INTRODUÇÃO
A reconstrução da mandíbula é um procedimento complexo e continua a ser um desafio
na cirurgia plástica reparadora1. Há tentativas de reconstrução descritas desde o século XIX, mas a maior experiência
surgiu realmente durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial1,2. Tentativas iniciais de reconstrução com enxertos ósseos e retalhos osteocutâneos
pediculados foram marcadas por alta incidência de complicações pós-operatórias e resultados
pobres a longo prazo2.
O advento da microcirurgia modificou de forma incontestável a cirurgia plástica reconstrutiva.
Os retalhos microcirúrgicos oferecem muitas vantagens: defeitos complexos e extensos
podem ser reparados em um único estágio, diminuindo o tempo de internação, o gasto
hospitalar e a morbidade, além da possibilidade de fechamento primário da área doadora.
As indicações para a reconstrução mandibular são diversas e incluem ressecções oncológicas,
lesões traumáticas e osteoradionecrose3,4. O objetivo final é a restauração da forma e da função, restabelecendo a mastigação,
deglutição, fala e competência oral5,6.
Atualmente, a transferência de osso vascularizado por técnica microcirúrgica é o padrão-ouro
para a reconstrução mandibular7,8,9,10. O retalho livre de fíbula foi descrito primeiramente por Taylor, 1975 Apud Hidalgo,
2002 o introduziu na reconstrução mandibular, em 19896. Apesar das inúmeras vantagens das reconstruções microcirúrgicas, o domínio dessa
ferramenta demanda longa curva de aprendizado, sendo que o insucesso pode levar a
consequências proporcionais à magnitude da técnica11.
OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho é avaliar uma série de pacientes submetidos a reconstruções
mandibulares complexas, operados pela equipe de cirurgia plástica do Hospital das
Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE) utilizando retalho livre
de fíbula após grandes ressecções tumorais.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo clínico retrospectivo, no período de janeiro de 2005 a julho
de 2017, analisando os prontuários dos pacientes submetidos a reconstruções microcirúrgicas
após a ressecção de neoplasias em cabeça e pescoço, operados pelo serviço de cirurgia
plástica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE).
Os critérios de inclusão foram: prontuários de pacientes atendidos no ambulatório
de cirurgia plástica do HC-UFPE com diagnóstico (clínico e histopatológico) de neoplasia
de mandíbula, submetidos a ressecções seguidas de reconstruções com retalhos livres
de fíbula. Foram estudados os seguintes parâmetros: sexo, idade, etiologia, tipo de
reconstrução e complicações. Foram excluídos da pesquisa: prontuários incompletos
ou pacientes que perderam o seguimento ambulatorial.
Pelo fato de nosso estudo ser retrospectivo, com obtenção de dados secundários contidos
em prontuários, a confecção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ficou
impossibilitada. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade
Federal de Pernambuco (CAAE: 82226718.8.0000.5208).
A prototipagem foi realizada em dois casos (Figuras 1 e 2). Foi feito o envio do DVD com a tomografia computadorizada dos pacientes para a
o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (Figura 3). No dia anterior à cirurgia, levou-se os protótipos para o centro cirúrgico, onde
simulou-se o procedimento, decidiu-se a margem de ressecção proximal, dobrou-se a
placa de reconstrução mandibular e escolheu-se o tamanho dos parafusos para cada segmento
de osso (fíbula coletada). A quantidade de osteotomias foi definida no planejamento
digital. Todo o material de fixação foi para esterilização após a cirurgia de modelo.
Confeccionou-se, na prototipagem: a base do crânio (com a glenoide), a fíbula doadora,
um guia de osteotomias para a fíbula e a mandíbula defeituosa (Figura 4).
Figura 1 - A. Pré-operatório; B. Área doadora; C. Pós-operatório; D. Retalho osteomiocutâneo moldado à placa; E. Controle radiológico: 6 meses de pós-operatório.
Figura 1 - A. Pré-operatório; B. Área doadora; C. Pós-operatório; D. Retalho osteomiocutâneo moldado à placa; E. Controle radiológico: 6 meses de pós-operatório.
Figura 2 - A e B. Pré-operatório; C. Reconstrução virtual pré-operatória da base do crânio e da fíbula com as osteotomias;
D. Modelo de prototipagem reconstruindo em tamanhos reais a fíbula (inteira e osteotomizada),
base de crânio e guia de corte para osteotomias.
Figura 2 - A e B. Pré-operatório; C. Reconstrução virtual pré-operatória da base do crânio e da fíbula com as osteotomias;
D. Modelo de prototipagem reconstruindo em tamanhos reais a fíbula (inteira e osteotomizada),
base de crânio e guia de corte para osteotomias.
Figura 3 - Reconstrução virtual pré-operatória: A, B e D. Base do crânio e fíbula; C. Aspecto da mandíbula com a projeção da fíbula após osteotomia.
Figura 3 - Reconstrução virtual pré-operatória: A, B e D. Base do crânio e fíbula; C. Aspecto da mandíbula com a projeção da fíbula após osteotomia.
Figura 4 - A. Tronco tíbio-fibular exposto; B. Posicionamento do molde/guia das osteotomias; C. Fíbula osteotomizada e moldada com placa (sem osteotomia proximal).
Figura 4 - A. Tronco tíbio-fibular exposto; B. Posicionamento do molde/guia das osteotomias; C. Fíbula osteotomizada e moldada com placa (sem osteotomia proximal).
RESULTADOS
A casuística foi composta de 6 pacientes, sendo três do sexo masculino (50%), a idade
variou de 12 a 48 anos, com média de 24 anos. No estudo, todas as reconstruções ocorreram
após ressecção de neoplasias de cabeça e pescoço (Tabela 1).
Tabela 1 - Caracterização da casuística.
Casos |
Sexo |
Idade |
Etiologia |
Tipo de reconstrução |
Complicações |
Prototipagem |
1 |
Fem |
48 |
Fibro histiocitoma Maligno |
Tardia |
Não |
Sim |
2 |
Fem |
40 |
Ameloblastoma |
Imediata |
Não |
Sim |
3 |
Mas |
18 |
Tumor ósseo aneurismático |
Imediata |
Não |
Não |
4 |
Fem |
12 |
Carcinoma de Células Gigantes |
Imediata |
Não |
Não |
5 |
Mas |
17 |
Neoplasia Sarcomatosa |
Imediata |
Deformidade de contorno da mandíbula
|
Não |
6 |
Mas |
12 |
Tumor ósseo aneurismático |
Imediata |
Osteomielite |
Não |
Tabela 1 - Caracterização da casuística.
Foram realizadas em 5 casos retalhos livres de fíbula osteomiocutâneos para reconstrução
da mandíbula (em um dos casos não houve necessidade de confeccionar ilha de pele junto
ao retalho). Observou-se uma cobertura eficaz dos extensos defeitos estudados, apresentando
em todos os casos bom resultado funcional e estético, com mínima morbidade à área
doadora.
Houve um caso que necessitou de segundo tempo cirúrgico para melhor definição da nova
mandíbula, sendo realizado artroplastia em hemiface acometida, e outro caso, que complicou
com osteomielite no 3º mês de pós-operatório, sendo tratado com desbridamento cirúrgico
e antibioticoterapia venosa.
Todos os casos de reconstrução foram traqueostomizados no intraoperatório, sendo decanulados
em até 3 semanas. Apenas um paciente foi submetido à reconstrução tardia (Tabela 1).
A taxa de viabilidade no nosso estudo foi de 100% dos retalhos realizados.
DISCUSSÃO
As reconstruções microcirúrgicas são técnicas complexas necessárias em centros de
reconstruções avançadas, e sem dúvida é de extrema relevância nas cirurgias oncológicas
de cabeça e pescoço. Nos últimos 50 anos, foram descritos vários avanços nessas técnicas
e uma variedade de potenciais retalhos1-5. Três décadas se passaram desde a introdução do retalho osteomiocutâneo da fíbula
em 1986, e o retalho continua a ser o padrão ouro para reconstrução de defeitos ósseos
na mandíbula e extremidades6-8.
A reabilitação mandibular é importante, porque há diversas funções atribuídas a este
osso, participando da mastigação, deglutição, competência oral, verbalização e suporte
à respiração. Além de contribuir essencialmente para os contornos do terço médio da
face10.
Na amostra estudada foram realizadas 6 reconstruções de mandíbula pós-ressecção de
tumores em região de mandíbula.
Em apenas um dos pacientes foi promovida reconstrução tardia da mandíbula (Tabela 1). No referido caso, não havia história de radioterapia local prévia. Na reconstrução
tardia maiores são as chances de se detectar a recidiva tumoral e disseminação local,
ao contrário da reconstrução imediata que cobre o sítio primário12,13,14. A reconstrução imediata é preferida pela maioria dos autores. Ela permite melhor
resultado estético, diminuição da morbidade, reabilitação mais rápida do paciente,
prevenção de sequelas que dificultam a reconstrução tardia e redução de custo e tempo
de tratamento14. Na realidade brasileira, a indisponibilidade de um microcirurgião, de tempo de sala
ou de material adequado, bem como a dúvida sobre margens livres leva, frequentemente,
ao atraso na reconstrução mandibular microcirúrgica15.
Em 2 pacientes optou-se por fazer o protótipo craniofacial e da fíbula doadora (Figuras
1 e 2). A introdução da prototipagem na medicina é relativamente recente. Com o avanço
tecnológico da radiologia (tomografia e ressonância), imagens de alta definição são
geradas, permitindo a detalhada visualização e análise em 3D das estruturas anatômicas.
A partir destas imagens (Figura 3), uma impressora digital pode criar um modelo 3D da estrutura anatômica estudada16,17. Adotou-se a tomografia computadorizada (TC) como exame padrão para confecção dos
protótipos, uma vez que a própria literatura considerara esse tipo de imagem ideal18.
Nos casos 1 e 2 (Tabela 1) a cirurgia de modelo realizada um dia antes nos trouxe uma série de benefícios:
diminuição da morbidade da área doadora (captar só o necessário); definição das margens
de ressecção (no caso 2); moldagem da placa; escolha dos parafusos; manutenção do
diâmetro transverso mandibular; encaixe da prótese de côndilo na ATM; manutenção da
melhor oclusão possível; menor tempo cirúrgico, menor tempo de anestesia, e menor
custo hospitalar. Um detalhe técnico importante da prototipagem deste caso é que se
pediu para prototipar também a base do crânio (contendo a glenoide) e a fíbula com
os locais das osteotomias (Figura 4)17,18,19,20.
A fíbula presta-se sobremaneira à implantodontia para reabilitação dentária. Os implantes
osteointegrados devem ser colocados entre 4 e 6 meses nos casos de enxertos ósseos,
e períodos mais longos de espera podem causar reabsorção óssea por falta de carga.
Infelizmente nenhum de nossos pacientes conseguiram, até o momento, os implantes osteointegrados,
devido à indisponibilidade de equipe e material fornecidos pelo Sistema Único de Saúde
(SUS)12,13.
A reconstrução mandibular apresenta complicações maiores do que em outras regiões
da face. Em um trabalho prévio realizado por Portinho et al., em 201311, as incidências de complicações na área receptora, em pacientes submetidos a mandibulectomias,
foram as seguintes: fístula, 21,2%; necrose, 13,5%; deiscência, 13,5%; infecção, 11,5%;
sangramento, 9,6%; extrusão de material de osteossíntese, 1,9%. Em nosso estudo, observamos
apenas um caso que evoluiu com infecção local (osteomielite), sendo necessário internamento
hospitalar e uso de antibióticos21,22,23.
CONCLUSÃO
Retalhos livres de fíbula constituem uma ótima alternativa para reconstrução em cabeça
e pescoço. Nossa experiência inicial e a literatura mostram resultados satisfatórios,
restaurando parcialmente a forma e função dos tecidos acometidos. A curva de aprendizado
é longa, mas tende a melhorar com o treinamento da equipe.
COLABORAÇÕES
MFMBL
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados,
Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Preparação
do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação, Visualização
|
JPBRM
|
Redação - Revisão e Edição, Supervisão
|
RA
|
Redação - Revisão e Edição, Supervisão
|
JZS
|
Redação - Revisão e Edição
|
KK
|
Análise e/ou interpretação dos dados, Coleta de Dados
|
REFERÊNCIAS
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1. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
Autor correspondente: Marcel Fernando Miranda Batista Lima Rua Barão de Itamaracá 78, Apto 1203,Espinheiro, Recife, PE, Brasil. CEP: 52020-070.
E-mail: marcelflima@hotmail.com
Artigo submetido: 1/7/2019.
Artigo aceito: 22/2/2020.
Conflitos de interesse: não há.