INTRODUÇÃO
A neurofibromatose tipo 1 é uma doença de herança autossômica dominante, sendo uma,
e a mais frequente (96%), de três doenças descritas sobre o espectro da "neurofibromatose";
as outras duas, neurofibromatose tipo 2 (3%) e schwanomatose, são clinicamente distintas
do tipo 1, não sendo alvo deste trabalho1,2. É caracterizada pela presença de neurofibromas, alterações cutâneas, esqueléticas
e envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas.
Neurofibromas são tumores benignos constituídos por células de Schwann, fibroblastos,
mastócitos e células perineurais, podendo ocorrer de forma esporádica como nódulos
solitários, ou associados a neurofibromatose tipo 1, com nódulos solitários, múltiplos
ou difusos. São a manifestação mais comum da doença, ocorrendo em até 60% dos pacientes2. Ocorrem de forma semelhante em homens e mulheres, podendo ser cutâneos ou internos,
envolvendo tecidos moles profundos. Sua forma cutânea pode ser pediculada, nodular
ou achatada, aumentando em número até a idade adulta2. Os neuromas internos podem acometer tecidos profundos, incluindo região periorbital,
retroperitoneal, trato gastrointestinal e mediastino2. O neuroma plexiforme é a forma patognomônica da doença2, sendo constituído de neurofibromas internos que, além de crescer dentro de um nervo
único, crescem envolvendo múltiplos fascículos e ramos de um nervo ou plexo.
Esse padrão de crescimento forma a característica "bag of worms" (bolsa de vermes), pela sua consistência à palpação. Diferentemente da forma cutânea,
neurofibromas plexiformes tem um risco aumentado de degeneração maligna2.
Tumores malignos de nervos periféricos, neurofibrossarcomas, são de ocorrência mais
rara, acometendo principalmente adultos jovens, constituindo 5-10% dos sarcomas de
tecidos moles3.
Epidemiologia
A prevalência de neurofibromatose tipo 1 no mundo é de 1 caso para 3000 habitantes,
podendo variar entre países e regiões, chegando até a prevalência de 1:960, em Israel1. Independente da população, 50% dos casos são decorrentes de herança familiar, e
o restante de uma mutação de novo do gene causador da doença.
A expectativa de vida dos portadores da doença é reduzida em média de 8 a 21 anos,
com a principal causa de morte precoce sendo o desenvolvimento de tumores malignos,
que são mais frequentes nos portadores da doença, se comparados com a população geral1.
Fisiopatologia
A neurofibromatose tipo 1 é uma doença genética autossômica dominante, com uma frequência
de mutações esporádicas de 50%1. É causada pela mutação no gene supressor de tumor NF1, localizado no cromossomo
17q11.22, que expressa a neurofibromina, uma proteína que regula negativamente proto-oncogenes
RAS. Pela ativação de RasGTPase, a neurofibromina inativa RAS, ligando-o a sua forma
inativa. A ausência dessa proteína aumenta o crescimento celular e sua sobrevivência,
pela hiperativação de RAS, levando à gênese tumoral. A ausência de neurofibromina
também leva a anormalidades, como lesões pigmentares, tumores cutâneos e alterações
ósseas1.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas são variadas e podem incluir neurofibromas dérmicos e, principalmente,
plexiformes, neurofibrossarcomas, anormalidades pigmentares (manifestação não neoplásica
mais comum, resultantes da origem embrionária comum entre melanócitos e células de
Schwann), alterações oftalmológicas, como nódulos de Lisch, glaucoma e gliomas, displasias
ósseas (pela disfunção do ciclo de formação óssea por desregulação de osteoclastos
e osteoblastos), além de poder envolver vários outros órgãos e provocar alterações
comportamentais. Os neurofibromas, teoricamente, podem aparecer em qualquer nervo
periférico. Porém, estima-se que aproximadamente 25% dos neurofibromas sintomáticos
ocorram na cabeça e pescoço4.
Neurofibromas plexiformes envolvendo a pálpebra, órbita, periórbita e estruturas faciais
podem levar, dentre outras alterações, a perda visual em crianças na idade de maturação
visual, e se distribuem principalmente ao longo do trajeto do nervo trigêmio5. Apesar da maioria dos casos de cegueira serem secundários a gliomas no nervo óptico,
neurofibromas plexiformes periorbitais também causam perda de visão, secundária a
ambliopia e glaucoma5.
Diagnóstico e Tratamento
O diagnóstico da neurofibromatose tipo 1 se baseia no exame físico minucioso do paciente
e na história familiar de neurofibromatose. Em casos desafiadores, como crianças abaixo
de 6 anos ou sem antecedentes familiares, o estudo genético pode ser utilizado para
confirmação. Visando facilitar a detecção precoce, o National Institute of Health criou uma lista de critérios diagnósticos, apresentados abaixo. Aproximadamente 30%
dos pacientes portadores da doença apresentarão pelo menos um dos critérios até a
idade de 1 ano; 97% dos pacientes apresentarão dois critérios até os 8 anos; e, todos
os pacientes fecham os critérios diagnósticos da lista até a idade de 20 anos2,6.
Critérios diagnósticos para Neurofibromatose tipo 1
Dois ou mais dos seguintes: pelo menos seis máculas café com leite (>5mm de diâmetro
em pré-púberes e > 15mm em pós-púberes); sardas em região axilar ou inguinal; glioma
ótico; pelo menos dois nódulos de Lisch (hamartomas de íris); pelo menos dois neurofibromas
de qualquer tipo, ou um neurofibroma plexiforme; lesão óssea distinta; parente de
primeiro grau com diagnóstico de neurofibromatose tipo 12,5 (Figura 1).
Figura 1 - Apresentações não neoplásicas da NF1.
A. Mácula café-com-leite;
B. Sardas em dobras cutâneas;
C. Nódulos de Lisch;
D. Pseudoartrose tibial e fratura em criança com NF1. Fonte: J.L. Anderson and D.H.
Gutmann
5.
Figura 1 - Apresentações não neoplásicas da NF1.
A. Mácula café-com-leite;
B. Sardas em dobras cutâneas;
C. Nódulos de Lisch;
D. Pseudoartrose tibial e fratura em criança com NF1. Fonte: J.L. Anderson and D.H.
Gutmann
5.
Diagnóstico diferencial deve incluir Síndrome de Legius, hiperpigmentação cutânea
e tumores erroneamente diagnosticados como neurofibromas, a exemplo de alguns lipomas1.
Tem um caráter progressivo ao longo da vida, mas a severidade de progressão pode variar
muito entre os acometidos.
A doença não possui um tratamento definitivo e a conduta geralmente se baseia no acompanhamento
clínico e no tratamento sintomático das manifestações sistêmicas. Crianças com diagnóstico
precoce devem começar acompanhamento multidisciplinar cedo e regular, com consultas
oftalmológicas, dermatológicas e medidas rotineiras de pressão arterial, pela ocorrência
de vasculopatia de artéria renal7,8.
Os neurofibromas dérmicos frequentemente causam prurido, dor, sangramento e problemas
estéticos. Seu manejo inclui remoção cirúrgica de lesões maiores, ablação com laser
de lesões menores, emolientes e suporte psicológico1,5.
Todos os pacientes portadores de NF1 que desejem ter filhos devem ser referenciados
para um acompanhamento genético. Mulheres devem ser aconselhadas sobre os potenciais
riscos de uma gestação, como hipertensão e a possibilidade dos neurofibromas aumentarem
em número e tamanho7.
OBJETIVO
Descrever um caso de uma criança de 1 ano de idade, portadora de neurofibroma de nervo
infraorbital, manifestando-se como massa expansiva e deformante em hemiface direita,
e o tratamento cirúrgico com um acesso facial que promova adequada exposição da lesão,
bem como possível preservação de tecidos e estética facial.
RELATO DE CASO
Paciente T.J.R.R, sexo masculino, 1 ano e 11 meses, em acompanhamento com a Dermatologia
devido a presença de algumas manchas café com leite na superfície corporal e com a
oftalmologia devido ao desenvolvimento de nódulos de Linch na íris (hamartomas), manifestações
clínicas da neurofibromatose tipo 12. Encaminhado ao serviço de cirurgia plástica para investigação de lesão expansiva
e fibrótica na região maxilar direita, com deformidade facial incluindo alargamento
e levantamento da asa nasal direita, e deformidade de pálpebra inferior ipsilateral.
Não apresentava qualquer acometimento visual, neurológico ou atraso no desenvolvimento
neuromotor.
Foi solicitado uma tomografia computadorizada para melhor avaliação, que identificou
massa em maxila direita, com acometimento de nervo infraorbital e alargamento do foram
infraorbital, porém possivelmente sem acometimento ósseo (Figura 2). Foi então realizada biópsia incisional, que diagnosticou a massa como neuroma.
Figura 2 - Imagem de Ressonância Magnética evidenciando lesão em infraorbital e alargamento do
forame infraorbital.
Figura 2 - Imagem de Ressonância Magnética evidenciando lesão em infraorbital e alargamento do
forame infraorbital.
O paciente foi submetido a ressecção completa da massa por abordagem aberta, com acesso
facial a Weber-Ferguson. A ressecção foi feita de modo retrógrado (do osso para a
pele), na tentativa de preservar o máximo possível de partes moles (Figuras 3A e 3B). Foi ressecado o nervo infraorbital em sua origem, junto com toda a massa e tecidos
adjacentes, conseguindo-se preservar um retalho de pele adequado para cobertura, assim
como coxins superficiais de gordura. Não havia aparente acometimento ósseo (Figuras 4A e 4B).
Figura 3 - A. (esquerda): acesso facial evidenciando massa em topografia direita. B. (direita): massa já ressecada, evidenciando forame infraorbital.
Figura 3 - A. (esquerda): acesso facial evidenciando massa em topografia direita. B. (direita): massa já ressecada, evidenciando forame infraorbital.
Figuras 4A e 4B - Sítio cirúrgico após ressecção da peça (esquerda) e planos (direita).
Figuras 4A e 4B - Sítio cirúrgico após ressecção da peça (esquerda) e planos (direita).
O anatomopatológico de peça cirúrgica diagnosticou a lesão como neurofibroma circundado
por tecido fibrótico sem acometimento do forame infraorbital, apesar do alargamento
do mesmo.
O paciente T.J.R.R. evoluiu com leve edema compatível com o pós-operatório imediato,
sem complicações associadas ao procedimento cirúrgico. Está atualmente com 3 anos
de pós-operatório. Apresenta possível alteração de sensibilidade da hemiface acometida
no trajeto do nervo infraorbital (exame de difícil mensuração pela idade do paciente),
porém sem outras sequelas ou sinais de recidiva. Apresenta bom resultado estético,
com melhora da posição da asa nasal, sem retrações ou cicatrizes patológicas.
DISCUSSÃO
O tratamento cirúrgico dos neurofibromas associados a neurofibromatose tipo 1 pode
ser desafiador para o cirurgião plástico, principalmente quando localizados na face,
já que podem resultar não somente em deformidades de pele, mas também sequelas sensoriais
e motoras pelo acometimento de nervos periféricos. Além disso, quando acometem crianças,
as mesmas ainda possuem desenvolvimento e crescimento incompleto de estruturas ósseas
e partes moles, tornado imperativo ressecções menos agressivas, desde que adequadas
para o tratamento da patologia.
O nervo sensitivo infraorbital é a terminação do ramo maxilar do nervo trigêmeo (V
par craniano), que emerge do forame infraorbital d a maxila, aproximadamente 1cm abaixo
da margem orbital inferior, sendo responsável pela sensibilidade da pele da porção
medial da bochecha, parte do nariz, pálpebra inferior e lábio superior9.
A incisão de Weber-Ferguson é um excelente acesso para tumores que envolvem maxila
e órbita inferior, dando amplo acesso a essas regiões. Originalmente, o acesso pode
iniciar no vermelhão do lábio superior, seguindo pelo filtro labial, ou na asa do
nariz, acompanhando a parte lateral do dorso nasal e continuando para a pálpebra inferior,
3-4mm abaixo da margem ciliar. Feita a incisão em plano total, o retalho é rebatido
após uma dissecção sub ou supraperiosteal, dependendo do objetivo cirúrgico e invasão
tumoral10 (Figuras 5A e 5B).
Figuras 5A e 5B - Acesso de Weber-Ferguson e adequada exposição da maxila e forame infraorbital. Fonte:
AO Surgery Reference.
Figuras 5A e 5B - Acesso de Weber-Ferguson e adequada exposição da maxila e forame infraorbital. Fonte:
AO Surgery Reference.
Optamos por essa incisão para adequada visualização da lesão. Iniciamos a ressecção
subperiosteal de forma retrógrada até a pele, para possibilitar a preservação de partes
moles não acometidas. Com ela, conseguimos ressecar toda a lesão preservando um retalho
adequado de pele para cobertura, sem deformidades aparentes. Outras incisões possíveis
seriam o acesso direto sobre a lesão, incisão intraoral no sulco vestíbulo-gengival
ou acessos laterais.
Incisões sobre a lesão provavelmente resultariam em ressecções de pele sem necessidade,
além de cicatrizes aparentes e possíveis deformidades. A incisão intraoral, por sua
vez, apesar de ótima exposição óssea, não fornece adequada exposição de partes moles
retrogradamente. Incisões laterais são dificultadas por dissecções amplas envolvendo
parótida e ramos do nervo facial, para se ter acesso adequado à lesão.
CONCLUSÃO
Concluímos, portanto, que a abordagem cirúrgica através da incisão de Weber-Ferguson
permitiu o melhor acesso para tumores de maxila envolvendo o nervo infraorbital, com
ampla exposição, preservação de partes moles e resultado estético adequado, minimizando
sequelas.
COLABORAÇÕES
MVCG
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Análise e/ou interpretação dos dados, Concepção e desenho do estudo, Investigação,
Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição
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LCJ
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Investigação, Redação - Revisão e Edição
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KRO
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Redação - Preparação do original
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CMV
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Visualização
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Vizualização e revisão
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REFERÊNCIAS
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DOI: http://dx.doi.org/
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AO Surgery. 2019;6(4).
1. Hospital Felício Rocho, Barro Preto, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Autor correspondente: Marcus Vinícius Capanema Gonçalves Alameda Oscar Niemeyer, 1100, 1501C, Vila da Serra, Nova Lima, MG, Brasil. CEP: 34006-065.
E-mail: marcusvic1@hotmail.com
Artigo submetido: 5/1/2019.
Artigo aceito: 8/7/2019.
Conflitos de interesse: não há.