INTRODUÇÃO
A tábua externa da calvária recebe sua nutrição através do periósteo. Extensas deformidades
do couro cabeludo, por trauma ou neoplasias, podem colocar em risco a vitalidade dos
ossos da calota craniana, a dura-máter e o encéfalo subjacente. O tecido conjuntivo
frouxo, entre a gálea aponeurótica/músculo epicrânio e o periósteo, favorece a disseminação
intracraniana de metástases, trombos e infecções1.
Grandes defeitos do couro cabeludo são um grande desafio para a reconstrução e na
ausência de periósteo inviabilizam o emprego de enxertos de pele. A decorticação da
tábua externa para enxertia de pele sobre a díploe oferece resultados esteticamente
pobres, frágeis e susceptíveis a malignização. Romero et al., em 20182, publicou algoritmo, recomendando microcirurgia para defeitos maiores que 5cm. A
microcirurgia vascular oferece os melhores resultados no reparo de grandes deformidades
do couro cabeludo3, requerendo, no entanto, equipe e recursos adequados. Souza, em 20124, empregou retalhos locais, destacando a importância dos vasos temporais superficiais
na viabilidade desses retalhos.
RELATOS DOS CASOS
CASO 1
Paciente masculino com 69 anos, hipertenso, diabético e transplantado renal há 17
anos, fazendo uso contínuo de imunossupressores. Teve ceratoses actínicas em face,
couro cabeludo e membros, tratadas com crioterapia e Fluoracil. Em 2015, teve extenso
carcinoma espinocelular (CEC) moderadamente diferenciado, com invasão muscular no
dorso do nariz, sendo submetido à excisão e retalho médio frontal. Apresentou nas
regiões parietais, múltiplos e recorrentes carcinomas espinocelulares (CEC), tipo
moderadamente diferenciado multifocal (Figura 1).
Figura 1 - A: (Caso 1) Carcinomas espinocelulares recidivantes em transplantado renal, e deformidade
após a excisão. B: (Caso 1) Transoperatório evidenciando o retalho anterior e pós-operatório com epidermólise
distal. C: (Caso 1) Aspecto pós-operatório tardio.
Figura 1 - A: (Caso 1) Carcinomas espinocelulares recidivantes em transplantado renal, e deformidade
após a excisão. B: (Caso 1) Transoperatório evidenciando o retalho anterior e pós-operatório com epidermólise
distal. C: (Caso 1) Aspecto pós-operatório tardio.
CASO 2
Paciente masculino de 68 anos, branco, diabético, portador de artrite reumatoide,
fazendo uso contínuo de corticoide e Metotrexato. Com múltiplas ceratoses actínicas
em couro cabeludo calvo, foi tratado inicialmente com crioterapia. Após 4 anos, retornou
com lesão ulcerada recente; de rápido crescimento; infiltrada; vegetante e dolorosa,
em região frontoparietal de couro cabeludo, medindo 4,5x4,0x1,5cm. A biópsia revelou
CEC, bem diferenciado, ulcerado e invasor até a hipoderme (Figura 2).
Figura 2 - A: (Caso 2) Carcinoma espinocelular vegetante em paciente sob imunossupressão e deformidade
após a excisão. B: (Caso 2) Aspecto transoperatório: rotação de retalhos e aspecto final. C: (Caso 2) Aspecto pós-operatório tardio.
Figura 2 - A: (Caso 2) Carcinoma espinocelular vegetante em paciente sob imunossupressão e deformidade
após a excisão. B: (Caso 2) Aspecto transoperatório: rotação de retalhos e aspecto final. C: (Caso 2) Aspecto pós-operatório tardio.
CASO 3
Paciente com 68 anos, transplantado hepático há 9 anos, fazendo uso contínuo de imunossupressores.
Apresentou extensa lesão vegetante em região parieto-occipital esquerda. A biópsia
revelou CEC exofítico (Figura 3).
Figura 3 - (Caso 3) Carcinoma espinocelular em transplantado hepático: lesão inicial, deformidade
após a excisão, rotação de retalhos e aspecto final.
Figura 3 - (Caso 3) Carcinoma espinocelular em transplantado hepático: lesão inicial, deformidade
após a excisão, rotação de retalhos e aspecto final.
CASO 4
Paciente masculino, adulto, havia sofrido traumatismo cranioencefálico há 7 anos,
por agressão a machado. Foi operado quatro vezes em Serviços de Neurocirurgia. Por
mais de uma vez, foi realizada cranioplastia com acrílico autopolimerizável, seguida
de infecção subsequente e osteomielite frontoparietal, requerendo retirada do implante
e novo desbridamento ósseo (Figura 4).
Figura 4 - (Caso 4) Sequela de trauma cranioencefálico: perda óssea frontoparietal com enxerto
de pele sobre a dura-máter e fístula. Expansão tissular, cranioplastia, pós-operatório
imediato e tardio.
Figura 4 - (Caso 4) Sequela de trauma cranioencefálico: perda óssea frontoparietal com enxerto
de pele sobre a dura-máter e fístula. Expansão tissular, cranioplastia, pós-operatório
imediato e tardio.
Recebeu, ainda em outro serviço, enxerto de pele parcial colocado diretamente sobre
a dura-máter remanescente e o retalho de gálea, presumivelmente realizado. Os exames
iniciais, revelaram defeito frontoparietal, clamps subdurais, e importante fístula
drenando material seroso sobre a massa encefálica precariamente protegida pelo enxerto.
Teve episódios convulsivos, após sofrer pequenos traumas na região do enxerto, particularmente
durante o trabalho como mecânico de automóveis.
DISCUSSÃO
A pouca elasticidade, a espessura da pele e tecido subcutâneo, e a presença de gálea
aponeurótica espessa, em uma superfície convexa, fazem a reconstrução dos grandes
defeitos do couro cabeludo, uma tarefa desafiadora. Pelas abundantes anastomoses entre
os vasos temporais; supraorbitais; supratrocleares; auriculares posteriores e occipitais;
retalhos do couro cabeludo com apenas um pequeno pedículo geralmente sobrevivem, e
grandes retalhos se recuperam sem intercorrências5,6.
A maioria dos casos de CEC publicados, ocorre na cabeça e pescoço, e 8,3% a 25,2%
destes no couro cabeludo. O grande número atual de pacientes transplantados com maior
longevidade requer atenção, pois os imunossupressores concorrem para o aparecimento
de neoplasias cutâneas.
A recomendação clínica para a margem da excisão do CEC é de 4mm para os de baixo risco
e de 6mm para os de alto risco7. Empregamos cerca de 10mm de margem orientada pela patologia, retirando frequentemente
o periósteo.
No caso 1, as recidivas locais e a coalescência de lesões pré-malignas, solicitaram
uma excisão ampliada. O extenso defeito (16x16cm), indicaria um retalho livre microcirúrgico,
mas o uso crônico de imunossupressores, o diabetes e a hipertensão elevariam o risco
de comprometer um rim transplantado há 17 anos, com uma cirurgia mais longa. Empregamos
para a reconstrução, dois retalhos temporo-parieto-occipitais de rotação. O primeiro,
com pedículo na região temporal direita, rodado para cobrir a porção mais anterior
do defeito. O segundo, inferior e mais longo, com pedículo na região temporal esquerda,
para ocluir a porção mais posterior. O defeito occipital secundário, com periósteo
integro, recebeu um enxerto de pele total inguinal. No pós-operatório ocorreu epidermólise
e necrose superficial na borda distal do primeiro retalho. Tratadas por desbridamento
com hialuronidase e limpeza ambulatorial, depois curativos com Rifocina e finalmente
curativos oclusivos coloidais, apresentou excelente resultado.
O uso crônico de Metotrexato em pacientes com artrite reumatoide severa, provoca imunossupressão
(caso 2). Após excisão da lesão, dois retalhos randomizados foram empregados: um maior
e mais longo à direita com pedículo occipital; e um menor à esquerda com pedículo
temporal.
Ocorreu sofrimento distal no retalho à direita, levando à exposição óssea e desnível.
Com anestesia local, um pequeno retalho de gálea adjacente foi rodado e suturado sobre
o osso exposto. Empregando curativos oclusivos hidrocoloidais, a epitelização a partir
da gálea reparou completamente o defeito. Este caso ilustra a maior segurança do retalho
pediculado nos vasos temporais e o alto poder de epitelização da gálea.
O caso 3, paciente transplantado hepático, recebeu tratamento cirúrgico semelhante
ao do caso 2, mas o retalho direito de pedículo occipital foi mais curto e cursou
sem qualquer intercorrência.
No caso 4, cicatrizes temporal, frontal e occipital limitaram o emprego de retalhos.
Na indisponibilidade de recursos microcirúrgicos em um hospital público local na década
de 80, a expansão tecidual foi a opção encontrada. Preconizada por Sasaki, em 19858; Anger, em 19889; e outros10, foi sucedida por cranioplastia Korloff et al., 197311, e algumas osteossínteses com fios de aço. Apesar da extrusão de uma síntese e pequeno
fragmento ósseo, evoluiu sem recidiva da fístula, com proteção adequada ao cérebro
e excelente resultado estético. Este caso ilustra a aplicação de um retalho de avanço
expandido, na inviabilidade dos retalhos temporais.
CONCLUSÃO
A experiência adquirida no tratamento cirúrgico destes complexos e infrequentes casos,
indica preferencialmente grandes retalhos fasciocutâneos ao acaso com pedículos temporais,
na reconstrução de grandes defeitos do couro cabeludo, alternativamente à microcirurgia.
A ocorrência de sofrimento isquêmico distal nestes retalhos é uma possibilidade, que
adequadamente tratada, como nos casos apresentados, leva a excelentes resultados estéticos
e funcionais.
COLABORAÇÕES
JWF
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Investigação,
Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Preparação do original,
Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação, Visualização
|
KSMP
|
Coleta de Dados, Investigação, Realização das operações e/ou experimentos, Redação
- Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
|
MHM
|
Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
|
REFERÊNCIAS
1. Jr CCC. Tumors involving the craniofacial skeleton. In: McCarthy JG, ed. Reconstructive
plastic surgery: tumors head neck. Philadelphia: WB Saunders Company; 1977. p. 2757-75.
2. Romero RM, Arikat A, Machado Filho G, Aita CD, Oliveira MP, Jaeger MRO. Reconstrução
de defeitos no couro cabeludo. Rev Bras Cir Plást. 2018;33:90-2.
3. Steiner D, Horch RE, Eyüpoglu I, Buchfelder M, Arkudas A, Schmitz M, et al. Reconstruction
of composite defects of the scalp and neurocranium — a treatment algorithm from local
flaps to combined AV loop free flap reconstruction. World J Surg Oncol. 2018;16:217.
4. Souza CD. Reconstrução de grandes defeitos de couro cabeludo e fronte em oncologia:
tática pessoal e experiência – análise de 25 casos. Rev Bras Cir Plást. 2012;27(2):227-37.
5. Marchac D. Deformities of the forehead, scalp, and cranial vault. In: McCarthy JG,
ed. Plastic surgery. Philadelphia: WB Saunders Company; 1990. p. 1538-73.
6. Bradford BD, Lee JW. Reconstruction of the forehead and scalp. Facial Plast Surg Clin
North Am. 2019:27(1):85-94.
7. Jenkins G, Smith AB, Kanatas AN, Houghton DR, Telfer MR. Anatomical restrictions in
the surgical excision of scalp squamous cell carcinomas: does this affect local recurrence
and regional nodal metastases? Int J Oral Maxillofac Surg. 2014:43(2):142-6.
8. Sasaki GH. Tissue expansion. São Paulo: Dow Corning Healthcare Centre; 1985.
9. Anger J. Expansão de tecidos. São Paulo: Dow Corning do Brasil; 1988.
10. Fernandes JW. Expansores de pele. In: Fernandes JW, org. Cirurgia plástica - Bases
e refinamentos. Curitiba: Primax; 2012. p. 159-70.
11. Korloff B, Nylen B, Rletz K. Bone grafting of skull defects. Plast Reconstr Surg.1973;
52:378-383
1. Universidade Positivo, Curitiba, PR, Brasil.
2. Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.
Autor correspondente: Julio Wilson Fernandes Avenida Getúlio Vargas, 2079, Curitiba, PR, Brasil. CEP: 80250-180. E-mail: : cirurgiaplasticajwf@uol.com.br
Artigo submetido: 7/6/2019.
Artigo aceito: 29/2/2020.
Conflitos de interesse: não há.