INTRODUÇÃO
O resultado bem-sucedido de uma cirurgia plástica parece estar vinculado a uma
cirurgia bem realizada e livre de complicações.
Entretanto, nada suscita maior perplexidade do que a constatação de que um resultado
cirúrgico irretocável é causa de insatisfação para a paciente, levantando hipóteses
de irracionalidade, de transtorno mental ou de má-fé.
Nosso objetivo é buscar, com noções psicanalíticas, compreender melhor como se dão
esses fenômenos.
DISCUSSÃO
Lógica objetiva
De uma maneira geral, poderíamos dizer que a avaliação de um bom resultado
cirúrgico segue uma lógica objetiva. A queixa da paciente corresponde a um
diagnóstico anatômico equivalente. A indicação cirúrgica correta, uma técnica
bem executada e ausência de intercorrências, proporciona o resultado almejado. A
satisfação seria uma consequência natural.
Lógica subjetiva
Fatores de ordem subjetiva determinarão como a paciente fará sua avaliação da
cirurgia.
Esses fatores serão situados em três campos principais: a percepção do corpo, a
influência do inconsciente e a relação médico-paciente, isto é, a transferência
da paciente com o médico.
A percepção do corpo
A percepção do corpo como próprio parece natural e intuitiva, contudo, na
realidade, não é bem assim. No recém-nascido, o corpo é percebido de forma
fragmentada e polimorfa. É possível fazer essa dedução por meio das análises de
crianças e de pacientes esquizofrênicos, nas quais seus corpos são descritos
como despedaçados, segmentados e desorganizados. Por volta dos 6 aos 18 meses,
no chamado estádio do espelho1, a imagem
da criança vai-lhe sendo reiteradamente apresentada como sua por meio dos pais,
dos adultos e do meio cultural. O processo de totalização da imagem nesse
período vai gerar uma coesão que sempre traz em si a ameaça do despedaçamento
original. A cirurgia plástica pode ser um momento reativador da desorganização
dessa autoimagem, por aludir à fragmentação constitucional do corpo, e surge
angústia ao invés de satisfação.
Ao longo da vida, a visão do corpo será marcada não só por imagens como também
por definições (significantes) e sensações próprias. Então, temos um corpo que é
apreendido pelo seu aspecto imaginário (parecer), pelo seu aspecto simbólico
(ser) e pelo seu aspecto real# (experiência
corporal não imaginada ou simbolizada pelo sujeito e que emerge
abruptamente).
Esses aspectos se sobrepõem, mas têm pesos diferentes.
Geralmente, o corpo, em seu registro imaginário, encontra-se no campo das
identificações com as imagens, marcado pelo olhar do outro, pelos significantes
que o adjetivam e por uma relação de dualidade e exterioridade. Isso é
facilmente percebido em pessoas que ancoram sua própria imagem em referência a
outra, por exemplo, modelos ou celebridades. Por isso, é comum que sejam
apresentadas fotos do “modelo” a ser seguido.
O predomínio do registro imaginário faz a paciente ficar dependente de como
outras pessoas (amigas) julgam sua imagem, da comparação com a de outras
mulheres ou dos elementos significantes que a adjetivam. Se a cirurgia não
alcança essa expectativa, facilmente um bom resultado torna-se um
desapontamento.
No seu aspecto simbólico, o corpo pode estar atrelado a valores históricos, a
definições da cultura, a uma tradição ou, até mesmo, a uma religião. Assim as
pessoas, muitas vezes sem saber, querem ser reconhecidas por traços físicos que
as identifiquem com uma nacionalidade, com uma cultura, com uma tradição
histórica ou com uma religião.
Podemos, assim, compreender como a insatisfação com o resultado pode surgir de
fatores psíquicos e não, necessariamente, da cirurgia em si. A grande
dificuldade advém de que a motivação, quase sempre inconsciente, da origem da
insatisfação acaba deslocada para o resultado da operação. Estaremos lidando com
ela quando estivermos diante destas situações: a idealização imaginária da
paciente não coincide com o que, de fato, pode ser obtido; a fixação da imagem
do outro dificilmente permite que a paciente aceite sua nova imagem como
positiva; o conflito com o lugar simbólico do corpo impede que se apreciem as
melhoras obtidas. O real do corpo perturbado pela cirurgia gere intensa
angústia.
O inconsciente
Freud, em sua época, se viu intrigado com pacientes que apresentavam quadros de
suposta etiologia neurológica cujo acometimento, estranhamente, não possuía
correspondência anatômica2.
Diligentemente, percebeu que conflitos psíquicos inconscientes se expressavam de
diversas formas no corpo. Se, por um lado, esse corpo apresentava sintomas como
dores, contraturas e paralisias que não tinham causa anatômica, por outro, o
médico, também, se deparava com a intensificação de doenças diagnosticadas,
porquanto essas condições “atraíam” conflitos mentais. O corpo imaginado,
simbolizado e investido pulsionalmente3 é
lugar privilegiado para expressão de fantasias inconscientes que deixam tanto o
médico quanto a própria paciente perplexos. Portanto, é importante para o
profissional ter em mente que toda intervenção no corpo está sujeita, em maior
ou menor grau, a atrair manifestações inconscientes que soarão incompreensíveis
ou mesmo bizarras. Hoje, os sintomas têm uma nova roupagem como bulimia,
anorexias e dismorfobias4 mantendo, porém,
a mesma relação com a origem psíquica.
No âmbito das cirurgias plásticas, os fenômenos geralmente surgem no
pós-operatório e podem surpreender por acontecerem com pacientes que antes se
mostravam muito equilibradas e tranquilas, estando longe do que, normalmente,
pudesse levantar qualquer suspeita de problemas. São comuns os casos em que as
dores parecem muito exageradas e há incapacitações atípicas5; podemos observar distúrbios alimentares; algumas
pacientes podem apresentar aspecto de sofrimento físico digno de doenças graves
que, não raro, se relacionam a fantasias masoquistas inconscientes; e o
surgimento de um quadro depressivo deixa as pacientes visivelmente desmotivadas
com a cirurgia, tornando frequente a insinuação de que a mesma não foi
bem-sucedida.
Essas situações são difíceis para qualquer cirurgião, e a experiência clínica nos
mostra que a carga emocional envolvida acaba por aumentar os níveis de cortisol,
comprometendo a imunidade e contribuindo para complicações cirúrgicas6.
A transferência
Com relação à transferência, podemos agrupá-la sob três aspectos: transferência
positiva, negativa e erotizada.
Na transferência positiva, a figura do médico é percebida pelos seus melhores
predicados. Sua capacidade e conhecimento são tidos como de alto nível. Em
presença de complicações e, inclusive, maus resultados, uma atitude
condescendente e compreensiva deixa o médico a salvo de maiores críticas. Essa
transferência, entretanto, pode gerar uma demanda excessiva por parte da
paciente. A falta de um pronto atendimento pelo médico pode dar lugar a uma
frustração, e esta, facilmente, virar uma depreciação do resultado.
Já na transferência negativa, se dá o oposto. Pacientes tipicamente histéricas
costumam assumir posições de rivalidade e hostilidade, fazem críticas ao médico,
duvidam de sua capacidade técnica, desafiam a autoestima do cirurgião,
insinuando que deveriam ter escolhido outro. As queixas fluem livremente e o
resultado, obviamente, é julgado sob um aspecto negativo.
Na vertente chamada erótica, surge a demanda de uma relação amorosa e/ou sexual
com o médico. Aqui o profissional deve se lembrar de que este tipo de demanda o
coloca no circuito do amor e do ódio. Os que desconhecem esta forma de
transferência, e a rechaçam veementemente pelas mais legítimas alegações,
provavelmente, se tornarão objeto de um profundo ódio que facilmente se dirige à
avaliação da cirurgia. Em contrapartida, aqueles que se aventuram a corresponder
amorosamente às solicitações da paciente podem se surpreender, quando do
fracasso da relação, com a transformação, ipsi literi, de toda
a carga amorosa em odiosidade.
Devemos estar cientes que, nesses três tipos de transferência, o manejo ainda
está nas mãos do médico. Mesmo nas vertentes negativa e erotizada, é crucial
entender o fenômeno como projeção de fantasias e posições inconscientes que a
paciente aplica, naquele momento, sobre a figura do cirurgião – não à sua pessoa
– e que fazem parte do rol das relações que ela tende a manter com outras ao
longo da vida. Para tanto, o médico deve evitar seu próprio envolvimento afetivo
para que possa atuar, sem ser agressivo ou evasivo, de forma neutra, até um
apaziguamento.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, podemos concluir que o aprimoramento dos conhecimentos da vida psíquica
contribui, inegavelmente, na compreensão da avaliação do resultado subjetivo pela
paciente.
É importante reconhecer o status do corpo sob seus aspectos
imaginário (parecer), simbólico (ser) e real. Como também é preciso valorizar a
potência do psiquismo em ativar conflitos inconscientes, fazendo-os incidir sobre
a
cirurgia e gerando insatisfações. A prevalência do fator psíquico, caso seja
negligenciado pelo cirurgião, o deixará em desvantagem e à mercê desses
fenômenos.
Na perspectiva da transferência, é igualmente necessário aprimorar seu discernimento
para um manejo mais eficaz. A emblemática expressão “quando a paciente complica,
devemos nos casar com ela” traduz, nessa concepção, que se deve legitimar, na
relação médica, o interesse, a paciência e a escuta (como exige mesmo um casamento)
a fim de que a paciente se sinta inserida na esfera de interesse de seu médico e não
abandonada.
Devemos ter em conta que a dificuldade em se lidar com esses aspectos do psiquismo,
hoje em dia, faz-nos presenciar a migração dessas questões do espaço médico para o
jurídico, ambiente cada vez mais desfavorável ao cirurgião.
REFERÊNCIAS
1. Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
2. Freud S. Estudos sobre a histeria. Volume 2. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
3. Macri S. El sintoma em la experiência analítica. Buenos Aires: Grama
Ediciones, 2012.
4. Scherer J. Transtornos psiquiátricos na medicina estética: a
importância do reconhecimento de sinais e sintomas. Rev Bras Cir Plast. v. 32,
n. 4, outubro/dezembro 2017.
5. Goulart GC. O corpo estranho na cirurgia plástica. Belo Horizonte:
COOPMED, 2013.
6. Cacioppo JT. Autonomic, neuroendocrine, and immune responses to
psychological stress: the reactivity hypothesis. Ann NY Acad Sci. 1998 may;
840:664-73.
1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
Minas Gerais, MG, Brasil.
2. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, MG, Brasil.
3. Santa Casa de Belo Horizonte, Belo Horizonte,
MG, Brasil.
Endereço Autor: Gustavo Costa Goulart
Rua Ribeiro de Oliveira, 50/301 – Bairro Serra, Belo Horizonte, MG, Brasil CEP
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