ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

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Original Article - Year2019 - Volume34 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2019RBCP0231

RESUMO

Introdução: O suicídio é um sério problema de saúde pública. Estima-se que para cada óbito existam 10 tentativas. Dentre os meios utilizados, as queimaduras têm destaque devido à gravidade das lesões, a alta taxa de letalidade e os grandes prejuízos funcionais, estéticos e psicológicos. As mulheres, por constituírem a maioria dos pacientes com história de tentativa de suicídio e morte por queimaduras, representam um grupo vulnerável que merece recorte para aprofundamento do estudo.
Métodos: Estudo retrospectivo, de caráter descritivo de série temporal. Foi desenvolvido na Unidade Tratamento de Queimados e no Instituto de Medicina Legal em Brasília (DF), entre os anos de 2010 e 2015.
Resultados: Foram identificadas 42 mulheres com história de suicídio por queimaduras, tentado ou consumado. Houve 15 óbitos relacionados diretamente à lesão térmica. Houve um predomínio da faixa etária entre 30 e 44 anos, seguida por 15 a 29 anos. Em 64,3% dos casos o evento aconteceu no DF. Em relação aos agentes etiológicos, o mais comum foi o álcool (71,4%). A média de superfície corporal queimada foi de 34,38%, sendo que as pacientes que faleceram apresentaram áreas queimadas maiores (59,53%) do que as que sobreviveram (20,4%).
Conclusão: Os dados obtidos no DF corroboram informações da literatura. Apesar do progresso envolvendo manejo e tratamento dos pacientes queimados, a prevenção continua sendo a melhor atitude.

Palavras-chave: Suicídio; Mulheres; Queimaduras; Unidades de queimados; Saúde pública

ABSTRACT

Introduction: Suicide is a serious public health problem. For every death, there are an estimated 10 suicide attempts. Among the means of suicide, burns are prominent due to the lesion severity, the high mortality rate, and the severe functional, aesthetic, and psychological damage. Women comprise the majority of patients with a history of attempting suicide and death by burns and represent a vulnerable group that deserves attention.
Methods: This retrospective descriptive time-series study was performed in the Burn Treatment Unit at the Institute of Legal Medicine in Brasília, Distrito Federal (DF) between 2010 and 2015.
Results: A total of 42 women with a history of suicide by burns, attempted or consummated, were identified; 15 deaths were directly related to the thermal injury. Suicide by burns was the most predominant among patients aged 30 to 44 years was observed, followed by those aged 15 to 29 years. In 64.3% of cases, the event occurred in the Brasília, Distrito Federal (DF). Alcohol was the most common etiological agent (71.4%). The average burned body surface area was 34.38%, and the patients who died presented larger burned areas (59.53%) than that in those who survived (20.4%).
Conclusion: The data obtained from the Brasília, Distrito Federal (DF) corroborate information from the literature. Despite progress involving the management and treatment of burn patients, prevention remains the best strategy.

Keywords: Suicide; Women; Burns; Burn units; Public health.


INTRODUÇÃO

O suicídio é um fenômeno complexo e um sério problema de saúde pública. Estudos recentes relatam que a cada 40 segundos ocorre um suicídio no mundo1, correspondendo a mais de 800.000 óbitos por ano. É a segunda maior causa de morte entre pessoas de 15 e 29 anos de idade, perdendo apenas para os acidentes de trânsito2. O quadro é ainda mais alarmante quando é analisada a tentativa de suicídio. Estima-se que o número de tentativas supere o de suicídios consumados em pelo menos 10 vezes e que para cada tentativa documentada existem outras 4 não registradas3.

O comportamento suicida é complexo e multifatorial. Os fatores de risco relacionados não se restringem à ocorrência de algum acontecimento estressor recente, como separação conjugal ou perda do emprego. Resulta da interação entre componentes sociais, culturais e psicológicos4.

Na grande maioria dos casos existe um transtorno mental diagnosticável, notadamente: depressão e ansiedade. Mais de 60% das pessoas que se suicidaram não estavam em tratamento quando morreram5, revelando a importância do reconhecimento de todas as dimensões dos transtornos mentais na prevenção ao suicídio.

Um importante sinal de alerta para a ocorrência de suicídio é a tentativa prévia. O risco de alguém se matar aumenta após tentativa prévia de forma diretamente proporcional ao número de tentativas e inversamente proporcional ao tempo transcorrido3,5.

Outros fatores, considerados geralmente em associação aos anteriores, são relacionados a condições individuais (conflitos interpessoais, presença de dores crônicas, sentimento de desesperança, histórico familiar de suicídio, uso de drogas, alcoolismo, fatores genéticos e biológicos), sociais (dificuldade de acesso aos serviços de saúde, estigmatização dos transtornos mentais e daqueles pacientes que procuram ajuda por ideias de autolesão, facilidade em alcançar os meios ou instrumentos para cometer o suicídio) e ambientais (guerra, desastres ou conflitos, discriminação, traumas e abusos)4.

Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, ocorreram em 2015, no Brasil, 152.135 mortes por causas externas, sendo que 11.178 foram relatadas como "lesões autoprovocadas intencionalmente"6, o que corresponde a 7,34% do total. Esse número pode ser maior, visto que outras 9.810 mortes são classificadas como "eventos (fatos) cuja intenção é indeterminada"6, podendo corresponder em menor ou maior grau a mortes cuja intencionalidade não pode ser comprovada. Dentro das categorias listadas como métodos de autolesão pelo Ministério da Saúde, as classificadas como "lesão autoprovocada intencionalmente pela fumaça, pelo fogo e por chamas" corresponderam a 156 casos de óbitos no Brasil no ano de 20157. Os métodos utilizados para provocar a autolesão são variados, com resultados diferentes quanto a morbimortalidade. Nesse contexto, as queimaduras, apesar de não serem a primeira escolha como método de autolesão, tem importante destaque devido à gravidade das lesões provocadas, a alta taxa de letalidade e os grandes prejuízos psicológicos, funcionais e estéticos naqueles que sobreviveram à tentativa8. De modo especial, as mulheres, por representarem a maioria dos pacientes com história de tentativas de suicídio e de morte por queimaduras auto infligidas9-11, tornam-se grupo populacional vulnerável que merece recorte para o aprofundamento do estudo da questão.

O suicídio é uma morte evitável4. Sendo assim, evidencia-se a relevância da realização deste estudo, uma vez que, em revisão de literatura não encontramos estudos epidemiológicos sobre o tema com destaque para a população feminina realizados no Distrito Federal, Brasil.

OBJETIVO

O objetivo desta pesquisa é determinar o perfil das mulheres internadas por tentativa de suicídio, usando meio físico (queimadura), no centro de referência para tratamento de queimados ou que faleceram em decorrência de queimaduras autoinfligidas no Distrito Federal, no período de julho de 2010 a junho de 2015.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo retrospectivo, de caráter descritivo de série temporal. Foi desenvolvido em dois locais: na Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), centro de referência para atendimento de vítimas de queimaduras na Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SESDF), e no Instituto de Medicina Legal (IML) da Polícia Civil do Distrito Federal, onde são realizados todos os exames necroscópicos dos casos de mortes de causas externas ocorridas nessa unidade da federação.

A amostra foi de conveniência, constituída por todos os casos relatados como suicídio por queimadura, tentado ou consumado, ocorridos no período de 1º de julho de 2010 a 30 de junho de 2015, considerando a data da internação na UTQ ou da realização do exame cadavérico (no caso das vítimas que não tenham sido internadas no HRAN). A escolha do período foi feita baseando-se na disponibilidade dos dados quando da introdução do prontuário eletrônico na SESDF.

Foram excluídos da pesquisa os dados obtidos dos documentos que não mencionem de forma objetiva a intenção suicida, nem a ação de meio físico (queimadura) como causa primária da internação ou do óbito.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de janeiro e junho de 2017 e foi realizada de acordo com a disponibilização dos documentos por cada instituição.

No HRAN, os dados foram coletados dos relatórios de alta das pacientes e, em caso de dúvida ou na ausência de determinada informação, foi realizada a busca ativa no prontuário eletrônico da Secretaria de Saúde do Distrito Federal para complementação.

No IML, a coleta foi realizada a partir do banco de dados informatizado da Polícia Civil.

A listagem com todos os laudos cadavéricos de mulheres mortas por ação de meio físico (queimaduras) no período do estudo foi disponibilizada pelo Setor de Informática, Planejamento e Estatística do Instituto, permitindo a consulta do documento médico e da ocorrência policial relacionados ao evento.

Os dados foram coletados e armazenados em um formulário eletrônico próprio construído no programa Microsoft Excel, versão 2013, onde foram registradas as variáveis a serem estudadas, a seguir: idade, local onde ocorreu a queimadura, data da queimadura, data da internação, data do exame cadavérico, data da alta ou do óbito, dias entre a queimadura e a internação, dias de internação, superfície corporal queimada (SCQ), profundidade (grau) da queimadura, segmentos corporais atingidos, agente, presença de lesões associadas, antecedentes clínicos, evolução clínica durante a internação e desfecho (alta hospitalar ou óbito).

Os dados foram analisados estatisticamente utilizando o programa Microsoft Excel, versão 2013.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Parecer nº 1.504.214 - FEPECS/SES/DF). Em nenhum momento os documentos físicos foram retirados dos locais de trabalho, nem os digitais foram impressos ou gravados em outras mídias, sendo analisados na pesquisa apenas os dados presentes no meio de coleta.

RESULTADOS

Entre julho de 2010 e junho de 2015 foram identificadas 42 mulheres com história de suicídio por queimadura, tentado ou consumado, no Distrito Federal (Figura 1). Dessas, 40 foram internadas no HRAN e uma em hospital privado (Tabelas 1, 2 e 3).

Figura 1 - Distribuição semestral do no de casos de suicídio, tentado ou consumado, por queimaduras entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).

Tabela 1 - Perfil epidemiológico das mulheres vítimas de suicídio, tentado ou consumado, entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).
Característica N %
Faixa etária (anos)    
15 a 29 12 28,5
30 a 44 20 47,6
45 a 59 8 19
60 ou mais 2 4,9
Estado onde ocorreu a queimadura    
DF 27 64,3
GO 10 23,8
MG 3 7,1
MT 1 2,4
TO 1 2,4
Agente etiológico    
Álcool + fogo 30 71,4%
Acetona + fogo 7 16,6%
Fogo 2 4,8%
Gasolina + fogo 1 2,4%
Soda cáustica 1 2,4%
Água quente 1 2,4%

DF: Distrito Federal; GO: Goiás; MG: Minas Gerais; MT: Mato Grosso; TO: Tocantins.

Tabela 1 - Perfil epidemiológico das mulheres vítimas de suicídio, tentado ou consumado, entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).
Tabela 2 - Idade, dias de internação e superfície corporal queimada das mulheres vítimas de suicídio, tentado (alta hospitalar) ou consumado (óbito), entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).
Característica Alta Óbito Total
Média DP Média DP Média DP
Idade 33,4 + 10 42,8 + 11,6 36,7 + 11,5
Dias de internação 28,3   12,07 + 10,5 22,5 + 21,1
SCQ 20,4 + 13 59,53 + 24,7 34,38 + 26
Tabela 2 - Idade, dias de internação e superfície corporal queimada das mulheres vítimas de suicídio, tentado (alta hospitalar) ou consumado (óbito), entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).
Tabela 3 - Perfil clínico das mulheres vítimas de suicídio, tentado (alta hospitalar) ou consumado (óbito), entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).
Característica Alta Óbito Total
n % n % n %
Nº de mulheres: 27 64,3 15 35,7 42 100
Gravidade:
Pequeno 10 23,8 0 0 10 23,8
Médio 6 14,3 2 4,7 8 19
Grande 11 26,2 13 31 24 57,2
Antecedentes:
PSQ* 16 59 13 86,6 29 69
Tentativa prévia 4 14,8 5 33,3 9 21,4
Lesão inalatória: 1 3,7 7 46,6 8 19
Complicações:
Infecção de ferida 17 63 4 26,6 21 50
Pneumonia 2 7,4 4 26,6 6 14,3
Sepse 5 18,5 7 46,6 12 28,5

* PSQ: transtorno psiquiátrico.

Tabela 3 - Perfil clínico das mulheres vítimas de suicídio, tentado (alta hospitalar) ou consumado (óbito), entre julho de 2010 e junho de 2015, em Brasília (DF).

DISCUSSÃO

Considerando a distribuição por faixas etárias, observou-se predomínio de mulheres entre 30 e 44 anos (47,6%), seguida por 15 a 29 anos (28,5%), com média geral de idade de 36,76 anos, variando entre 15 e 70 anos. Esses achados foram semelhantes a outros trabalhos científicos10,12 e aos registros da Organização Mundial de Saúde (OMS), onde o suicídio figura entre as três principais causas de morte de pessoas entre 15 a 44 anos de idade, sendo responsável anualmente por cerca de um milhão de óbitos (o que corresponde a 1,4% do total de mortes). Essas cifras não incluem as tentativas de suicídio, de 10 a 20 vezes mais frequentes que o suicídio em si4.

Quando analisada a unidade da federação onde ocorreu o evento, em 27 casos (64,3%) foi identificado o Distrito Federal (DF) como endereço, sendo outros estados responsáveis por 15 casos (35,7%). Destes, Goiás e Minas Gerais corresponderam a 86,6%, enquanto Mato Grosso e Tocantins, 13,4%. A capital do país é cercada por vários municípios goianos e mineiros, compondo a RIDE (Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno). Essas cidades apresentaram um crescimento demográfico elevado nos últimos anos, sem crescimento proporcional da estrutura hospitalar. Considerando ser o HRAN o centro de tratamento especializado em queimados público mais próximo, era esperado elevado número de pacientes desses estados.

Em relação às regiões administrativas (RA) do DF, onde foram observados mais casos, Ceilândia apresentou 7 (16,6%), seguida por Santa Maria com 4 (9,5%). Taguatinga, Samambaia e Brazlândia foram responsáveis por 2 casos cada uma. Os demais casos distribuíram-se unitariamente em outras RAs. Entre os anos de 2012 e 2013, Ceilândia foi a região administrativa mais populosa do Distrito Federal e com maior número de registros de atos violentos contra a mulher13. Esse dado isolado não permite concluir que a violência praticada contra as mulheres tenha como reflexo direto o aumento dos casos de suicídio. No entanto, permite inferir a relação entre as duas situações.

A exposição frequente a situações violentas pode resultar na naturalização desses eventos. É muito comum os maiores índices de violência doméstica estarem atrelados a maiores índices globais de violência14. Condições socioeconômicas precárias, relações interpessoais abusivas e violentas, uso de drogas e de álcool e aspectos culturais relacionados à posição da mulher dentro da família estão entre os fatores que resultam em ambientes domésticos instáveis e desequilibrados, onde os eventos violentos, principalmente contra mulheres e crianças, são menosprezados e a distinção entre eventos acidentais e intencionais (inclusive os autoinfligidos) torna-se difícil, principalmente por insuficiência de informações prestadas aos serviços de saúde e de segurança pública15,16.

No que diz respeito aos agentes etiológicos, a queimadura térmica foi a mais frequente. Houve predominância dos líquidos inflamáveis associados ao fogo, correspondendo a 38 casos (90,5%), corroborando os achados na literatura17,18. Dentro da categoria "líquidos inflamáveis", houve destaque para o álcool, como observado em outros estudos8,19. Em contraste com as queimaduras acidentais, as escaldaduras (queimaduras por derramamento de líquidos não inflamáveis aquecidos) mostraram-se pouco frequentes20, bem como as queimaduras químicas, representadas neste estudo pela soda cáustica.

Em relação a extensão da queimadura, a média da superfície corporal queimada (SCQ) foi de 34,38%, variando entre 2 e 95%. Separando em 2 grupos, as pacientes que tiveram alta hospitalar e as que faleceram, os números passam a ser, respectivamente, 20,4 ± 13 e 59,53 ± 24,7. A associação entre queimaduras de espessuras parciais profundas e totais foi a mais prevalente, ocorrendo em 59,5% dos casos. Quando considerada a gravidade do quadro à admissão ou no momento do óbito, relacionando superfície corporal queimada e profundidade das lesões21, houve o predomínio da grande queimada, com 24 pacientes (57,6%), corroborando estudos nacionais19. Esses números refletem a proporcionalidade direta entre SCQ e gravidade clínica. Quanto maior a SCQ, maiores são a perda da barreira cutânea e o desequilíbrio da homeostase, predispondo a aumento de complicações infecciosas, distúrbios hidroeletrolíticos e alterações de perfusão teciduais22.

Em relação ao segmento corporal atingido, houve o predomínio da metade superior do corpo. Foram observadas queimaduras na cabeça em 38 mulheres (90,4%), no tronco em 39 (92,8%) e nos membros superiores em 35 (83,3%). Os membros inferiores foram atingidos em 26 mulheres (61,9%). Os dados confirmam as informações disponíveis na literatura23-25. Esse fato pode dever-se à dinâmica do evento intencional, onde tende-se a iniciar o derramamento do líquido, principalmente os inflamáveis, pela região cefálica e por ação gravitacional os membros superiores e o tronco também são atingidos. O período médio de internação foi de 22,5 dias, variando entre 1 e 92 dias. Separando em dois grupos, as pacientes que receberam alta hospitalar e as que faleceram, a média de dias de internação passa a ser, respectivamente, 28,3 ± 23,2 e 12,7 ± 10,5. Essa diferença é observada em outros trabalhos26.

A incidência de tentativa de autoextermínio por fogo está entre as mais dramáticas de todas as formas de suicídio, sendo o sofrimento psíquico motivação importante para a autoimolação. Foi identificado, a partir de relatos da própria paciente, de familiar ou por avaliação psiquiátrica durante a internação, histórico de doenças psiquiátrica em 29 mulheres (69%). História de tentativa prévia de suicídio também foi relatada pela paciente ou por familiar em 9 casos (21,4%). A associação de tentativa de suicídio e doenças psiquiátricas é amplamente discutida na literatura científica8,10-12, bem como o histórico de tentativas prévias como fator de risco para uma nova tentativa3,4,24.

As complicações infecciosas foram as mais prevalentes no grupo analisado neste trabalho. Vinte e oito mulheres apresentaram complicações infecciosas, sendo que dessas, 21 foram diagnosticadas com infecção de ferida e 6 com pneumonia. Treze pacientes evoluíram para sepse.

Das 42 mulheres incluídas neste estudo, quinze faleceram, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 35%. Esse dado é compatível com outros trabalhos científicos11,19. Desses óbitos, quatorze ocorreram em ambiente hospitalar e um no local onde foi praticado o suicídio. Todos os óbitos foram necropsiados no IML (Tabela 4).

Tabela 4 - Mulheres vítimas de suicídio no período de julho de 2010 a junho de 2015, em Brasília (DF).
  Idade SCQ Grau Dias de  internação Evolução Causa da morte (necropsia)
1 47 72 1 QVA Falência múltipla de órgãos
2 53 83 2º e 3º 1 QVA Grande queimado
3 36 35 2º e 3º 31 QVA, IF, PNM, sepse Queimaduras múltiplas
4 43 60 2º e 3º 12 QVA, IF, IRA, sepse Sepse
5 30 70 2º e 3º 14 Sepse Sepse
6 55 85 2º e 3º 12 QVA, IRA, sepse Sepse
7 45 40 2º e 3º 8*+24 PNM, IRA, sepse Sepse
8 19 24 16 IF, insuf. resp. PNM
9 41 16 2º e 3º 12 IRA, insuf. resp. Complicações de queimaduras
10 36 30 2º e 3º 21 IF, sepse Sepse
11 70 50 2º e 3º 23** QVA,  PNM,  IRA, sepse Sepse
12 48 93 2º e 3º 2 Insuf. resp. Sepse
13 47 70 2º e 3º 0*** QVA Edema pulmonar
14 41 95 2º e 3º 1** Desidratação Grande queimado
15 31 70 2º e 3º 3 Edema pulmonar Hipovolemia

* Internação prévia à UQ/HRAN;

** Internação em outro hospital;

*** Óbito no local do evento. QVA: queimadura de via aérea; IF: infecção de ferida; PNM: pneumonia; IRA: insuficiência renal aguda; Insuf. resp.: insuficiência respiratória.

Tabela 4 - Mulheres vítimas de suicídio no período de julho de 2010 a junho de 2015, em Brasília (DF).

É notório que o aumento da superfície corporal queimada e da profundidade das lesões e a associação com queimaduras de vias aéreas apresenta relação diretamente proporcional ao aumento da mortalidade12. A presença de queimadura inalatória diminui a proteção das vias aéreas contra infecções, predispondo a paciente a complicações pulmonares como insuficiência respiratória e pneumonia27, piorando o prognóstico. Neste estudo, das mulheres que faleceram, 13 delas foram consideradas grande queimadas (86%) e 7 (46,6%) apresentaram associação com queimaduras inalatórias diagnosticadas durante a internação ou ao exame necroscópico, corroborando a literatura atual.

As principais causas de óbitos identificadas em pacientes queimados são as complicações infecciosas, notadamente a sepse, e a falência múltipla de órgãos28. Na literatura científica atual a sepse é citada como a principal causa de morte após 24 horas da queimadura, sendo mais importante após 2 semanas29. Os principais gatilhos para a morte por sepse ou choque séptico no paciente queimado são as infecções de ferida e as pneumonias29. Neste estudo, foram relatados nos exames post-mortem os diagnósticos de sepse em 7 exames, pneumonia em 1 e falência múltipla de órgãos em 1.

Pode-se observar algumas limitações da pesquisa. A escolha do período a ser estudado, por conveniência, limita a comparação entre os anos. Por tratar-se de uma análise retrospectiva de dados em documentos médicos e policiais, pode ter ocorrido o registro inadequado de algum dado. Os documentos são preenchidos com as informações disponíveis em determinado momento, sendo ou não complementados de acordo com a evolução hospitalar ou da investigação policial.

Além disso, pode não haver por parte do profissional responsável pelo atendimento, seja na Saúde ou Segurança Pública, a suspeição do caso como sendo de violência autoinfligida. Em relação a incompletude dos dados, nada é mais relevante que a subnotificação dos casos como autolesão. A ausência de relato objetivo de suicídio, tentado ou consumado, tanto nos documentos médicos quanto nos policiais, excluiu essa mulher do estudo, restringindo a amostra estudada.

CONCLUSÃO

Os dados obtidos neste trabalho corroboram a literatura disponível sobre o assunto. A grande maioria das mulheres que tentam o suicídio por queimaduras tem entre 15 e 44 anos de idade. São mulheres jovens, cujas vidas pessoais e de trabalho são permanentemente comprometidas devido às sequelas funcionais, estéticas e psicológicas que restam após a tentativa de suicídio por queimaduras.

Ainda é grande o número de mulheres que usam o álcool como combustível nas tentativas de autoextermínio por agentes térmicos. Apesar de todas as campanhas de conscientização e até da proibição da venda indiscriminada de álcool líquido, podemos observar que ainda é um item disponível e de fácil aquisição8,12.

Os antecedentes de doenças psiquiátricas e de tentativas de autoextermínio prévias foram bastante presentes. Com isso, levanta-se a bandeira de que os principais fatores de risco para o suicídio podem ser prevenidos desde que suspeitados, identificados e tratados.

As queimaduras intencionais são mais graves que as acidentais8. As mulheres vítimas de tentativas de suicídio por queimaduras apresentam lesões mais profundas, maior associação com lesões inalatórias, maior período de internação hospitalar e maior mortalidade30. O tratamento dessas mulheres representa grande custo financeiro para o sistema de saúde e um custo emocional e psicológico ainda maior para as vítimas e suas famílias. Apesar do progresso envolvendo o manejo e tratamento dos pacientes queimados, a prevenção continua sendo a melhor atitude. Com medidas importantes como o acolhimento adequado das pacientes, suspeição dos casos como de violência autoinfligida e encaminhamento para tratamento e acompanhamento pertinentes, muitos casos de suicídio podem ser evitados e anos de vidas poupados.

Com este estudo, traçamos o perfil epidemiológico das mulheres que tentam o autoextermínio com queimaduras, com o intuito de informar sobre esse importante e tão pouco explorado tema. Além disso, ressaltamos as implicações e o impacto dessas ocorrências no sistema de saúde e chamamos atenção para um problema recorrente quando trabalhamos com base de dados secundários: a incompletude de informações.

COLABORAÇÕES

MS

Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Coleta de Dados,Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Realização das operações e/ou experimentos, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização

MLCO

Análise e/ou interpretação dos dados, Análise estatística, Aprovação final do manuscrito,Aquisição de financiamento, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento de Recursos,Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação, Visualização

REFERÊNCIAS

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1. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Hospital Regional da Asa Norte, Brasília, DF, Brasil.
2. Universidade Católica de Brasília, Programa de Mestrado em Gerontologia, Brasília, DF, Brasil.
3. Escola Superior em Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências para a Saúde, Brasília, DF, Brasil.

Instituição: Hospital Regional da Asa Norte, Brasília, DF, Brasil e Instituto de Medicina Legal da Polícia Civil do Distrito Federal, Brasília, DF, Brazil.

Autor correspondente: Marcia Schelb Quadra 1, 3º andar, Asa Norte, Brasília, DF, Brasil. CEP: 70710-100. E-mail: marciaschelb@hotmail.com

Artigo submetido: 14/11/2018.
Artigo aceito: 22/6/2019.

Conflitos de interesse: não há.

 

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