INTRODUÇÃO
As queimaduras são responsáveis por 180000 óbitos anualmente, os quais se concentram
sobretudo em países de baixa e média renda, grupo no qual o Brasil está incluído.
Ademais, as queimaduras não fatais resultam em hospitalização prolongada, desfiguração
e incapacidade, com subsequente estigma e rejeição1.
A tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) é o peixe mais cultivado do Brasil e o quarto mais cultivado do mundo2. Além da ampla disponibilidade e de constituir um produto que costumava ser descartado,
a pele de tilápia demonstrou, em estudos anteriores, microbiota não infecciosa3, estrutura morfológica semelhante à pele humana, inclusive com maiores quantidades
de colágeno tipo 14,5, e ótimos resultados quando utilizada como xenoenxerto para tratamento de queimaduras
experimentais em ratos6.
Estudos clínicos fase II, ainda não publicados, comparando a pele de tilápia com o
creme de sulfadiazina de prata 1% mostraram resultados promissores. Nos protocolos
desses estudos, pacientes com queimaduras em áreas como face, genitais, pescoço, axilas,
fossa antecubital e região inguinal foram excluídos. A presença de dobras de pele
nestas regiões gerou a hipótese que o biomaterial não aderiria apropriadamente, resultando
em um grau de cicatrização inferior.
OBJETIVO
Relatar o caso de uma paciente com queimaduras de segundo grau profundo envolvendo
genitália e região inguinal, dentre outras áreas, em que foi feito tratamento com
o uso da pele de tilápia como xenoenxerto.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 18 anos, sem comorbidades, admitida em unidade de queimaduras
após lesão térmica por contato direto com chamas. Por meio da tabela de Lund e Browder,
foi calculado um envolvimento de 13,5% da área total da superfície corporal (ATSC),
em sua maioria, por queimaduras de segundo grau profundo e, menos significativamente,
por queimaduras de segundo grau superficial (Figura 1). Após internação, a paciente foi ressuscitada com fluidos intravenosos de acordo
com a fórmula de Parkland e permaneceu hemodinamicamente estável. Aprovação do Comitê
de Ética em Pesquisa e permissão por escrito da paciente foram obtidas.
Figura 1 - Aspecto da queimadura antes da aplicação da pele de tilápia.
Figura 1 - Aspecto da queimadura antes da aplicação da pele de tilápia.
O método de processamento, descontaminação e esterilização da pele da tilápia para
uso em queimaduras foi registrado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial
(INPI) com o número BR1020150214359 e está descrito em Lima Júnior et al., em 20176. Antes da utilização na paciente, a pele foi lavada em solução estéril de cloreto
de sódio a 0,9% durante 5 minutos, processo que é repetido três vezes seguidas. A
cobertura de pelo menos 1cm de pele sadia nas bordas da área queimada e a superposição
de pelo menos 1cm entre os pedaços de pele são procedimentos necessários para garantir
que a eventual movimentação dos pacientes nos primeiros dias de tratamento não leve
à descoberta de qualquer segmento da lesão.
A paciente foi submetida à balneoterapia sob anestesia e analgesia com 100mg de ketamina,
2mg de midazolam e 2000mg de dipirona. Após remoção de qualquer tecido necrótico e
limpeza da lesão com água potável e gluconato de clorexidina a 2%, a pele de tilápia
foi aplicada. No total, foram utilizadas 11 peles de tilápia, por vezes recortadas
para se adequar ao contorno da área queimada (Figura 2). Finalmente, foi realizada cobertura firme da região com gaze e atadura.
Figura 2 - Aspecto da queimadura após aplicação da pele de tilápia.
Figura 2 - Aspecto da queimadura após aplicação da pele de tilápia.
No quarto dia de tratamento, a paciente foi submetida a novo banho anestésico, no
qual o curativo foi aberto pela primeira vez. Foi observada boa aderência da pele
de tilápia em parte da superfície queimada, porém em algumas regiões a pele não aderiu,
tendo sido removida juntamente com as gazes ou permanecendo no leito da queimadura,
mas com consistência amolecida e excesso de secreção subjacente (Figura 3). Nestas regiões, a pele de tilápia foi retirada (Figura 4) e, após limpeza, houve reposição do biomaterial (Figura 5), seguida de nova cobertura firme com gaze e atadura. A mesma sequência de procedimentos
foi realizada no sétimo dia de tratamento, porém com melhor aderência da pele de tilápia
e menor presença de secreção foram observadas (Figura 6).
Figura 3 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após abertura de curativo.
Figura 3 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após abertura de curativo.
Figura 4 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após retirada de peles que não aderiram.
Figura 4 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após retirada de peles que não aderiram.
Figura 5 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após reposição da pele de tilápia.
Figura 5 - Aspecto da lesão no quarto dia de tratamento, após reposição da pele de tilápia.
Figura 6 - Aspecto da lesão no sétimo dia de tratamento, após abertura de curativo.
Figura 6 - Aspecto da lesão no sétimo dia de tratamento, após abertura de curativo.
No 14º dia de tratamento, após abertura do curativo, foi observado que vários dos
pedaços da pele da tilápia previamente aderidos tinham agora uma aparência seca e
endurecida e haviam começado a se soltar. Estes pedaços foram removidos através da
sua separação digital do leito da queimadura com o auxílio de vaselina, expondo a
pele cicatrizada subjacente (Figura 7). O restante da pele de tilápia foi removido nas 48 horas seguintes e a paciente
recebeu alta, totalizando 16 dias de tratamento.
Figura 7 - Estado de cicatrização após retirada da pele de tilápia no décimo quarto dia de tratamento.
Figura 7 - Estado de cicatrização após retirada da pele de tilápia no décimo quarto dia de tratamento.
DISCUSSÃO
Na busca de novas alternativas terapêuticas para o tratamento de queimaduras, os curativos
biocompatíveis ou biológicos têm sido destacados. Uma vez que os aloenxertos são materiais
de difícil obtenção e baixa disponibilidade, os xenoenxertos podem ser uma alternativa
viável por sua maior segurança e preço reduzido7. Embora a pele de rã tenha sido usada como tratamento de queimaduras no Brasil8, nunca foi registrada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e não
está mais em uso. Portanto, a pele de tilápia traz a promessa de um produto inovador,
de fácil aplicação e alta disponibilidade, que pode se tornar a primeira pele animal
nacionalmente estudada e registrada pela ANVISA para uso no tratamento de queimaduras,
além da primeira pele de animal aquático no mundo usada com esta finalidade.
Com o uso de tratamentos padrão, espera-se cerca de 3 semanas para a cicatrização
completa de queimaduras de segundo grau profundo9. Portanto, o período de 16 dias necessário para a reepitelização da queimadura desta
paciente e a ausência de efeitos colaterais sugeriram a efetividade da pele de tilápia
como um xenoenxerto flexível e aderente, com ausência de antigenicidade e toxicidade,
e capacidade de conservar a umidade e evitar a entrada de microrganismos, características
de um curativo ideal para queimaduras10. Ademais, este relato de caso contribui para reduzir as limitações em relação as
áreas anatômicas apropriadas para a aplicação da pele de tilápia, uma vez que, mesmo
com a necessidade de reposição de pele, foram obtidos bons resultados, inclusive em
região inguinal e genitália. A diminuição do número de troca de curativos é fator
importante na redução das dores nestes pacientes, diminuindo o trabalho da equipe
e os custos hospitalares.
REFERÊNCIAS
1. World Health Organization (WHO). Burns. Genebra: WHO; 2018 Mar; [acesso em 2019 mar
10]. Disponível em: http://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/burns
2. Oliveira M. Tilapia’s turn. Pesquisa FAPESP. 2016 Nov; [citado 2019 mar 10]; 249:66-71.
Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/en/2017/05/17/tilapias-turn
3. Lima Júnior EM, Bandeira TJPG, Miranda MJB, Ferreira GE, Parente EA, Piccolo NS, et
al. Characterization of the microbiota of the skin and oral cavity of Oreochromis
niloticus. J Heal Biol Sci. 2016;4(3):193-7.
4. Alves APNN, Verde MEQL, Ferreira Júnior AEC, Silva PGB, Feitosa VP, Lima Júnior EM,
et al. Avaliação microscópica, estudo histoquímico e análise de propriedades tensiométricas
da pele de tilápia do Nilo. Rev Bras Queimaduras. 2015;14(3):203-10.
5. Alves APNN, Lima Júnior EM, Piccolo NS, Miranda MJB, Verde MEQL, Ferreira Júnior AEC,
et al. Study of tensiometric properties, microbiological and collagen content in nile
tilapia skin submitted to different sterilization methods. Cell Tissue Bank. 2018
Sep;19(3):373-82.
6. Lima Junior EM, Picollo NS, Miranda MJB, Ribeiro WLC, Alves APNN, Ferreira GE, et
al. Uso da pele de tilápia (Oreochromis niloticus), como curativo biológ ico oclusivo,
no tratamento de queimaduras. Rev Bras Queimaduras. 2017;16(1):10-7.
7. Hermans MHE. Porcine xenografts vs. (cryopreserved) allografts in the management of
partial thickness burns: is there a clinical difference?. Burns. 2014 May;40(3):408-15.
8. Piccolo N, Piccolo MS, Piccolo MTS. Uso de pele de rã como curativo biológico como
substituto temporário da pele em queimaduras. Rev Bras Queimaduras. 2002;2:18-24.
9. Pan SC. Burn blister fluids in the neovascularization stage of burn wound healing:
a comparison between superficial and deep partial-thickness burn wounds. Burns Trauma.
2013 Jun;1(1):27-31.
10. Chiu T, Burd A. “Xenograft” dressing in the treatment of burns. Clin Dermatol. 2005;23:419-23.
1. Instituto Dr. José Frota, Centro de Tratamento de Queimados, Fortaleza, CE, Brasil.
(2). Universidade Federal do Ceará, Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos,
Unidade de Farmacologia Clínica, Fortaleza, CE, Brasil.
Autor correspondente: Edmar Maciel Lima Júnior Instituto Dr. José Frota (IJF), Rua Barão do Rio Branco, 1816, Centro, Fortaleza,
CE, Brasil. CEP: 60025-061 E-mail: edmarmaciel@gmail.com
Artigo submetido: 12/03/2019.
Artigo aceito: 21/04/2019.
Conflitos de interesse: não há.