INTRODUÇÃO
A rabdomiólise é uma síndrome caracterizada por necrose muscular com consequente
liberação de conteúdo intracelular no compartimento intravascular, seu quadro
clínico pode variar desde assintomático até insuficiência renal aguda, a depender
do
grau de lesão muscular1.
A literatura que aborda essa complicação em pós-operatório de cirurgia ortognática
ainda é muito restrita, o que evidencia a raridade desta complicação neste
procedimento cirúrgico. Este artigo discute as possíveis causas de rabdomiólise em
um paciente submetido a cirurgia ortognática bimaxilar, com ênfase nos sinais e
sintomas apresentados pelo paciente do caso relatado.
OBJETIVO
O artigo tem como objetivo demonstrar, por meio de relato de caso, a importância de
um exame físico detalhado em pós-operatório, atentando-se para possíveis
complicações pós-operatórias.
MÉTODO
Coleta de dados a partir de prontuário eletrônico.
RELATO DE CASO
Paciente F.A.B.L., masculino, 32 anos, submetido no dia 08/12/2018 a cirurgia
ortognática bimaxilar não secundaria a trauma, procedimento e ato anestésico com
duração total de 4:30 h, sem intercorrências. Paciente previamente hígido, nega uso
de medicações ou drogas, IMC 24,8.
Recebeu alta hospitalar no dia 09/12/2018 queixando-se de dor leve em MMII, sem
outras queixas. Mantendo queixa do dor em MMII, foi orientado a comparecer ao pronto
atendimento do Hospital Felício Rocho para elucidação diagnóstica.
Paciente mantinha queixa de dor em MMII, sem progressão, sem outras queixas. Relatava
diurese escurecida, porém com volume satisfatório. Ao exame, apresentava edema
facial compatível com procedimento cirúrgico e edema discreto em MMII.
Foram levantadas três principais hipóteses diagnósticas:
Trombose venosa profunda – solicitado Doppler de MMII;
Dor postural;
Rabdomiólise – solicitada revisão laboratorial.
Exames laboratoriais evidenciaram valores de creatinofosfoquinase (CPK) 18.375 e
creatinina (Cr) de 0,8, sem outras alterações. Após este resultado, foi
diagnosticado o quadro de rabdomiólise em pós-operatório de cirurgia ortognática
bimaxilar, sem disfunção renal ou DHE. Demais resultados de exames laboratoriais
podem ser encontrados na Tabela 1.
Tabela 1 - Exames laboratoriais admissionais.
Hemoglobina |
12,2 |
Fósforo |
2,70 |
pH |
7,44 |
Global de leucócitos |
13.400 |
Ácido lático |
10 |
TGO |
332 |
Potássio |
3,9 |
RNI |
1,09 |
FAL |
39 |
Sódio |
134 |
PCR |
111 |
Gama GT |
16 |
Ureia |
29 |
Magnésio |
1,77 |
TGP |
86 |
Tabela 1 - Exames laboratoriais admissionais.
Foi solicitada internação, inicialmente em CTI, para melhor controle hídrico, onde
foi realizada hidratação venosa em BIC a 100 mL/h. Após um dia, o paciente recebeu
alta para enfermaria, com melhora das queixas álgicas em MMII, mantendo-se afebril
e
apresentando diurese satisfatória.
Durante todo o período de internação foi mantida a hidratação venosa a 100 mL/h,
mantendo volume urinário mínimo de 1 mL/kg/h e solicitadas dosagens diárias de CPK
e
Cr (Figuras 1 e 2). Em nenhum momento o paciente apresentou picos febris ou sinais de
síndrome compartimental. Não foi encontrada nenhuma indicação de complicação
cirúrgica local.
Figura 1 - Queda no nivel de CPK.
Figura 1 - Queda no nivel de CPK.
Figura 2 - Alteraçcão da creatinina.
Figura 2 - Alteraçcão da creatinina.
Recebeu alta após cinco dias de internação com orientação de hidratação oral de 2
L/dia e retorno ambulatorial em sete dias. A Figura 3 mostra a comparação entre pré e pós-operatório de 7 dias.
Figura 3 - Comparação entre pré-operatório e pós-operatório de sete dias.
A: Pré-operatório, incidência frontal; B:
Sete dias de pós-operatório em incidência frontal; C:
Préoperatório em incidência lateral esquerda; D:
Pós-operatório de sete dias em incidência lateral esquerda.
Figura 3 - Comparação entre pré-operatório e pós-operatório de sete dias.
A: Pré-operatório, incidência frontal; B:
Sete dias de pós-operatório em incidência frontal; C:
Préoperatório em incidência lateral esquerda; D:
Pós-operatório de sete dias em incidência lateral esquerda.
DISCUSSÃO
Achados clínicos e laboratoriais
A rabdomiólise é uma síndrome caracterizada por necrose muscular com consequente
liberação de conteúdo intracelular no compartimento intravascular. Seu quadro
clínico pode variar desde assintomático até insuficiência renal aguda (IRA)
grave.
As principais queixas dos pacientes são: mialgia, urina escura, mal-estar, febre,
taquicardia, náusea e vômitos, dor abdominal e confusão mental. O paciente em
questão apresentou como primeiros sintomas queixas de dor, edema e fraqueza
muscular em MMII e, mais posteriormente, urina escurecida1,2.
Os achados laboratoriais mais característicos são a elevação da CPK e outras
enzimas musculares, mioglobulinúria. Estas e outras alterações laboratoriais são
discutidas a seguir2,3 :
CPK: é um marcador de lesão de músculo esquelético, seus níveis se
elevam pelo menos em cinco vezes, sendo encontrados valores entre
1.500-100.000 (média 25.000). As alterações laboratoriais atingem
seu pico em 24 a 72 horas após a injúria muscular. Após esse
período, ocorre queda de aproximadamente 40% dos níveis de CPK por
dia, uma diminuição ineficiente ou inexistente pode decorrer de
lesão muscular contínua. No caso relatado o paciente apresentou CPK
de 18.375 com índices decrescentes a partir de então (Figura 1).
Mioglobulinúria: a mioglobulina é uma proteína liberada paralelamente
a CPK durante a lesão muscular. É rapidamente excretada pela urina,
fazendo com que o paciente se queixe de urina escurecida ou
avermelhada. Aproximadamente, 50% dos pacientes não apresentam
alterações de mioglobulinúria, o que torna a queixa não
indispensável para o diagnóstico da rabdomiólise. No caso relatado,
não foi realizada dosagem de mioglobulina urinária.
Hipercalemia e hiperfosfatemia: decorrente da lesão muscular. A
hipercalemia é mais comum, e se torna mais acentuada em pacientes
com insuficiência renal aguda (IRA). No caso apresentado, não
houveram alterações nos níveis de potássio e fósforo.
IRA: complicação comum da rabdomiólise, presente quando os níveis de
CPK se encontram acima de 20.000 (aproximadamente 15-50% dos
pacientes) e em pacientes que apresentam fatores de risco, como
desidratação, sepse e acidose. No caso descrito, não houve alteração
de creatinina (Figura 2).
Síndrome compartimental: ocorre comumente após ressuscitação volêmica
agressiva. O paciente queixa-se de piora da dor em MMII, edema e
parestesia. É uma emergência cirúrgica grave e não existem testes
laboratoriais para diagnóstico; o mesmo é feito a partir das queixas
do paciente no exame físico. No caso apresentado, o paciente
apresentou inicialmente queixa de dor e edema em MMII, porém, após o
tratamento com ressuscitação volêmica, o mesmo evoluiu com melhora
do quadro já no primeiro dia após internação hospitalar, não
caracterizando síndrome compartimental.
A tríade clássica de rabdomiólise se caracteriza com: mialgia, colúria e elevação
de CPK (apresentada pelo paciente).
Causas de rabdomiólise
As causas de rabdomiólise são divididas em traumáticas, funcionais e não
traumáticas e não funcionais. São identificadas sem dificuldade a partir da
história que precede o diagnóstico.
Neste tópico serão discutidas as principais causas do quadro clínico apresentado
pelo paciente.
Traumática4
Imobilização (coma ou induzida): pacientes que permanecem em um mesmo
posicionamento, durante um período prolongado, podem apresentar
rabdomiólise devido a pressão exercida sobre as células
musculares.
Procedimentos cirúrgicos prolongados: o paciente pode apresenta lesão
muscular devido a isquemia por compressão, comum em pacientes
obesos. No caso descrito, o paciente não se encaixa no grupo de
risco para o desenvolvimento desta complicação, visto que é um
paciente magro (IMC 24,8) e o tempo cirúrgico foi de 4:30 h.
Funcional
Ocorre quando a necessidade de energia do músculo é maior do que a demanda4.
Anemia falciforme: paciente hígido, nega patologias prévias.
Hipertermia maligna: induzida pelo uso de anestésicos inalatórios
(halotanos). Ocorre devido a alterações genéticas em receptores de
controle da passagem do cálcio para o meio intercelular. Segundo
informação colhida em prontuário médico, não houve relato de
hipertermia maligna; na indução anestésica foi utilizado
sevoflurano.
Hipotermia: não houve relato de hipotermia durante o procedimento
cirúrgico.
Não traumáticas e não funcionais4
Drogas: as drogas mais comumente associadas a rabdomiólise são
cocaína, anfetamina e metadona.
Durante a avaliação pré-anestésica o paciente negou o uso de drogas e
álcool.
Interação medicamentosa ou miotoxicidade: não há relato de
miotoxicidade ou interação medicamentosa dentre as medicações
utilizadas para procedimento cirúrgico.
Infecções virais e bacterianas graves: o paciente manteve-se afebril
durante todo o período de internação hospitalar, sem alterações de
leucograma.
Outras causas de rabdomiólise, como alterações endócrinas (diabetes,
hipotireoidismo e feocromocitoma), miopatias inflamatórias (dermatomiosite e
polimiosite), não serão discutidas, por não fazerem parte do quadro clínico
apresentado pelo paciente.
Diagnóstico diferenciais4
IAM.
Outras causas de hematúria e hemoglobinúria (trauma).
Miopatias inflamatórias: diferencia-se da rabdomiólise pela
cronicidade das queixas do paciente. As alterações laboratoriais são
mais discretas. Na rabdomiólise, o paciente não apresenta alterações
de eletromiografia.
Necrose muscular imunomediada: comum em pacientes em uso de
estatinas. O quadro clínico não melhora com a suspensão do
medicamento; a única forma de melhora do quadro é com o uso de de
imunossupressores.
Manejo1,4
Hidratação e débito urinário.
Manejo eletrolítico.
Identificação e suspensão da causa.
Diagnóstico rápido de síndrome compartimental, se presente.
CONCLUSÃO
A rabdomiólise é uma síndrome que raramente ocorre em pós-operatório de cirurgia
ortognática, devido ao baixo índice de lesão muscular neste tipo de procedimento.
É
válido ressaltar a importância de se considerar todas as hipóteses diagnósticas
possíveis para o caso.
Após o diagnóstico de rabdomiólise, foi considerado como mecanismo de gatilho a lesão
muscular devido ao tempo operatório e posicionamento cirúrgico, ainda que o paciente
não apresente os fatores de risco clássicos para o desenvolvimento do quadro.
REFERÊNCIAS
1. Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med.
2009; 67:272.
2. Giannoglou GD, Chatzizisis YS, Misirli G. The syndrome of
rhabdomyolysis: pathophysiology and diagnosis. Eur J Intern Med. 2007;
18:90.
3. Dequanter D, Vercruysse N, Shahla M, Paulus P, Lothaire PH.
Rhabdomyolysis in head and neck surgery. Disponível em: http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/mdl-25675660.
Acesso em: 25 fev 2019.
4. Marc LM. Clinical manifestations and diagnosis of rhabdomyolysis.
Disponivel em: https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-rhabdomyolysis.
Acesso em: 21 fev 2019.
1. Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG,
Brasil
2. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica,
Minas Gerais, MG, Brasil.
Endereço Autor Camila Camargos Bizzotto
Amorim Rua Rio Doce, 15, apto 901 - Belo Horizonte, MG, Brasil CEP
30140-220 E-mail: camilaamorim74@yahoo.com.br