto L. Simulation-based cutaneous
surgical-skill training on a chicken-skin bench model in a medical undergraduate
program. Indian J Dermatol. 2013 Mai;58(3):200-7.
1. Universidade de Fortaleza UNIFOR,
Fortaleza, CE, Brasil.
Autor correspondente: Arthur Antunes Coimbra Pinheiro Pacífico
Rua Mariana Furtado Leite, 1250, Apart. 1201, Bairro Eng, Luciano Cavalcante,
Fortaleza, CE, Brasil. CEP: 60811-030, E-mail:
arthurh.pacifico@gmail.com
Artigo submetido: 08/08/2019.
Artigo aceito: 15/07/2020.
Conflitos de interesse: não há.