INTRODUÇÃO
A mão é um instrumento primário de comunicação, estética, emoção e sexualidade. Ela
é
acometida em até 80% dos casos em grandes queimados, acarretando em perda da
capacidade laboral e sequelas psicossociais graves1. Devido à alta suscetibilidade em absorver traumas, geralmente as
queimaduras nas mãos levam à absorção de grades quantidades de energia, o que
acarreta lesões graves, sobretudo nas queimaduras por chamas, sendo este o principal
fator etiológico2. Mesmo após cuidados
intensos na fase aguda, a formação de contraturas e cicatrizes hipertróficas se
torna um grave empecilho para o desenvolvimento funcional e estético do membro
afetado3. Existem vários fatores de risco
para formação de cicatrizes hipertróficas, incluindo baixa idade, infecções,
estiramento da pele e local anatômico. Quanto mais profunda a queimadura, maior o
risco de contratura e cicatrizes hipertróficas4.
Após a maturação cicatricial, a correção cirúrgica se mostra como uma das melhores
ou
única forma de solucionar sequelas funcionais. A presença de contraturas lineares,
por exemplo, é melhor abordada por zetaplastias, contínuas ou compostas, com ângulos
de 60º ou maiores5. A presença de contraturas
nas faces volares das falanges e nas regiões interfalangeanas podem ser tratadas com
enxertos de espessura total (preferencialmente) ou parcial, na eventualidade de não
se exporem estruturas nobres, como vasos, nervos, ossos ou tendões1.
As cirurgias são feitas, via de regra, sob anestesia geral ou sedação, infiltração
locorregional de anestésicos locais e torniquete pneumático para melhor visualização
do campo cirúrgico. Isquemia e necrose digitais, dentre outras complicações, são
desfechos possíveis neste procedimento, sobretudo em pacientes diabéticos,
vasculopatas e aqueles com extensas fibroses profundas, com vascularização
errática6.
OBJETIVO
Este trabalho objetiva relatar um caso de amputação digital após cirurgia para
correção de contratura na face volar dos terceiro, quarto e quinto quirodáctilos
direitos de uma paciente pediátrica, com as medidas tomadas para amenizar o grau de
isquemia e nível de amputação subsequente, além de incitar reflexão sobre os
possíveis riscos relacionados à cirurgia de membros múltiplas vezes abordados.
MÉTODO
As informações foram coletadas durante a condução da paciente nas consultas,
cirurgias, por meio de revisão do prontuário, registros fotográficos e revisão da
literatura nas bases PubMed, SciELO, Google Acadêmico e Medline.
RESULTADOS
Paciente feminina, 12 anos, moradora da zona rural de Guaxupé, admitida no
ambulatório de cirurgia plástica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal
de
Minas Gerais após encaminhamento de outro serviço terciário para avaliação de
contratura nas faces flexoras do terceiro, quarto e quinto quirodáctilos direitos,
resultantes de queimadura por chama aos três anos de idade. A paciente tinha ângulos
de contratura metacarpo-falangeanas entre 30-60º em repouso (McCauley grau III).
Havia passado por seis outras abordagens ao longo dos últimos cinco anos, sendo a
última 18 meses antes da abordagem a ser relatada. A paciente não possuía
comorbidades ou alergias. A paciente vivia com a avó materna, mas tinha a mãe como
acompanhante nas consultas médicas e internações hospitalares.
Foi submetida a zetaplastias duplas no terceiro e quinto dedos, e enxertia de pele
total no quarto dedo, este proveniente da face volar do punho (Figura 1).
Figura 1 - Planejamento pré-operatório.
Figura 1 - Planejamento pré-operatório.
Foram realizados bloqueios tronculares com lidocaína 1% + epinefrina 1:200.000 4 mL
nos três quirodáctilos e 15 mL na área doadora do enxerto de pele total (EPT) e
posicionado torniquete elástico na base de cada um dos dedos, sucessivamente, por
etapa cirúrgica.
Foram realizadas, primeiramente, as zetaplastias, com ângulos de 75º, sem quaisquer
intercorrências, tendo o tempo de torniquete sido de 35 minutos para o 5º
quirodáctilo direito (QDD) e 40 minutos para o 3º QDD. Foram realizados pontos
simples com nylon 4-0, com liberação quase total do ângulo de flexão nestes
dedos.
Seguiu-se a coleta do EPT, com síntese em dupla-camada (poliglactina 4-0 e nylon
4-0). À incisão transversa da brida no 4º QDD, não foi visualizada contratura que
atingisse os tendões flexores, restando os paratendões e cápsulas articulares
íntegros e coxins gordurosos recobrindo os feixes vasculonervosos laterais, sem
tentativas de esqueletização dos mesmos. A enxertia foi realizada com quatro pontos
cardeais simples para fixação do enxerto e chuleios para fechamento das bordas. Não
foi realizado curativo de Brown, apenas curativo simples. Não foi perseguida a
extensão total do dedo, permitindo-se um leve grau de contratura neste
quirodáctilo.
Ao término do procedimento, foram testadas as perfusões distais, com tempo de
enchimento capilar menor que dois segundos em todos os dedos e mobilização
preservada. A mão foi imobilizada com calha gessada antebraquiofalangeana, em
posição anatômica semifletida, sem cobertura das faces distais dos dedos e
enfaixamento não apertado.
A paciente foi liberada com prescrição analgésica e retorno programado para três
dias. Devido ao demorado acesso e, segundo o relato da paciente e acompanhante, não
haver queixas importantes até o terceiro dia de pós-operatório, não houve
comparecimento à consulta marcada, tendo a paciente retornado apenas no sétimo dia
de pós-operatório (DPO).
Ao exame, a paciente apresentava isquemia importante, com sinais de necrose, a partir
da interfalangeana proximal do 4º QDD (Figura 2). A criança relata ter sentido dor forte, súbita, na noite do 4º DPO. Após
ingestão de comprimido de paracetamol com codeína, teve melhora e conseguiu dormir.
Contudo, acordou na manhã com a extremidade deste dedo arroxeada e parestésica. Não
padecendo mais de dor, negligenciou a evolução e não foi inspecionada pelos
cuidadores.
Figura 2 - Sétimo dia de pós-operatório.
Figura 2 - Sétimo dia de pós-operatório.
Optou-se por conduta conservadora, inicialmente, com prescrição de enoxaparina
subcutânea 40 mg, em doses únicas diárias. Foram retirados a imobilização e os
pontos que seguravam o enxerto, sendo realizado curativo local com gaze embebida em
petrolato. A paciente seguiu acompanhamento semanal por duas semanas até delimitação
da área de gangrena, sob vigilância infecciosa e hemorrágica.
Após este período, foi observado delimitação necrótica a partir da interfalangeana
distal, com pega parcial do enxerto proximal e sangramento à punção da falange média
(Figura 3).
Figura 3 - Vigésimo primeiro dia de pós-operatório.
Figura 3 - Vigésimo primeiro dia de pós-operatório.
A paciente foi submetida à amputação parcial, ao nível da interfalangeana proximal,
com preservação da pele da face extensora da falange média como retalho para
fechamento do coto de amputação. Foram retiradas suturas dos outros quirodáctilos
ao
fim do procedimento.
Tendo permanecido internada por dois dias, recebeu alta com prescrição analgésica
e
encaminhamento para tratamento fisioterápico precoce. Retornou após 15 dias do
último ato
cirúrgico, com perda parcial do arco de movimento ganho nos outros dedos, mas com
melhor movimento de pega global (Figura 4).
Figura 4 - Décimo quinto dia pós-amputação.
Figura 4 - Décimo quinto dia pós-amputação.
DISCUSSÃO
A correção de sequelas de queimaduras é desafiadora e tão pior quanto maior o tempo
desde o evento agudo7. No caso de contratura
da região flexora, o enxerto de pele total, assim como retalhos ilhados, retalhos
de
fluxo reverso e retalhos em cross-finger podem ser usados. A
utilização de enxertos de pele total é descrita na literatura como tendo bons
resultados e baixa morbidade8.
A infiltração de soluções adrenalizadas, sabe-se hoje, não acarreta maior sofrimento
vascular nos membros operados, sendo rotineiramente utilizada em serviços de
cirurgia de mão9.
A evolução para isquemia no pós-operatório desses casos pode ocorrer por espasmo
arterial ou por compressão por edema no pós-operatório. No caso relatado, dados o
cuidado de não se forçar a extensão total do dedo, a imobilização ocorrer em posição
semifletida, a perfusão normal no pós-operatório e o surgimento tardio do quadro
isquêmico, suscita-se a possibilidade de compressão vascular causada pelo edema
pós-operatório.
A utilização de enoxaparina é rotineira nos casos que se suspeita de trombose ou que
a trombose é uma complicação possível, como nos casos de gangrena de membros, em que
o estado pró-coagulante é um risco perene até a amputação10.
CONCLUSÃO
Pacientes com contraturas em áreas flexoras da mão têm pior prognóstico quanto maior
o tempo desde o trauma, devendo-se sempre buscar medidas preventivas em prol da
melhor evolução nestes casos, a fim de se diminuir a extensão e gravidade de
sequelas funcionais. Assumir um caso já múltiplas vezes operado, com cicatrização
e
vascularização errática deve sempre incitar parcimônia nas dissecções e na busca de
resultados condizentes com as expectativas do paciente, muitas vezes intolerante ao
prolongamento de seu tratamento, sobretudo na faixa etária pediátrica. Para tanto,
é
preciso informar, verbal e por escrito, os pacientes e seus familiares dos desfechos
a que cirurgias como essa podem levar.
Mesmo utilizando-se das orientações relativas ao manejo de casos como esse, situações
graves podem ocorrer, devido ao edema que se forma em áreas já muito mobilizadas,
devendo o acompanhamento pós-operatório ser mais rigoroso, a frequentes retornos,
de
modo que se possa tratar precocemente situações como a isquemia digital e diminuir
o
risco de sequelas ainda maiores para o paciente.
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10. Yoshida WB. Tratamento convencional da trombose venosa profunda
proximal: ainda uma boa opção? J Vasc Bras. 2016 jan-mar;
15(1):1-3.
1. Hospital das Clínicas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Endereço Autor: Sergio Antonio Saldanha
Rodrigues Filho Rua Professor Moraes, nº72 - Belo Horizonte, MG,
Brasil CEP: 30150-370 E-mail:
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