INTRODUÇÃO
O carcinoma basocelular (CBC) é o câncer que mais frequentemente afeta o ser humano.
No Brasil estima-se uma incidência de 165.580 novos casos por ano de câncer de pele
não melanoma1. Seu crescimento é lento e raramente produz metástase. No entanto, quando localizado
nas pálpebras, a reconstrução após o tratamento cirúrgico pode representar um desafio
para o cirurgião plástico. A reconstrução da pálpebra inferior deve ser planejada
seguindo seus limites anatômicos, particularmente reconstruindo a lamela anterior
e posterior como duas estruturas independentes. Para isto devem ser estudadas as diferentes
técnicas já descritas para cada uma delas e indicar uma associação que seja segura
para otimizar os resultados estéticos preservando sua funcionalidade2.
Dentro das técnicas de reconstrução de pálpebra inferior, o retalho miocutâneo de
Tripier apresenta vantagens, sendo mostrado como uma boa opção para cobertura da lamela
anterior, que pode ser associado a enxertos de cartilagem para reconstrução da lamela
posterior com ou sem cobertura mucosa.
OBJETIVO
Relatar um caso de reconstrução da pálpebra inferior com a associação do retalho miocutâneo
de Tripier com enxerto de cartilagem da escafa mostrando uma opção terapêutica nas
reconstruções de defeitos de espessura total e extensão maior a 60% da pálpebra inferior.
RELATO DE CASO
Apresentamos o caso de um paciente de sexo masculino de 69 anos, com diagnóstico de
carcinoma basocelular nodular recidivado em pálpebra inferior direita. Foi encaminhado
para ressecção com congelação através de cortes horizontais (“en face” ou CCPDMA)
intraoperatória no Hospital AC - Camargo Cancer Center.
Sob anestesia geral, em decúbito dorsal e com proteção oftálmica com pomada, realizou-se
marcação das bordas da lesão com 4mm de segurança para ser enviado a congelação. Após
a ressecção com infiltração hemostática, a congelação reportou margem lateral e profunda
comprometidas requerendo uma ampliação.
Após obtenção de margens livres, o defeito final evidenciou uma perda de continuidade
da pálpebra inferior acometendo 70% da extensão desta, abrangendo pele, placa tarsal
e conjuntiva, desde o canto lateral até próximo ao canto medial. O tamanho final do
defeito era de 3,0 x 0,5cm (Figura 1).
Figura 1 - A. Defeito final após ampliação de margens; B. Demarcação do retalho de Tripier.
Figura 1 - A. Defeito final após ampliação de margens; B. Demarcação do retalho de Tripier.
Para a reconstrução do defeito optou-se por uma reconstrução com um retalho miocutâneo
de Tripier monopediculado lateralmente associado a um retalho de avanço de conjuntiva
e enxerto de cartilagem auricular da escafa.
O retalho foi marcado na pálpebra superior ipsilateral de forma semelhante a uma marcação
de blefaroplastia, com a borda inferior do retalho no sulco palpebral e o limite superior
foi marcado deixando 1cm de largura do retalho correspondendo à quantidade de pele
em excesso, sem comprometer a oclusão ocular. No canto lateral foi preservada uma
base de 0,5cm de largura. Com infiltração local foi elevado o retalho miocutâneo desde
o canto medial, deixando ele pediculado na base. O defeito foi suturado com fio de
Mononylon 6-0 de forma contínua.
Após infiltração local, foi obtido da fossa escafoide direita com abordagem anterior,
um fragmento de cartilagem e pericôndrio com as dimensões da nova placa tarsal com
3cm de cumprimento e 4mm de largura. Foi suturada a pele da escafa com fio de Mononylon
4-0. O enxerto de cartilagem da escafa foi posicionado de forma que sua borda superior
ficasse ao nível do limbo esclerocorneano inferior, fixado com 2 pontos de Mononylon
5-0 no extremo lateral com o ligamento cantal lateral e 2 pontos na porção medial,
fixados ao tarso. Após a fixação, a porção superior do retalho de Tripier foi suturado
à porção superior do retalho de conjuntiva com Vicryl Rapid 6-0, apoiados sobre o
enxerto de cartilagem (Figuras 2 e 3).
Figura 2 - A. Pós-operatório imediato de reconstrução da pálpebra inferior com retalho de Tripier
monopediculado associado a enxerto de cartilagem da escafa - vista frontal; B. Vista lateral.
Figura 2 - A. Pós-operatório imediato de reconstrução da pálpebra inferior com retalho de Tripier
monopediculado associado a enxerto de cartilagem da escafa - vista frontal; B. Vista lateral.
Figura 3 - Pós-operatório imediato evidenciando o posicionamento final do retalho.
Figura 3 - Pós-operatório imediato evidenciando o posicionamento final do retalho.
O paciente evoluiu satisfatoriamente após a reconstrução, sem recidiva da lesão e
mostrando resultados estéticos e funcionais adequados da pálpebra inferior (Figura 4). Com adequada oclusão palpebral e sem queixas de olho seco. Não foi indicada fisioterapia.
Figura 4 - 2 semanas de pós-operatório.
Figura 4 - 2 semanas de pós-operatório.
DISCUSSÃO
A reconstrução da pálpebra inferior deve ser planejada seguindo seus limites anatômicos,
particularmente reconstruindo a lamela anterior e posterior como duas estruturas independentes.
Para isto devem ser estudadas as diferentes técnicas já descritas para ambas as lamelas
e indicar uma associação que seja segura para otimizar os resultados estéticos preservando
sua funcionalidade2.
Dentro das opções para reconstrução de defeitos com extensão maior a 60% da lamela
anterior está o retalho de rotação de Mustardé3 que requer uma área de descolamento ampla ou retalhos periorbitais locais como o
retalho de Blasius, Imre, Fricke e Tripier4. O retalho de Tripier, originalmente descrito em 1889, descreve dois tipos de retalhos
miocutâneos bipediculados baseados no músculo orbicularis oculi desenhados em forma de alça de balde, considerado na literatura como a primeira descrição
de um retalho miocutâneo preservando a sua inervação. Um dos retalhos descritos foi
aplicado na reconstrução da pálpebra inferior após ressecção de um tumor5.
O retalho de Tripier tem sido usado de forma muito versátil e publicadas diferentes
variações na técnica tanto para reconstrução de pálpebra superior, quanto para correção
de ectrópio na pálpebra inferior6.
Siegel, em 19877, que chamou a sua descrição “Retalho de blefaroplastia”, descreve as vantagens estéticas
e funcionais deste retalho para reconstrução da pálpebra inferior, pois relata que
permite uma transferência de tecido muscular que proporciona adequados vetores de
suporte à borda palpebral, com uma ótima compatibilidade em textura e cor da área
doadora e deixando a cicatriz na prega palpebral.
Outras modificações têm sido reportadas realizando uma transposição do retalho de
forma monopediculada lateralmente para correção de defeitos laterais da pálpebra e
evitando também um segundo tempo cirúrgico para secção dos pedículos8.
Assim, o retalho miocutâneo de Tripier possui vantagens como: aporte de tecido muscular
ao defeito, semelhança na coloração e espessura da pele à área receptora, mínima morbidade
da área doadora com cicatriz pouco aparente, adequado resultado estético e funcional
na área receptora, menor descolamento cirúrgico e um único tempo cirúrgico.
A reconstrução da lamela posterior requer um suporte de tecido fibroso que mantenha
a borda palpebral numa altura suficiente que evite uma exposição da esclera. Para
isto tem sido descrita distintas técnicas de reconstrução com enxertos condromucosos
de palato duro9,10 e septo nasal11,12, assim como enxertos simples de cartilagem auricular conchal ou escafoide13 os quais são bem tolerados quando usados em associação com os retalhos miocutâneos
como o Tripier e ainda se beneficiando do limitado movimento da pálpebra inferior
contra a superfície corneana14, com facilidade de acesso cirúrgico.
No caso apresentado indicamos a associação de duas técnicas de simples execução em
único tempo cirúrgico: a lamela posterior requer uma estrutura que ofereça um adequado
suporte à borda palpebral obtendo uma oclusão completa do globo ocular; o enxerto
de cartilagem proveniente da escafa tem uma rigidez suficiente e ainda oferece uma
convexidade semelhante a anatomia normal da borda palpebral inferior, recriando adequadamente
a estrutura da placa tarsal, a diferença da cartilagem conchal que têm uma curvatura
mais acentuada; a preservação do pericôndrio no enxerto favorece a reintegração mucosa
da conjuntiva evitando o contato direto da cartilagem com a esclera. No nosso caso
utilizamos a conjuntiva local remanescente conseguindo avança-la dando cobertura à
esclera para posicionar o enxerto de cartilagem.
A associação desta técnica de reconstrução da lamela posterior com o retalho de Tripier,
que possui vantagens já mencionadas, evidenciou um resultado estético favorável, coloração
e textura semelhante com adequada funcionalidade, posicionamento correto da borda
palpebral e oclusão completa da esclera.
CONCLUSÃO
O retalho miocutâneo de Tripier, monopediculado e o enxerto de cartilagem da escafa
são dois recursos técnicos, que quando associados oferecem abordagem prática no planejamento
de uma reconstrução de defeitos de espessura total e extensão maior a 60% da pálpebra
inferior, oferecendo resultados estéticos e funcionais satisfatórios.
COLABORAÇÕES
CGM
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Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
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MC
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Aprovação final do manuscrito, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto,
Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Preparação do original,
Redação - Revisão e Edição
|
ACC
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Coleta de Dados, Concepção e desenho do estudo, Redação - Revisão e Edição
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AOE
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Aprovação final do manuscrito, Concepção e desenho do estudo, Metodologia, Redação
- Preparação do original
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LG
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Concepção e desenho do estudo, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão
e Edição
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OS
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Gerenciamento do Projeto, Supervisão, Validação
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ERB
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Aprovação final do manuscrito, Concepção e desenho do estudo, Realização das operações
e/ou experimentos, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão,
Visualização
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REFERÊNCIAS
1. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estimativa 2018:
incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro (RJ): INCA; 2018. Disponível em: http://www1.inca.gov.br/estimativa/2018/
2. Chang EI, Esmaeli B, Butler CE. Eyelid reconstruction. Plast Reconstr Surg. 2017;140(5):724e-35e.
3. Mustardé JC. New horizons in eyelid reconstruction. Int Ophthalmol Clin. 1989;29(4):237-46.
4. Alghoul M, Pacella SJ, McClellan WT, Codner MA. Eyelid reconstruction. Plast Reconstr
Surg. 2013;132(2):288e-302e.
5. Tripier L. Lambeau musculo-cutané en forme de pont. Appliqué à la restauration des
paupières. Gazette Hôspitaux Paris. 1889;62:1124-5.
6. Elliot D, Britto JA. Tripier’s innervated myocutaneous flap 1889. Br J Plast Surg.
2004;57:543-9.
7. Siegel RJ. Severe ectropion: repair with modified Tripier flap. Plast Reconstr Surg.
1987;80(1):21-8.
8. Machado WLG, Sampaio FMS, Gurfinkel PCM, Melo MLC, Gualberto GV, Treu CM. Modified
Tripier flap in reconstruction of the lower eyelid. An Bras Dermatol. 2015;90(1):108-10.
9. Nakajima T, Yoshimura Y. One-stage reconstruction of full-thickness lower eyelid defects
using a subcutaneous pedicle flap lined by a palatal mucosal graft. Br J Plast Surg.
1996;49(3):183-6.
10. Siegel RJ. Palatal grafts for eyelid reconstruction. Plast Reconstr Surg. 1985;76(3):411-4.
11. Santos G, Goulão J. One-stage reconstruction of full-thickness lower eyelid using
a Tripier flap lining by a septal mucochondral graft. J Dermatol Treat. 2014;25(5):446-7.
12. Maghsodnia G, Ebrahimi A, Arshadi A. Using bipedicled myocutaneous Tripier flap to
correct ectropion after excision of lower eyelid basal cell carcinoma. J Craniofac
Surg. 2011;22(2):606-8.
13. Koshima I, Urushibara K, Okuyama H, Moriguchi T. Ear helix flap for reconstruction
of total loss of the upper eyelid. Br J Plast Surg. 1999;52:314-6.
14. Codner MA, McCord CD, Mejia JD, Lalonde D. Upper and lower eyelid reconstruction.
Plast Reconstr Surg. 2010;126(5):231e-45e.
1. Serviço de Cirurgia Plástica Osvaldo Saldanha, Universidade Metropolitana de Santos,
Santos, SP, Brasil.
2. Hospital A.C. Camargo Cancer Center, São Paulo, SP, Brasil.
Autor correspondente: Carlos Goyeneche Montoya Avenida Ana Costa, 146, Cond. 1201, Gonzaga, Santos, SP, Brasil. CEP: 11060-002.
E-mail: carlosgoye.m@gmail.com
Artigo submetido: 5/11/2018.
Artigo aceito: 22/06/2019.
Conflitos de interesse: não há.