INTRODUÇÃO
As complicações relacionadas à anestesia em cirurgias plásticas são raras, mas
potencialmente catastróficas. Segundo dados publicados pela Sociedade Brasileira
de
Cirurgia Plástica, são realizadas aproximadamente 1,5 milhão de cirurgias plásticas
no Brasil, por ano, sendo 600 mil reparadoras1. Embora geralmente seja muito segura, a cirurgia plástica eletiva
apresenta taxa de mortalidade de cerca de 1 em 50.000 pacientes2.
As fissuras labiopalatinas são uma das deformidades congênitas mais comuns na espécie
humana, com incidência aproximada de 1:650 nascidos vivos3. Pacientes fissurados necessitarão de uma ou mais cirurgias
reparadoras ao longo da vida. Esses pacientes são mais suscetíveis a complicações
anestésicas, pois, além da deformidade craniofacial, podem apresentar alterações
anatômicas das vias aéreas superiores e síndromes associadas4,5.
As complicações respiratórias relacionadas à anestesia são reportadas, na literatura,
como fatores que podem aumentar a morbimortalidade6. O rápido reconhecimento da situação, a reversão de fatores associados
e o tratamento adequado previnem a necessidade de medidas mais invasivas e desfechos
desfavoráveis7-9.
No presente trabalho, relatamos dois casos de complicações respiratórias em
procedimentos cirúrgicos eletivos para correção da fissura palatina, sendo descritos
o edema pulmonar pós-extubação e o broncoespasmo intraoperatório com consequente
efeito Mecklin.
MÉTODO
Descrição de dois casos clínicos de portadores de fissura palatina e complicações
perioperatórias relacionadas ao ato anestésico. Colhidos dados em prontuário
eletrônico, revisão bibliográfica em livros e publicações obtidas por meio de
portais científicos (PubMed).
CASO CLÍNICO 1
Trata-se de A.L.M., masculino, 30 anos, portador de fissura pós-forame completa, em
acompanhamento ambulatorial no CENTRARE (Centro de Tratamento e Reabilitação de
Fissura Labiopalatal e Deformidade Craniofacial), em Belo Horizonte – MG. Paciente
admitido no bloco cirúrgico do Hospital da Baleia, em Belo Horizonte, pela Cirurgia
Plástica, com proposta de palatoplastia secundária para tratamento de insuficiência
velofaríngea. De acordo com avaliação pré-operatória, encontrava-se em condições
físicas e psicológicas adequadas. Foi classificado como ASA I. Negava alergias ou
síndromes.
O paciente foi submetido à intubação orotraqueal sem intercorrências, mantendo bons
níveis de saturação no intraoperatório. Após o término do ato cirúrgico pela equipe
da Cirurgia Plástica, as vias aéreas foram devidamente aspiradas e permaneceu aos
cuidados do anestesista.
Durante o despertar da anestesia geral, o paciente inicialmente encontrava-se agitado
e não permitia uma abertura oral adequada, ocorrendo oclusão mecânica temporária do
tubo orotraqueal. Minutos após extubação, evoluiu com queda da saturação, esforço
respiratório e taquipneia. À ausculta foi diagnosticado quadro de edema agudo de
pulmão, possivelmente secundário à obstrução de vias aéreas causada pela oclusão do
tubo durante o despertar do paciente. Foi prontamente medicado com diurético e
corticosteroide venoso, e realizada oxigenação por máscara facial, havendo melhora
quase completa dos sintomas respiratórios.
Ainda em sala cirúrgica, o mesmo evoluiu com dor abdominal em hipogástrio devido a
retenção urinária com bexigoma. Foi avaliado pela equipe da urologia e, após várias
tentativas de sondagem vesical sem sucesso, foi submetido a uretroscopia, sendo
identificada estenose uretral. Optou-se por dilatação uretral com posterior sondagem
vesical de demora com resolução do quadro.
O paciente evoluiu estável em enfermaria, sem novos episódios de insuficiência
respiratória, e manteve diurese satisfatória em uso de sonda vesical de demora.
Recebeu alta no 4º dia de pós-operatório e seguiu em controle ambulatorial com a
Cirurgia Plástica e Urologia sem novas complicações.
CASO CLÍNICO 2
A.P.O.M., feminino, 32 anos, fissura pós-forame completa, também em acompanhamento
ambulatorial no CENTRARE. Admitida em bloco cirúrgico do Hospital da Baleia, em Belo
Horizonte, pela Cirurgia Plástica para autonomização de retalho de língua em palato
anterior para tratamento de fístula, 14 dias após confecção do retalho. Risco
cirúrgico anestésico ASA I, ausência de alergias ou síndromes, previsibilidade de
via aérea difícil devido a retalho intraoral (Figura 1).
Figura 1 - Retalho de língua em palato para tratamentode fístula oronasal.
Pre-operatóriode autonomização do retalho.
Figura 1 - Retalho de língua em palato para tratamentode fístula oronasal.
Pre-operatóriode autonomização do retalho.
Além da presença do retalho em cavidade oral, o anestesista teve dificuldade em
visualizar a via aérea, que se encontrava anatomicamente anormal e anterior. Após
várias tentativas e uso de Bougie, obteve sucesso na intubação e
seguiu-se em procedimento cirúrgico sob anestesia geral balanceada e ventilação
mecânica.
Durante o ato operatório, a paciente evoluiu com súbita queda da saturação,
dificuldade ventilatória e bradicardia. Foi diagnosticado broncoespasmo severo,
sendo prontamente iniciada atropina, broncodilatador inalatório e corticosteroide
venoso, pelo anestesista, que também associou ventilação com pressão positiva. A
paciente apresentou melhora hemodinâmica, mas somente parcial do quadro
ventilatório.
O procedimento cirúrgico foi interrompido e observou-se enfisema subcutâneo extenso
em tronco e face, pneumoperitônio progressivo e piora significativa da ventilação
pela restrição do volume pulmonar. Devido à dificuldade na ausculta pulmonar
secundária ao enfisema, realizou-se radiografia intraoperatória e confirmou a
hipótese de pneumotórax hipertensivo à direita e pneumomediastino (Figura 2).
Figura 2 - Pneumotórax hipertensivo à direita associado a
pneumomediastino.
Figura 2 - Pneumotórax hipertensivo à direita associado a
pneumomediastino.
A paciente foi prontamente avaliada pela Cirurgia Geral e Cirurgia Torácica, sendo
submetida a drenagem em selo d’água em hemitórax direito e descompressão abdominal
por punção devido ao pneumoperitônio, com melhora significativa dos padrões
ventilatórios. Após estabilização do quadro, foi realizada broncoscopia sendo
excluída lesão em via aérea superior. Procedeu-se com autonomização do retalho e a
paciente foi encaminha para leito em UTI com hipótese diagnóstica de barotrauma.
Durante a internação hospitalar manteve estabilidade hemodinâmica, o que possibilitou
a realização de tomografia computadorizada com contraste que excluiu lesão esofágica
e confirmou hipótese de barotrauma e efeito Mecklin (Figura 3). Optou-se, pela equipe da Cirurgia Geral, Torácica e Plástica,
por traqueostomia no 3º dia pós-operatório devido a via aérea difícil e alta
probabilidade de intercorrências após extubação. Realizada retirada de dreno
torácico no 7º dia e alta da UTI no 11º dia pós-operatórios. Manteve acompanhamento
fisioterápico em enfermaria e foi submetida a decanulação após 13 dias de
traqueostomia com posterior alta hospitalar. A paciente segue em acompanhamento
ambulatorial com a Cirurgia Plástica sem novas intercorrências.
Figura 3 - Tomografia computadorizada de abdome (direita) e tórax (esquerda)
evidenciando pneumotórax drenado à direita,extenso enfisema subcutâneo e
pneumoperitônio, sem evidencia de lesões intra-abdominais.
Figura 3 - Tomografia computadorizada de abdome (direita) e tórax (esquerda)
evidenciando pneumotórax drenado à direita,extenso enfisema subcutâneo e
pneumoperitônio, sem evidencia de lesões intra-abdominais.
DISCUSSÃO
A incidência de complicações respiratórias no intraoperatório de cirurgias eletivas
não é claramente reportada na literatura, porém, em se tratando de portadores de
fissura, segundo estudo realizado por Desalu et al.
8, essa incidência pode chegar até 38%. As
principais complicações reportadas foram extubação inadvertida, laringoespasmo,
broncoespasmo e obstrução aguda das vias aéreas6,7.
A via aérea difícil é frequente em portadores de fissura palatina pois, sabidamente,
esses pacientes apresentam alterações anatômicas relacionadas às vias aéreas, como
descrito em estudos comparativos com pacientes não fissurados4,5. Prever
esses riscos é crucial para uma boa evolução transoperatória, e a identificação de
pacientes com alto risco permite abordagens estratégicas preventivas mais eficazes,
alocação de recursos especializados e permite intervenções orientadas6,7.
O primeiro relato apresentado exemplifica um caso típico de edema pulmonar por
pressão negativa (EPPN) como complicação da obstrução aguda das vias aéreas, devendo
ser essa uma complicação potencial a ser considerada em pacientes jovens e
saudáveis, principalmente no período imediato pós-extubação e de recuperação após
anestesias gerais com ventilação mecânica. Também citado na literatura como edema
pulmonar ex-vacuum, a sua frequência relatada varia de 0,05% a
0,1%9. O EPPN é, muitas vezes, grave, de
forma súbita e inesperada, secundário a um episódio de obstrução aguda de vias
aéreas superiores, como no relato acima. A fisiopatologia apresenta caráter
multifatorial, mas o mecanismo é predominantemente o desenvolvimento de uma grande
pressão negativa intrapleural, que é transmitida para o interstício pulmonar,
aumentando o retorno venoso para o ventrículo direito e também a pressão
hidrostática capilar pulmonar, proporcionando a transudação de fluidos para dentro
do espaço alveolar. A chave para uma abordagem segura repousa no rápido
reconhecimento da situação, reversão da obstrução e aplicação de ventilação com
pressão positiva. Rapidamente diagnosticada e tratada, essa condição clínica leva
a
um desfecho favorável, apesar de ser caracterizada como emergência
anestesiológica10,11.
O broncoespasmo é um quadro caracterizado pela hiper-reatividade aguda das vias
aéreas, podendo ser desencadeado após manipulação durante a intubação ou ser parte
de uma reação imunológica durante a anestesia. Esta condição clínica leva ao aumento
excessivo e agudo da pressão das vias aéreas, podendo levar ao barotrauma,
pneumotórax e pneumomediastino12,13. O segundo caso
relatado representa claramente uma série de eventos fisiológicos logo após grave
crise de broncoespasmo, e podemos chamá-la de síndrome de Mecklin. Esta síndrome é
descrita na literatura como evento fisiológico causado pela ruptura alveolar
pulmonar secundária ao aumento da pressão pulmonar, levando à saída de ar do
interstício pulmonar e vasos linfáticos, que disseca através dos septos interlobares
adjacentes a vasos sanguíneos e hilo brônquico, e daí para o mediastino. No
mediastino, o ar atravessa fáscias e dissemina-se para o tecido subcutâneo do tórax
e região cervical, pericárdio, peritônio e retroperitôneo14. No caso relatado, devido ao volumoso e progressivo
pneumoperitônio, a ventilação pulmonar ficou ainda mais restrita, com melhora
significativa após descompressão abdominal de emergência por punção, na tentativa
de
diminuir a restrição pulmonar. O rápido diagnóstico e manejo assertivo das equipes
presentes (Cirurgia Geral e Torácica), evitou quadro grave de hipóxia podendo levar
a parada cardiorrespiratória e consequente óbito.
CONCLUSÃO
Os casos expostos atentam para a necessidade do diagnóstico preciso e precoce das
complicações anestésicas respiratórias no perioperatório e pós-operatório imediato.
Devido à incidência não tão rara de portadores de fissuras labiopalatais em nosso
meio, é importante a especialização da equipe cirúrgica e anestésica, pois, como
muitos passarão por vários procedimentos cirúrgicos, o conhecimento prévio de suas
peculiaridades faz com que seja possível prever riscos anestésicos e cirúrgicos,
oferecendo ao paciente menor morbimortalidade e complicações associadas ao
procedimento.
REFERÊNCIAS
1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica [homepage na internet].
Censo 2016: Situação da Cirurgia Plástica no Brasil. Disponível em: http:www2.cirurgiaplastica.org.br/wp-content/uploads/2017/12/CENSO-2017.pdf.
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2008; 22(2).
1. Hospital da Baleia em Belo Horizonte, MG,
Brasil.
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
Minas Gerais, MG, Brasil.
Endereço Autor: Mariangela Latini de
Miranda R. Juramento, 1464 - Saudade - Belo Horizonte, MG, Brasil
CEP: 30285-408 E-mail: mariangela_latini@hotmail.com